Conversão e liberdade

“Converter-se” sempre foi uma palavra que, tanto ela quanto suas variações, me causou repugnância. Sempre que a ideia de conversão aparecia, lendo um trecho da Bíblia ou ouvindo alguma freira da minha adolescência, o meu cérebro a encaminhava para o setor dos meus demônios interiores, que por sua vez a reencaminhava para o meu escritório das atitudes a serem tomadas em um relatório que oferecia duas alternativas: ou adotar, na marra e à força, ainda que voluntariamente, um conjunto de regras facilmente resumido em moralismo (embora eu não soubesse o nome na época); ou quebrar tudo (metaforicamente) e proclamar a liberdade contra tudo isso.

As minhas conversões ao longo da vida não dizem respeito somente ao cristianismo, mas também a ideias, pessoas e, em caso de paixão, às garotas por quem eu me apaixonei. Particularmente, nas vezes em que eu me apaixonei, o que era (e ainda é) uma garota, eu transformava em deusa, templo e bíblia, o que pode até parecer romântico, mas é, pelo menos eu acho, uma espécie de passivo-machismo, e toda a dor (quer fosse a da rejeição, quer a do fim do relacionamento) era a de me sentir traído pelo abandono (ou pela indiferença) de quem deveria me salvar.

Tanto as minhas conversões a ideias quanto a pessoas em geral adotavam mais ou menos este mesmo padrão, mas sem a paixão e a entrega total por que, na verdade, me apaixonar sempre implicou em tentar transferir todo o peso da responsabilidade sobre a minha vida à garota que eu amasse (e isto dependia de bem menos do que um relacionamento: a maioria nem sabe que fui apaixonado por ela); ou seja, daria para associar conversão e paixão em um diagrama de Euler, com o círculo da conversão abrigando círculos menores representando as minhas conversões a ideias e pessoas, e, ainda dentro deste círculo da conversão, um maior, o da paixão, aplicável exclusivamente às garotas por quem eu me apaixonei.

Isto, é claro, pode ser um dos motivos de uma vida amorosa em que os sucessos se parecem com uma gota d’água indistinta em um oceano de fracassos; mas também é, no que diz respeito à questão religiosa, um dos motivos das minhas idas e vindas em relação ao cristianismo: ou converter-se em detrimento da liberdade, ou libertar-se em detrimento da conversão. Esta oposição irreconciliável, que em todo caso se trata de uma idiossincrasia minha e não de um tratado teológico-romântico, veio à tona das minhas lembranças lendo este texto sobre a carta aos Gálatas no site do IHU.

No que se diz respeito a Cristo, conversão não se opõe a liberdade, nem significa converter-se ao tradicionalismo, um péssimo cacoete disfarçado de fé, nem ao catecismo. Quanto à liberdade, converter-se não implica em adotar nem aceitar este ou aquele costume; o que não significa desprezar nem o catecismo nem o Magistério da Igreja, mas sim em aprender a diferenciar entre tornar-se catecismos vivos e tornar-se evangelhos vivos (e sabemos que Cristo pregou um Evangelho e não um catecismo, pois o catecismo é justamente o suporte proposto pela Igreja para que se consiga não viver o Evangelho, mas tornar-se evangellhos vivos, mais ou menos à moda de São João Calábria).

Quanto à conversão, a única conversão que liberta é converter-se a Cristo, o resto é “começar pelo Espírito e terminar pela carne” (cf Gl 3,3), isto quando ao menos começa pelo Espírito.

O selo de Marx

As políticas assistenciais que foram tão demonizadas durante as eleições de 2018 (e reabilitadas à força para compensar os efeitos da pandemia) não deveriam ser chamadas de “assistenciais”, e sim de “essenciais”, porque a assistência que prestam é aproveitada por todo mundo, desde os que são contemplados por ela até os que passam longe de um dia precisarem delas.

Não é novidade, porém não custa repetir que elas não existem apenas para as pessoas fisícas, mas também para as empresas e, embora até sofram críticas (especialmente quando houve aquele socorro aos bancos não lembro quando), não sofrem um décimo da oposição que aquelas voltadas às pessoas sofrem, e isso é ótimo: ruim é o combate contra as políticas assistenciais voltadas para as pessoas e os desvios que os operadores destes recursos eventualmente fazem – o que o próximo governo pode muito bem mitigar revogando a falta de transparência e a fragilização na fiscalização promovidas pelo governo bolsonaro.

Além das pessoas, que são (e se não são, deveriam ser) prioridade, e das empresas, as políticas assistenciais para as igrejas e templos religiosos também são muito combatidas, em grande parte porque não estão tendo caráter assistencial, e sim o de legalização de sonegações e artimanhas fiscais (incluindo a velha artimanha do “devo, não nego, e nem vou pagar”) de alguns grandes grupos religiosos (incluindo, infelizmente, alguns católicos: eu não sei como isto está agora, mas há alguns anos haviam algumas congregações católicas entre os grandes grupos religiosos devedores, e sua única expectativa era não pagar nada). Mas, exceto o apoio à legalização de calotes, também não deveria haver motivos para combater estas políticas assistencias para as religiões; deveria haver motivos, aliás, para aumentá-las, como a repressão às perseguições contra as religiões de matriz africana, por exemplo, que eu nunca vi terem sido resolvidas (e nem parecem ser tratadas como perseguição religiosa, e sim como mais um caso de polícia corriqueiro).

