Divergências entre conceitos teológicos na Bíblia*

 Por favor leia também o alerta depois do fim da lista 🙂

«Como se tudo isto [as listas das outras três postagens anteriores desta semana] fosse pouco, a bem da verdade, deve-se reconhecer que existe uma série de textos e de conceitos teológicos divergentes na Bíblia, que são mais chocantes. … Vejamos alguns exemplos [retirados do livro A Bíblia sem mitos: uma introdução crítica, de Eduardo Arens, das páginas 222 e 223]:

  • Enquanto Deus categoricamente ordenou “Não matarás”, o mesmo Deus ordenou a Josué a passar a fio de espada todos os habitantes de Maquedá e de Jasor (Js 10,28ss; 11,10ss). E que dizer da pena de morte decretada por Deus para “o que ferir seu pai ou sua mãe” ou para “o que os maldizer” (Ex 21,15ss)?
  • Sabe-se que, enquanto segundo Lv 24,20 Deus decretou que se pague “fratura por fratura, olho por olho, dente por dente”, Jesus mais tarde declarou esta lei divina inaceitável (Mt 5,38ss). A atitude de Jesus com relação à Lei de Deus, em muitos aspectos, foi “liberal”. Pelo menos, ele não considerou o Antigo Testamento infalível e imutável.
  • Em Gn 18,21 Deus se mostra ignorante do que acontece em Sodoma e Gomorra.
  • Enquanto em Nm  23,19 e em 1Sm 15,29 se afirma que Deus “não mente nem se arrepende”, são abundantes os exemplos de sua mudança de opinião: veja Gn 6,6; Ex 32,11ss; Joel 2,13ss; Ez 20,13 etc.
  • Resulta chocante ler em Ez 20,25 que Deus mesmo admite que, durante o período do êxodo, “cheguei a dar-lhes preceitos que não eram bons e normas com as quais não podiam viver”. Até se admite que “Deus colocou um espírito de mentira na boca de todos estes teus profetas” (1Rs 22,18-23). É conhecido que nem todas as profecias se cumpriram, como se queixava Jeremias (20,8ss) e já se advertia em Dt 13,2ss.
  • Em alguns textos do Antigo Testamento negava-se a existência de uma vida além da morte (confira Sl 88,4-13; Jó 7,8.21; 14,13-22; Eclo 14,16ss; 17,22s). Nos textos mais antigos se admitia a existência de outros deuses (veja Gn 31,53; 1Sm 26,18ss; 1Rs 18).
  • A Lei de Deus permitia o divórcio, se “a mulher não mostra graça aos olhos” de seu marido (Dt 24,1ss). Mas Jesus declarou inválida essa lei e, para isso, remeteu a Gn 1,27 e 2,24, porque “no princípio não era assim” (Mt 19,3-9).
  • O que é necessário para salvar-se? Se nos ativermos à resposta dada por Jesus em Mc 10,17ss ao jovem que pergunta, basta guardar os mandamentos do Decálogo. Mas segundo Atos 16,30ss, que responde à mesma pergunta, é necessário ter “fé no Senhor Jesus”. Mais claramente, em Gl 3,1-14, Paulo contrapôs as palavras de Hab 2,4 às de Lv 18,5 para argumentar que não é pela  Lei,  mas pela fé que se obtém a justificação salvadora diante de Deus.
  • À luz do conhecimento que n[os, cristãos, temos e professamos a respeito da pessoa de Jesus Cristo, em conformidade  com Jo 1,1 (“a palavra era Deus”) e 20,28 (Tomé: “Meu Senhor e meu Deus”), seria considerado errônea a afirmação que lemos em 1Cor 15,25-28: “…no final também se submeterá o Filho (Jesus Cristo) àquele que submeteu a ele todas as coisas (ou seja, a Deus), para que Deus seja tudo em todos”.» 

* Nenhuma destas incoerências, discrepâncias, contradições e erros da Bíblia serve para fundamentar qualquer acusação de ilegitimidade da Bíblia, mas sim para fundamentar a necessidade do estudo do contexto no qual cada texto foi redigido, partindo do pressuposto de que nosso conceito de “verdade” contemporâneo implica a coerência entre o dado empírico e o que se diz dele, enquanto que no tempo em que os textos foram redigidos (depois de terem sido, em alguns casos, transmitidos oralmente), “verdade” implicava na autenticidade, ou seja, na ideia de ser “fiel, estável, merecedor de confiança”, conforme o que o autor diz na página 214 deste mesmo livro de onde copiei a lista.