Por favor leia também o alerta depois do fim da lista 🙂
«… alguns exemplos de discrepâncias entre textos nos quais supostamente Deus teria revelado algo que, depois de tudo, resulta incoerente com outra revelação ou informação [retirados do livro A Bíblia sem mitos: uma introdução crítica, de Eduardo Arens, das páginas 220 a 222].
- Deus advertiu a Adão e Eva que, “no dia (beyom) em que comerem da árvore da ciência do bem e do mal, morrerão sem remédio” (Gn 2,17). Mas a serpente lhes assegura que “de maneira alguma morrerão”, quando comerem do fruto proibido (3,4). Pois bem, comeram do fruto e não morreram nesse dia, tal como a serpente o havia antecipado, mas muitos anos mais tarde. A morte em questão era física, real, não moral ou simbólica (relacionada com a alma, uma ideia grega?), coisa que de nenhum modo sequer se sugere, além de que seria uma ideia totalmente alheia ao povo judaico.
- Deus disse a Abraão que seus descendentes seriam oprimidos “durante quatrocentos e cinquenta anos” (Gn 15,13), mas em Ex 12,41 se indica que a opressão no Egito durou 430 anos. Não se sabe de nenhuma outra “opressão”.
- Causa surpresa que, em Ex 6,3, Deus diga não ter-se dado a conhecer como Iahweh, senão como “El Shadday (Deus todo-poderoso)”, quando ao longo de todo o livro do Gênesis aparece identificando-se como Iahweh.
- É chamativo o número de vezes em que Deus se refere a si mesmo como “Iahweh”, como se tratasse de outra pessoa: veja Gn 18,19; Ex 3,12; 16,29; 27,21 etc. No Decálogo, em Ex 20,2-6, fala de si mesmo na primeira pessoa (eu), mas subitamente, a partir do v. 7, passa a falar de si mesmo na terceira pessoa.
- Em Ex 11,1, Deus antecipa a Moisés que o faraó mesmo “o expulsará daqui (do Egito)”, mas é contradito por 14,5ss.
- Segundo Ex 12,5, Deus ordenou a Moisés que para a Páscoa sacrifiquem “um animal sem defeito, macho, de um ano. Escolhê-lo-ão entre os cordeiros e cabritos”. No entanto, em Dt 16,2 o mesmo Deus ordena-lhes sacrificar “uma vítima pascal de gado maior (= bois) e menor”, e pode ser “cozida” (v. 7) em vez de ser “assada”, como se ordenou em Ex 12,8.
- O terceiro mandamento do Decálogo, em Ex 20,11, dá como motivo para a observância do sábado como dia de repouso o descanso de Deus depois da criação, mas Dt 5,15 dá como motivo a libertação do Egito.
- Em Is 2,4 o profeta anuncia da parte de Deus que “forjarão de suas espadas arados e de suas lanças charruas”, mas Joel ordena também da parte de Deus: “Forjem espadas de seus arados e lanças de suas charruas” (3,10; 4,10).
- Ezequiel prediz no cap. 26 a destruição de Tiro, mas em 29,18ss Deus lhe dá a conhecer que Nabucodonosor não conseguiu o propósito antes anunciado. A profecia antes referida a Tiro agora é substituída por outra semelhante, mas referindo-se ao Egito, que desta vez, sim, corresponde aos fatos. Quem se equivocou com relação a Tiro?
- Enquanto em Amós 9,7ss o Senhor anuncia a exterminação de Israel, logo depois (v. 9s) se corrige e afirma que somente “morrerão todos os pecadores de meu povo” e não “todo o reino pecador”.
- Até o próprio Jesus se teria ocasionalmente equivocado. O anúncio de que de Jerusalém não ficaria “pedra sobre pedra” (Mc 13,12 e par. [= passagens paralelas nos outros Evangelhos]) não se cumpriu: veja o muro das lamentações, que é parte do muro daquele tempo. Que dizer sobre a antecipação da negação de Pedro? Segundo Mc 14,30, Jesus lhe teria dito “antes que o galo cante pela segunda vez”, mas segundo os outros evangelistas seria antes que um galo cante” pela primeira vez (Mt 26 34.75; Lc 22,24.61).
- Segundo Mt 10,10, Jesus teria instruído seus discípulos a não levarem pelo caminho “nem alforje, nem duas túnicas, nem sandálias, nem bastão”, mas, de acordo com Mc 6,8ss, teria estipulado que “com exceção de um só bastão, nada tomarão pelo caminho… Vão calçados com sandálias, mas não se vistam com duas túnicas”. Os Evangelhos apresentam muitíssimos mais exemplos de discrepâncias.»
* Nenhuma destas incoerências, discrepâncias, contradições e erros da Bíblia serve para fundamentar qualquer acusação de ilegitimidade da Bíblia, mas sim para fundamentar a necessidade do estudo do contexto no qual cada texto foi redigido, partindo do pressuposto de que nosso conceito de “verdade” contemporâneo implica a coerência entre o dado empírico e o que se diz dele, enquanto que no tempo em que os textos foram redigidos (depois de terem sido, em alguns casos, transmitidos oralmente), “verdade” implicava na autenticidade, ou seja, na ideia de ser “fiel, estável, merecedor de confiança”, conforme o que o autor diz na página 214 deste mesmo livro de onde copiei a lista.