Quase sempre o combate a uma política assistencial é motivado apenas por ranço: anticapitalistas que são contra ajuda aos bancos, anticomunistas que são contra ajuda a qualquer coisa que não seja uma empresa, antirreligiosos que se divertem com a ideia de enforcar o último rei nas tripas do último padre (uma ideia que eu jurava ter lido em algum livro de Nietzsche, mas na verdade é de um padre chamado Jean Meslier, apesar de ser incorretamente atribuida a Voltaire – parece que eu não li direito alguma coisa há alguns anos atrás); é mais ou menos como o ranço contra os privilégios aos juízes e políticos: ninguém deveria ser contra os dois meses de férias e as toneladas de auxílio deles, deveria sim era lutar para que isto se extendesse (ou seria estendesse?) para toda a população!

A onda anticomunista, que deveria se chamar “delirar contra um delírio”, pois é parecida com o Dom Quixote lutando contra os moinhos de vento, mas sem a nobreza e a dignidade do Cavaleiro da Triste Figura, afinal, entre erros e perigos, o comunismo tem ideias muito mais simpáticas do que as do seu antagonista, que só tem erros e perigos; esta onda anticomunista é o principal entrave ao fortalecimento de políticas públicas assistenciais. É claro que ela esconde gente que tem medo de ver seus lucros mesquinhos “desviados” em prol das pessoas que mais necessitam, das empresas menores que, no entanto, em conjunto trazem mais benefícios do que os gigantescos CNPJs, e no caso das religiões, acho que é só ranço mesmo (exceto pelas referidas legalizações das maldades já praticadas).

O caráter delirante do anticomunismo vê uma espécie de Selo de Marx em qualquer tipo de ajuda assistencial (quase que exclusivamente quando é dirigda às pessoas, é bom lembrar), mas também eles vêem (ou veêm? enfim, enxergam) o Selo de Marx em quase tudo, estão mais embriagados de Marx que toda a China, parece. Mas se for para aprovar medidas assistenciais que beneficiem a população, melhor aprová-las sob o nome de socialismo (mesmo não sendo “propriedades” socialistas) do que negá-las em nome de um anticomunismo que fica até mesmo aquém de um delírio quixotesco. Não se trata de redimir o comunismo, mas de (que me perdoe o venerável Pio XII) preferir o ônus de ter que explicar depois que estes direitos não são comunistas, ao ônus de negar estes direitos por causa de ranço, delírio e confusão.

A liberdade e o bem

A liberdade e o bem são duas coisas diferentes entre si, só que esta diferença quase desaparece quando se considera o seu funcionamento, mais ou menos como o que acontece com o coração e o sangue, que só sustentam a vida movimentando-se unidos.

Se a ideia da união necessária entre a liberdade e o bem estiver correta, a moralidade se torna uma condição indispensável para a liberdade, pois a opção pelo bem irá trazer consigo a liberdade, e a opção pelo mal irá tolhê-la.

O problema é que a própria moralidade pode ser invadida pelo mal e, sem trocar de nome, se transformar em moralismo, que substitui o bem pela vaidade e reduz a liberdade à vanglória. Não que a vaidade seja má, mas ela se torna assim quando toma o lugar do bem, como na imagem de um homem doando comida com uma das mãos e segurando um pau de selfie com a outra. Este tipo de moralismo, que já é ruim, é ainda menos pior que o moralismo de quem tem uma vida correta e, vangloriando-se da sua correção, se permite jogar na cara dos outros os seus erros, quase sempre com a desculpa de denunciá-los para que possam ser corrigidos. A denúncia do mal é sempre necessária, mas ela, por si só, não corrige ninguém e o moralista deliberadamente ignora isto.

O moralismo acaba arrastando consigo a moralidade para o fundo do esgoto (não porque esteja lá, mas porque o que está no fundo do esgoto faz questão de exibir um letreiro gigantesco escrito “moralidade”), enquanto lutamos pela liberdade, dissociada da moral mas confundida com um bem (não que a liberdade não seja um bem, mas ela, sozinha, não é o bem). E é aqui que entra a questão dos fins e dos meios.

A liberdade a qualquer preço se degenera a ponto de se tornar a liberdade de fazer o mal, o que por si só acaba com a liberdade como se ela comesse a si própria até acabar, mas antes disto, de qualquer forma, a maldade dos meios já havia intoxicado a liberdade. É por isto que os fins não justificam os meios: é porque eles contaminam os fins como na autofagia da liberdade conquistada a qualquer preço.

Portanto, condicionar a liberdade ao bem não significa agregar a ela, ou condicioná-la, a um moralismo; mas significa conquistar a liberdade pelo bem, que não é o único caminho para conquistá-la, mas é o único caminho de mantê-la depois de conquistada.

O sacrifício de Cristo e a submissão das mulheres

Na maioria das vezes em que alguém tenta justificar o próprio machismo na passagem de Ef 5,21-32, costuma começar em “mulheres sejam submissas” e terminar em “aos seus maridos”, pulando os versículos anteriores e posteriores como se eles fossem as linhas arranhadas de um disco antigo. Mas a passagem começa com “Sede submissos uns aos outros” e continua “no temor de Cristo”, para só então falar primeiro das mulheres, depois dos homens e enfim da Igreja, sem distinguir em que ponto do texto, especificamente, o assunto passou a ser a Igreja – cuja submissão a Cristo ninguém nega.

Se a Palavra de Deus não muda, isto não se aplica às distorções secularmente aceitas, e menos ainda quando estas distorções fundamentam e justificam injustiças. Portanto, antes que alguém pense que as mulheres devem ser submissas aos maridos, deveria lembrar que, antes, é necessário submetermo-nos uns aos outros. Como isto funciona? Eu não sei, mas quem pretende submeter as mulheres aos homens deveria, pelo contrário, resolver isto, pois se esta submissão mútua vem antes da (pretensiosamente religiosa) submissão feminina, é porque deve ser mais importante, e sugerir a submissão das mulheres suprimindo esta submissão mútua é somente fazer dos próprios desejos a Palavra de Deus – assim como sugerir esta submissão em algum momento posterior também, afinal, mesmo em uma interpretação literal, Paulo diz para as mulheres que “submetam-se”, e não para os homens que “submetam-nas”, ainda que menos errado não seja o mesmo que correto.

Cristo, por exemplo, nunca disse que os convertidos de fora do judaísmo deveriam observar a lei de Moisés, nem que não deveriam, e a Igreja deliberou, no “concílio” de Jerusalém (At 15, 5-21), que fora a abstenção “das impurezas da idolatria, da imoralidade, da carne asfixiada, e do sangue” (v. 20), o resto não era problema (e mais tarde os dois últimos itens também caíram); inspirada pelo Espírito Santo, a Igreja submeteu-se à vontade de Cristo em um caso sobre o qual Cristo não deixou nenhuma orientação expressa. Se existem orientações expressas de Cristo (“amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo”, ṕor exemplo), nenhum marido tem legitimidade alguma para dar outras orientações expressas que não sejam as que Cristo deixou – em outras palavras, sua autoridade se fundamenta em Cristo de modo semelhante à autoridade daquele rei do Pequeno Príncipe, a quem o sol se submete ao se pôr todos os dias na hora em que tem que se pôr, e ao nascer todos os dias na hora que tem que nascer e, sabiamente, não manda o sol fazer nada diferente disto.

Colocar as coisas nestes termos pode até parecer piada, mas não é: nas questões sobre as quais Cristo não deixou nenhuma orientação específica, a Igreja, assistida pelo Espírito Santo, até hoje decide (e decide conforme a vontade de Cristo, a quem é submissa); as mulheres, submissas ao marido como a Igreja a Cristo, também. E Cristo não está tentando convencer a Igreja a não trabalhar fora de casa, não está exigindo que a Igreja satisfaça seus caprichos masculinos, não fica dizendo à Igreja qual roupa deve vestir, nem cobra o jantar pronto quando chegar em casa; muito menos é violento, infiel, escorado e indiferente, por exemplo (em exemplos que nem deveriam mais fazer sentido).

Os maridos, que são o Cristo nesta passagem de Efésios, “devem amar suas esposas como amam seu próprio corpo” que, segundo A Bíblia sem Mitos (p. 126), significa o próprio “eu” na antropologia semítica (que era a compreensão do ser humano a partir da qual tanto Paulo quanto Cristo escreveram ou disseram o que está registrado, sob a inspiração do Espírito Santo, na Bíblia), e somente isto poderia bastar para desfazer qualquer interpretação machista desta passagem de Efésios; mas antes de colocar a medida do amor neles próprios, Paulo colocou como medida o amor de Cristo pela Igreja, que se entregou por ela.

Talvez esta passagem de Efésios se resuma, enquanto “conselheira matrimonial”, ao seu início (“sede submissos uns aos outros”), aconselhando as esposas a levarem em conta o marido naquilo que elas decidem, e os maridos a tratarem a sua esposa em pé de igualdade (“como a seu próprio corpo”, considerando aí “corpo” no sentido de “eu”, conforme o livro mencionado acima), o que seria uma forma de submissão mútua.

Seja como for, o pano de fundo de qualquer interpretação bíblica é o sacrifício de Cristo para a nossa salvação, e não o sacrifício dos outros em prol dos próprios sentimentos de superioridade.

A ostentação política da fé

Se há alguma grande diferença entre a declaração de Pedro (Mt 16,16), “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” e a do espírito impuro no Evangelho de ontem (Lc 4,34), “eu sei quem és: o Santo de Deus” (exceto pelo alinhamento de ambos para com Deus), talvez quem estude teologia a fundo saiba, porque os dois não me parecem estar dizendo coisas muito diferentes além das palavras que usaram.

A fé em Deus vale por si só, e só Deus sabe o quanto às vezes a sua manifestação pode sair truncada, por isto que só cabe a ele julgar, por sinal, especialmente quando é para condenar a falta de fé de alguém, mas mesmo quando se julga que alguém tem uma grande fé, quem sabe mesmo o tamanho dela é Deus.

E é isto o que, na mistura entre fé e política, degrada tanto a fé quanto a política. Não que esta degradação mútua sirva como argumento para fingir que as duas coisas não se relacionam, quando na verdade talvez se relacionem mais profundamente do que possa parecer, mas a fé em Deus como bandeira política pode ser erguida tanto pelo bolsonarismo quanto pelo demônio (que inclusive tem mais fé em Deus do que qualquer um, bolsonarista ou não), o que não desbota a bandeira, mas também não faz dela um certificado de idoneidade.

O melhor que se pode oferecer a qualquer pessoa é a fé em Deus, mas quando um político só tem a oferecer como plataforma esta mesma fé em Deus, ou sua fé ou sua política é apenas uma fachada para sabe-se lá o que. A fé em Deus não leva à política (a menos que o monge copista tenha se enganado e em vez de “batizai” devesse ter escrito “elegei-vos em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” em alguma passagem do NT que eu não vou procurar agora).

A fé em Deus pode determinar o modo como a pessoa faz política, mas muitas coisas também podem determinar, e a despeito da gigantesca importância que há em ter fé em Deus, ela por si só não é, ou não deveria ser, requisito nem muito menos plataforma política. Mas, repetindo, isso não significa que fé e política estariam melhor longe uma da outra. Na própria Bíblia há ótimas plataformas políticas (alimentar o órfão, proteger a viúva, alimentar quem tem fome, agasalhar quem tem frio, etc.) e até mesmo preferências políticas (como em 1Sm 8,9 – embora isso não se aplique ao reinado do próprio Deus, como se vê no versículo 7). Jesus Cristo não aprovava nem a ocupação romana, nem a violência contra esta ocupação; Abraão intercedeu por Sodoma, equilibrando-se em uma linha fina entre a humildade e a ousadia (pedindo desculpas pela insistência sem deixar, porém, de insistir), Ciro, conquistou a Babilônia de Nabucodonosor e encerrou o exílio babilônico certamente movido por Deus, mas o fez agindo politicamente (e não como um profeta que gritasse “ouvi, Israel”), e os pŕoprios profetas agiam politicamente também, entre tantos outros exemplos.

Mas até mesmo a fé mais gigantesca em Deus não é motivo para votar nem deixar de votar em ninguém, embora a fé não seja irrelevante: defender o porte geral de armas em detrimento de uma política de segurança pública, o crescimento da economia em detrimento da saúde, a devastação da natureza em favor de maiores lucros, são posicionamentos (entre outros) que não demonstram nenhuma falta de fé em Deus, mas sim que os fiéis que foram eleitos não tem a menor dificuldade em por a fé de lado para ignorar a maldade das suas decisões.

Nada justifica que alguém esconda a sua fé, mas quando ela precisa ser ostentada em troca de votos, é um sinal seguro de que ali a fé não vai conversar com a política, a não ser como uma pretensa justificativa para a maldade, e para angariar apoio aos projetos diabólicos escondidos sob o véu da ostentação da fé.

Isenção espiritual (1/1)

Jesus Cristo veio ao mundo com uma missão espiritual, redimindo espiritualmente a cada ser humano quando sacrificou-se (e enquanto ainda sacrifica-se) na sua Paixão e ressuscitou no Domingo, tanto é que, surpreendentemente, repreendeu até mesmo o materialismo excessivo do povo quando percebeu que este povo o seguia somente para encher a barriga (Jo 6,26), apesar de, pelo contrário, usualmente repreender e condenar, a favor do povo oprimido, os poderosos opressores. Um povo oprimido é quase sempre um povo faminto, já que uma das primeiras providências dos opressores é, de um jeito ou de outro, fomentar a fome, seja para enfraquecer fisicamente as possibilidades de resistência daqueles que oprime, seja para forçar aqueles que oprime a dependerem do próprio opressor para comerem – e Jesus passa por cima de tudo isto para criticar quem o seguia por comida.

Mas se a fé em Deus não se sustenta no materialismo de quem pretende que esta fé ponha comida no prato (ou dinheiro na conta, o que é muito mais comum), a desconexão com a realidade material que pretende “ganhar um fuscão no Juízo Final” (Comportamento Geral – Gonzaguinha) purificando-se de qualquer materialidade revela um déficit de fé que é nocivo, não pelo déficit em si (quem é que não precisa repetir o “eu creio, ajude a minha falta de fé” de Mc 9,24?), mas por esconder este déficit sob aquela pureza.

E realmente esta isenção de mundo purifica muito os isentos, sempre rezando e ligados em Deus, mas (exceto por um retiro espiritual temporário para fortalecimento da fé) isto os deixa semelhantes aos piores materialistas gananciosos que acumulam riqueza para si sem reparti-la com o resto.

Neste tipo de acumulador, egoísta e ganancioso, é até fácil identificar o seu materialismo nocivo; já o materialismo de quem não é egoísta nem ganancioso, mas (sendo rico ou não) procura promover materialmente o bem alheio, é mais difícil detectar a chaga materialista, e mais difícil ainda apontá-la, por causa da nobreza que há na promoção alheia – e de qualquer forma, é muito menos pior um materialismo solidário do que um egoísmo materialista. Mas este materialismo altruísta é uma versão não-religiosa daquela espiritualidade isenta do mundo, e no fim das contas ambos separam a alma e o corpo no melhor estilo “golpe do Dr. Estrange”, cada um guardando para si uma porção da realidade enquanto renega a outra.

E é esta espiritualidade isenta do mundo que condena coisas como o Concílio Vaticano II, o método histórico-crítico de interpretar a Bíblia, o uso de conceitos sociológicos e antropológicos na teologia e, também, um certo tipo de espiritualidade socialmente engajada. Este tipo de espiritualidade tem os seus riscos óbvios (dos quais a Teologia da Libertação poderia ser um ótimo estudo de caso), mas são os mesmos riscos que correram os servos da Parábola dos Talentos (Mt 25, 14-30) que não esconderam os talentos que receberam em um buraco para devolvê-los intactos ao seu dono – a parábola fala dos que multiplicaram os talentos e do que escondeu o que recebeu, mas não da possibilidade de perder os talentos na tentativa de fazê-los render, se bem que talvez isto esteja implícito tanto no elogio dos que os fizeram render, quanto na condenação do que escondeu o talento.

A esta santidade com pés de barro, o papa Francisco contrapõe “sujar os pés na lama”, que é o resultado de encarnar a espiritualidade (como Maria encarnou o Evangelho, nas palavras do Documento de Puebla, 301) em vez de esconder-se nela para deixá-la intacta às custas de negá-la aos outros. (continua)

Religião e cultura

Uma religião inevitavelmente produz algum tipo de cultura, tanto quanto reproduzirá alguma cultura. No caso do cristianismo, alguns elementos da cultura religiosa onde ele surgiu foram mantidos nos primórdios, como a decisão “conciliar” de manter a proibição contra comer carne de animais sufocados (que deve ter perdurado por um bom tempo) por exemplo, enquanto que outros elementos culturais incompatíveis com a fé cristã foram proibidos, tal como a poligamia ou algumas práticas religiosas comuns entre os povos gentios do período bíblico, por exemplo.

Apesar desta relação intrínseca entre religião e cultura, a fé não é um elemento cultural, apenas o é a cultura que se origina dela (ou que se reproduza nela, como o casamento, que apesar de assumir características próprias como matrimônio cristão, não foi inventado pelo cristianismo). E embora a Igreja trabalhe tendo em vista a inculturação do Evangelho (em termos muito diferentes e distantes dos que levaram aos genocídios dos séculos passados, como se pode ver neste texto do então cardeal Bergoglio), a fé não se confunde com a cultura.

Não foi a evangelização que produziu estes genocídios e outros horrores que mancham com sangue a história do cristianismo, mas sim, justamente, a impermeabilidade da cultura, a ocidental, no caso, ao evangelho. Pelo menos é o que se pode perceber pela contínua e intransigente reprodução dos piores aspectos culturais destes tempos, ainda por cima justificada como defesa do cristianismo.

Embora qualquer pecado não deixe de ser pecado pela força do desejo de alguém, nem por maioria de votos, não há nenhum que justifique a misoginia, o racismo, a homofobia e inúmeras outras violências que hoje se comete em nome da defesa da fé cristã. Também não há decreto de 1949 que justifique as perseguições contra outros cristãos, assim como não há zelo religioso que as justifique quando são contra outras religiões.

Aliás, se trocar “opção pelos pobres” por “opção pelo bolsonarismo”, as instruções Libertatis Nuntius e Libertatis Conscientia passam a se aplicar à “bolsoteologia” (mais anti-cristã que qualquer Nietzsche) em grau muito maior do que se aplicam à Teologia da Libertação dos dias de hoje.

A fotógrafa Boushra Almutawakel, autora das famosas fotos da mãe e filha usando roupas coloridas que aos poucos vão se descolorindo e, depois, desaparecendo dentro de burcas, disse em uma entrevista que a opressão, representada nas fotos, dá a impressão de que “É como se a cultura fosse muito mais forte do que a religião.”, o que se repete na “bolsoteologia” tão fortalecida em 2021.

E enquanto a nossa cultura se mantiver impermeável ao Amor pregado (inclusive a uma cruz, antes de ressuscitar) no Evangelho, vamos continuar deteriorando as nossas almas (pretensamente) em nome de Deus.

A desfiguração de Cristo

Acreditar em Deus sempre implica em um comprometimento que, no fim das contas, diz mais sobre quem crê do que sobre Deus – mais ou menos como o Pedro de Freud, que quando fala sobre Paulo, revela mais de si mesmo do que de Paulo.

Não que Deus seja como o bicho-papão de Harry Potter, que neste caso mudaria conforme a fé e não conforme o medo de quem se aproxima; mas se Deus é tal como é seja lá como for, ele não é como quer a fé do crente só porque sua fé quer assim. Deus – ao contrário do bicho-papão, convém dizer – se revela tal como é mas entre véus e sombras provenientes de nós, e no entanto não se reduz a estes véus e sombras, o que deveria ser lembrado tanto quanto por quem fala de Deus quanto por quem ouve o que se fala, especialmente quando quem fala se esquece que “ninguém jamais viu o Pai, a não ser aquele que vem de junto de Deus” (algum versículo entre Jo 6,41 e 51).

A fé no poder, na supremacia e na condição absolutamente vitoriosa de Deus, muito em voga hoje em dia, não está de maneira nenhuma errada; mas a parte do poder, da supremacia e da vitória é demasiadamente propagada, a ponto de substituir o próprio Deus, como se pode ver em quem acredita que a derrota, a miséria e as desgraças significam a ausência de Deus, quando na verdade isto é consequência da ausência de fé (não necessariamente ausente em quem sofre estes males) ou, pelo menos, deste deslocamento da fé, de Deus para a vitória, o poder, etc.

Às vezes os males de alguém podem até ser pela falta de fé em Deus, mas eu aposto (quer dizer, chuto, porque saber mesmo eu não sei) que na maioria das vezes, refletem a ausência da fé da coletividade em seu entorno que poderia ter evitado ou minimizado as consequências destes males, por exemplo(segue um possível gatilho): um jovem que se mata, como este que brincou de beijo gay, foi hostilizado como se fosse mesmo gay e se matou pela homofobia que sofreu; não dá para afirmar, pelo suicídio, nem que tinha nem que não tinha fé em Deus, mas a falta de fé alheia, dos que foram hostilizá-lo no tik-tok, é muito evidente.

Se bem que deduzir que este tipo de pessoas, que vai hostilizar outras na internet, não acredita em Deus, também não está certo: se a fé que tem em Deus inclui a permissão para a homofobia (que não poupou nem o garoto que depois tentou explicar, em vão, que nem gay era), então talvez haja sim fé, só que em algum tipo de divindade homofóbica, um Senhor dos bullyings (e não dos exércitos, como na Bíblia) e pai da intolerância – que em qualquer caso ou significa um erro grave de qualquer igreja cristã minimamente decente, que se enganaria muito ao pregar um Deus que que é amor (quem sabe por uma adulteração dos monges copistas, que podem ter trocado um eventual “ódio” por “amor” no texto original); ou significa uma fé que desconfigura Deus, tal qual Cristo desfigurado de tanto sofrimento na Paixão (e crer em Cristo mesmo desfigurado pela violência é muito diferente de desfigurá-lo pela violência).

Já a fé em um Deus que se fez criança, e até menos ainda, um aglomerado de células que iam virar um feto (para depois nascer, crescer, etc.), que certamente é muito mais difundida, é a que parece estar menos em voga hoje em dia, pois não foi este tipo de fé que foi propagada na vitória deste governo eleito (segundo sua própria crença) em nome de Deus – se bem que todos os reis de Israel também governavam em nome de Deus, e a maioria deles foi desaprovada pelo próprio Deus.

A falta de fé é uma condição sombria, mas não é o ateísmo que está nos levando a ficar na fila da doação de ossos no açougue (entre outros exemplos da nossa decadência social sob este governo), e sim esta fé que desfigura Deus e também ao próximo, na medida em que a fé em Deus não proíbe que o próximo seja tratado pior do que os cães que antigamente eram os que corriam atrás dos ossos para roer os restinhos de carne presos neles.

Flávio, Kundera, Paulo e Cristo (1/3)

O que significa a compaixão de Cristo, que ele tem por nós a ponto de sacrificar-se por nós na cruz (não sem antes nascer por nós, curar-nos por nós, etc.)? No vídeo Reflexão do Evangelho do dia 14 de janeiro de 2021, o padre Flávio nos explica: «… Esse procedimento ousado [o modo como o leproso aborda Cristo] provoca em Jesus o sentimento de compaixão. A compaixão é aquele sentimento que nos mobiliza, pois nos faz sentir a dor do outro (…) é fazer da dor do outro a sua própria dor. Jesus se sente irmanado na dor do leproso…» (no terceiro minuto do vídeo, entre os segundos 17 e 48).

Deus é infinitamente maior do que nós, e toda esta grandeza, obviamente livre de quaisquer pecado, não se degrada em soberba, pois mesmo incomparavelmente maior do que nós, Deus humilhou-se a ponto de morrer por nós (“por nós” porque morreu em lugar de nós, mas também “por nós” no sentido de que temos participação neste homicídio deicida).

Portanto a origem da compaixão é o rebaixamento de um ser superior à inferioridade de um ser menor. Mas nós, que devemos nos tornar “outro Cristo” (conforme algum documento da Igreja que não me lembro agora e nem tenho tempo de procurar), também precisamos guardar as devidas proporções nesta imitação.

O que nos cabe na nossa (fazendo aqui um coro com Maria no Magnificat) pequenez é, como disse o padre, fazer da dor do outro a nossa própria dor, mas não como quem se rebaixa à dor alheia, pois a criatura compassiva em condições de assumir a dor alheia não o faz a partir de sua própria fortaleza, e sim da sua própria fragilidade.

Aglomeração espiritual

Todo o texto do Evangelho de hoje, Mc 1,29-39, gira em torno do que é público, comunitário, coletivo: a sogra de Pedro passa a servi-los depois de ser curada, a cidade inteira se ajuntou na porta da casa de Pedro, e depois de rezar, Cristo foi a outras aldeias na redondeza para proclamar o Evangelho por lá também.

A única cena que destoa de tudo isto é a oração de Jesus, solitária (quando ainda estava bem escuro e num lugar deserto), antes da hora de acordar, como se fosse uma culminância de todo o trabalho do dia anterior e também a abertura dos trabalhos do dia.

Em uma outra passagem, que eu não vou ir pesquisar agora qual é, Jesus deixa clara a importância da oração coletiva (“quando dois ou mais se reunirem no meu nome…” etc.), e a Bíblia como um todo, também. Mas aparentemente isto serve como manifestação pública da fé e para fazer pedidos – o que talvez demonstre o quanto é mais importante pedirmos coletivamente, mais do que individualmente.

Mas agora Jesus vai rezar sozinho, e se a oração coletiva é necessária, a oração individual é indispensável. É urgente, por exemplo, que venham logo as condições sanitárias para podermos nos reunir em oração, seja em missas (e em cultos, etc.), procissões, reuniões informais de oração e por aí vai, mas o cuidado para com a vida é uma prioridade anterior em uma situação temporária (apesar de ser longa, muito longa) como é a situação nesta pandemia.

Porém, não há pandemia que impeça a oração individual, e ela pressupõe, antes dos pedidos para que Deus resolva os nossos problemas individuais, a reinserção da coletividade neste ato solitário. Pelo menos é a oração que se deduz desta passagem do Evangelho de hoje. Toda ela é perpassada pela multidão: uma multidão que vai até Jesus antes dele ir rezar no deserto, e outra multidão que vai ser procurada depois dele ir rezar no deserto.

Logo depois de ser curada a sogra de Pedro vai servir os outros, que por sua vez, vão servir a mais outros (dá para supor que uma aglomeração na frente da porta de alguém, cheia de gente aguardando “atendimento”, fragilizada inclusive por doenças, tenha dado bastante trabalho para os auxiliares de Jesus organizarem a bagunça), e toda a logística de ir às aldeias vizinhas ainda mais.

A oração de Jesus, solitária em um deserto, se dá no meio disto. Ele não disse “pára tudo!!” no meio do fervo, mas foi rezar, entre uma rodada e outra de trabalho, pelo trabalho em prol da multidão.

Parece, assim, que a oração é, antes de ser o momento de pedir por si, de interceder pelos outros, de restaurar as energias esgotadas, parece ser antes o momento de reunir, espiritualmente, a coletividade na própria individualidade, um momento de união com Deus que, justamente por causa de Deus, nos põe em união com todas as pessoas.

Antigos espíritos do mal

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Às vezes é difícil criticar os alguns tipos de conservadores por causa do jogo ambíguo que eles fazem com com algumas ideias. Não que seja difícil dizer “ora, mas que bobagem” depois de ver algumas delas, mas detalhar a bobagem é um pouco mais complicado.

Por exemplo: o aborto é pecado, mas o abandono dos filhos pelos pais também; a homossexualidade é pecado, mas olhar as mulheres com desejo, também; defender o comunismo é pecado, mas defender o individualismo egoísta (redundância) da precarizações das condições do trabalho, também. Em todos estes pares, eles só se escandalizam com o primeiro termo, e se manifestam alguma contrariedade contra o segundo, é com o mesmo entusiasmo do Gênio defendendo o Jafar.

Estes protestos anti-pecados, mesmo feitos “em nome de Deus”, não garantem a anuência de Deus, ainda que, em essência, digam verdades. Por exemplo: “sei quem tu és: o Santo de Deus” (Mc 1,24) tem toda a cara de um genuíno e profundo louvor da alma que encontra a imensidão do amor de Deus – mas saiu da boca de um espírito maligno no evangelho de hoje.

Isto não significa, é óbvio, que proclamar que Cristo é o Santo de Deus nos coloque em pé de igualdade com o diabo; mas significa, sim, que até mesmo as verdades mais profundas, sem perderem a própria legitimidade, não legitimam quem as proclama. E Cristo não hesita em calar quem a proclama com as piores intenções (cf. Mc 1,25).

Isto não significa calar esse tipo de conservadores, mas significa, sim, que apenas falar a verdade, como quem diz “postei e saí correndo”, não serve para nada, ou, pelo menos, para nada de bom, pois esse tipo de coisa até o diabo faz.

*Imagem: https://docecaneca.com.br/produto/caneca-mumm-ra-2/

Convertei-vos

O Porta dos Fundos tem um vídeo chamado Jerusalém Alerta* que, parodiando o sensacionalismo de programas como o Cidade Alerta, “denuncia” aos cidadãos o surgimento do cristianismo. O apresentador contrapõe os novos costumes que a nova religião representa aos costumes tradicionais da sociedade de então, como o monoteísmo diante do tradicional politeísmo, a pouco hollywoodiana concepção de Cristo (se fosse Zeus tinha engravidado Maria até na coxa, quisesse ela ou não) e por aí vai.

No evangelho de hoje o apresentador poderia encontrar outro sinal de que a nova religião, o cristianismo, não era boa coisa: o ponto de partida da pregação do evangelho que Cristo fez começou a partir da prisão de João Batista.

O evangelho não começou a ser pregado porque Cristo viu os céus se abrirem em sua glória ou porque ele viu a beleza de Deus no sorriso de uma criança, nem motivado por uma visão do inferno repleta de efeitos especiais, mas porque um profeta foi preso.

A Boa Notícia começou a ser divulgada depois de uma má notícia.

É claro que Deus não é uma espécie de urubu que fica esperando as desgraças para fazer alguma coisa (como se Cristo ficasse marcando os dias em um calendário entitulado “João já foi preso?” para começar a pregação), mas de fato Cristo não ficou esperando manifestações transcendentais para agir, e sim o fez depois de algo tão terreno, e também infeliz, como uma prisão injusta.

Apesar de todos os milagres, tanto ao longo dos quatro evangelhos quanto ao longo da história da Igreja, o cristianismo acontece, mesmo, no feijão-com-arroz dos tempos comuns (e tantas vezes difíceis) em que vivemos (se bem que o preço do feijão e do arroz já não permitem mais associá-los ao cotidiano das coisas simples e comuns; enquanto Cristo multiplica os pães e os peixes, o “governo cristão” multiplica os preços dos alimentos).

As manifestações religiosas cheias de pompa e circunstância são indispensáveis e necessárias (tipo as missas solenes com o evangelho incensado), mas isto só tem sentido a partir daquilo que se vive no dia a dia: o evangelho vivido dentro dos ônibus lotados, do trabalho explorado, dos malabarismos para suprir as necessidades com um salário que não paga nem a metade, e da luta para que todos possamos desfrutar de condições melhores que as que nos oferecem – como sistemas de transporte público mais dignos (ao invés de condições facilitadas para comprar carros), condições dignas de trabalho (ao invés de precarizações que nos transformem em “empreendedores”), salários justos, etc.

Cristo não começou a pregar o evangelho a partir da ocorrência de uma prisão injusta porque dependia de um evento funesto para arregaçar as mangas, mas sim porque o evangelho é libertação. Esta libertação, que deve ser primeiramente espiritual em cada indivíduo, leva necessariamente e dentro dos termos evangélicos à libertação mais terrena das condições opressivas às quais somos submetidos diariamente, como um sinal.

A pregação de Cristo não libertou João Batista da prisão, o que demonstra que não é o resultado que é o objetivo (como se Deus fosse um gerente cobrando uma melhora nos gráficos), e sim a luta, que deve ser a manifestação concreta da libertação da pregação do evangelho que Cristo faz, todos os dias, aos nossos corações.

*Na verdade nome do vídeo é “Zeus Castiga”.

Aglomerações de fim de ano

La sociedad tecnológica ha logrado multiplicar las ocasiones de placer, pero encuentra muy difícil engendrar la alegría.

Paulo VI – Gaudete in Domino, 8.

As festas clandestinas e as aglomerações à beira-mar demonstram como a necessidade de prazer aprisiona cada pessoa, a ponto de ignorar que estamos em meio a uma pandemia sem termos uma estrutura hospitalar adequada e ainda sem vacina, pelo menos no Brasil – quer seja uma ignorância sincera, quer seja uma ignorância “por opção”, pois às vezes pode ser mais confortável minimizar os riscos ou considerar os cuidados necessários como exageros fundamentados em teorias da conspiração.

Geralmente é o sexo desregrado que serve para os moralistas apresentarem como exemplo de que as pessoas buscam apenas o prazer e o colocam no lugar de Deus, mas eles ignoram que assim como a Igreja vê no sexo uma ferramenta que serve para outra coisa que não seja o prazer, muitas pessoas fazem sexo sem ser nem pelo prazer nem pelo que a Igreja ensina ser o uso adequado do sexo. Por isto, a fixação do moralismo no comportamento sexual, o prazer prossegue “hedonizando” tudo o que toca, como um Rei Midas que transforma tudo em satisfação pessoal, desejo e gozo intenso, sem que se questione o – parece nome de filme pornô – império do prazer, que não é bem um império mas uma necessidade que se torna maior do que si mesma, a ponto de se tornar quase um elemento primordial, como o fogo era para Heráclito.

Acontece que o problema do prazer é o espaço da alegria que ele ocupa, impedindo-a de poder se assentar no seu lugar adequado. É semelhante à diferença entre um refrigerante como a Pepsi ou a Coca-cola e um suco natural que não tenha sido adoçado: alguém pode até alegar que a “cola” destes refrigerantes vem da noz-de-cola, mas ainda assim a diferença entre eles e o suco natural faz de ambos coisas diferentes, e não variações da mesma coisa. Pois o prazer, que não exclui necessariamente a alegria, também não é ele próprio a alegria, que é outra coisa muito diferente.

E o que é a alegria? Cristo. Para mais detalhes, vá procurar encontrá-lo.

Mas o assunto principal deste texto não é a sugestão do parágrafo acima – apesar de ele ser a única coisa importante do texto, pelo menos no sentido da relevância (pois este texto é apenas uma divagação mal-escrita). O assunto principal é a substituição da alegria pelo prazer que fazemos, uma constatação feita a partir da citação do texto de Paulo VI, que eu encontrei na exortação apostólica Evangelii Gaudium (parágrafo 7). Este texto é considerado o roteiro do pontificado do Papa Francisco, uma consideração que eu li em vários lugares, mas principalmente no livro A Teologia do Povo, de J.C. Scannone (p. 17), sobre “as raízes teológicas do Papa Francisco”, que é o subtítulo e também um resumo exato do livro.

Assim, apesar de a necessidade de prazer ser uma necessidade que, dentro de suas próprias fronteiras, é apenas mais uma necessidade, como por exemplo comer ou se divertir, hipertrofiada como um fisiculturista anabolizado do jeito que vem sendo, o prazer se torna uma prisão triste e desoladora, fazendo até o soma de Admirável Mundo Novo parecer uma metáfora inocente. Não é que ninguém aguente mais a pandemia, e nem suporte mais esse isolamento, mesmo sendo assim, meia-boca, como tem sido: aglomerar faz falta, nem que seja pelo prazer de reclamar que tem muita gente e era melhor ter ficado em casa. Mas as aglomerações de fim de ano, que devem ter deixado os aglomerados saciados do prazer que buscavam, são apenas uma fase de um processo de tristeza que eles tentaram resolver com este prazer, e que vai voltar, só espero que não na forma de uma entubação hospitalar típica desta pandemia.

Seria melhor – ou no mínimo mais saudável – tentar procurar a alegria, para poder compartilhá-la quando pudermos aglomerar sem o risco do coronavírus, do que buscar no prazer o que ele, coitado, não pode oferecer.