Salmo 42(43)

Fazei justiça, meu Deus, e defendei-me contra a gente impiedosa; do homem perverso e mentiroso libertai-me, ó Senhor!

Enviai vossa luz, vossa verdade: elas serão o meu guia; que me levem ao vosso Monte santo, até a vossa morada! Então irei aos altares do Senhor, Deus da minha alegria. Vosso louvor cantarei, ao som da harpa, meu Senhor e meu Deus!

Sois vós o meu Deus e meu refúgio: por que me afastais? Por que ando tão triste e abatido pela opressão do inimigo?

Por que te entristeces, minh’alma, a gemer no meu peito? Espera em Deus! Louvarei novamente o meu Deus Salvador!

Talvez eu nunca tenha tido tanto medo da famosa noite escura da alma porque nunca tive tanta fé assim para perder, afinal de contas; talvez, por outro lado, eu nunca tenha pensando muito nisto justamente para não inserir esse medo no meio de outros medos e coisas afins, o que seria um fermento na massa do desespero; mas o mais provável é que seja um pouco das duas coisas.

A resposta mais comum a qualquer crise de fé costuma ser a de que Deus está testando a fé por meio desta crise, uma resposta que eu não gosto, e só não descarto totalmente porque, afinal, vai que ela esteja mesmo correta (!!!).

Diante de uma resposta clara e simples da qual eu discordo, eu prefiro a minha própria resposta confusa, complexa e pouco confiável (afinal a ideia de Deus testando a fé, numa mistura de cientista fazendo um experimento com um técnico esportivo medindo o desempenho de um atleta está até na Bíblia, e não vou ser eu que vou comprar briga com a Bíblia), que consiste em um gráfico senoidal e em diferenciar escolha de decisão.

Acho que o gráfico senoidal* foi uma síntese possível que eu encontrei entre situações aterradoras que desafiam a minha fé (como a fome, o descaso e o sofrimento pelos quais incontáveis pessoas estão passando em consequência de um governo disposto a promover todo o tipo de impiedades em nome de Deus, desde que elas não afrontem a noção corrente e muito limitada de piedade cristã) e os casos que reforçam ela (como a beleza de uma flor e esse tipo de coisas).

Alguém me explicou uma vez que um gráfico senoidal é um círculo desenhado em um pĺano cartesiano em que o semi-círculo inferior fica localizado abaixo daquela linha horizontal do plano cartesiano e é deslocado para a direita até que a ponta esquerda deste semi-círculo inferior encoste na ponta direita do semi-círculo superior. Pode ser que às vezes não seja um círculo, pois pode ser elíptico ou ter outras formas geométricas meio circulares cujo nome eu não lembro, mas não importa porque qualquer coisa que ultrapasse “um círculo desenhado em um plano cartesiano etc.” ultrapassa também minha capacidade de entendimento.

Aí a minha fé, da qual às vezes eu posso dar as razões como em alguma das epístolas de Pedro e às vezes não, quase sempre fica neste tobogã senoidal no qual eu tendo a ignorar os vales quando está por cima, e escalar desesperadamente (mais escorregando do que subindo) quando está nos vales.

A ideia de enxergá-la como um círculo desmontado em um plano cartesiano veio contra a minha tendência a ficar oscilando entre concebê-la ora como uma dúvida sagradamente inquestionável sobre a qual não se deve pensar, ora concebê-la como um sistema perfeitamente harmônico e racional que no fim das contas dispensa qualquer necessidade de Deus no meio dele. Por isto a ideia deste círculo que sintetiza estas fases, sem misturá-las nem usar uma para explicar a outra. Em vez da fé ser uma postura possível, porém inexplicável, ou o resultado de uma competente reflexão, ela é um círculo que não se mantém nem pela explicação esclarecedora, nem pelo mergulho corajoso na escuridão do desconhecido, mas pela complementaridade das suas duas fases (e, é claro, pela graça de Deus, mas isto ele distribui para todo mundo como as petaleiras de Um Príncipe em Nova Iorque distribuíam pétalas para o príncipe Akeem).

Qualquer uma das duas fases, tomada por si só, seria qualquer coisa, menos fé: uma fé bem explicada e harmônica resultaria, na melhor das hipóteses, em uma teoria materialista mais ou menos como o comunismo marxista, e na pior, como o materialismo ganancioso dos mineradores de criptomoedas; já uma fé mergulhada em uma aceitação passiva das suas verdades é o retato fiel da caricatura de Sócrates suspenso em uma cesta (p. 9 do PDF).

Esta relação entre fase positiva e fase negativa surgiu de uma ideia de um livro de Deleuze e Guatarri (O que é a filosofia?): “Uma tela pode ser inteiramente preenchida, a ponto de que mesmo o ar não passe mais por ela; mas algo só é uma obra de arte se, como diz o pintor chinês, guarda vazios suficientes para permitir que neles saltem cavalos.” (p. 215 do livro, ou 68 da versão em PDF), em que a fé seria como a obra de arte, mas tive que representar isto em um círculo, porque para mim ele é mais fácil de entender do que Deleuze, Guattari e arte.

Mas eu não posso abrir mão totalmente da ideia no livro por causa da parte dos cavalos. Em qualquer uma das fases do círculo desmontado em cima de um plano cartesiano é necessária uma decisão, mas o peso dela é maior na parte negativa, que são os vazios guardados na obra: nestas horas, manter ou largar a fé é uma questão de decisão (que são os cavalos saltando).

Eu acho que há uma diferença entre escolha e decisão. Escolher, no meio destas minhas ideias, não implica em abrir mão das outras possibilidades: sempre é possível comprar de outra marca se a primeira não agradou, por exemplo; mas uma decisão implica em abrir mão das outras possibilidades, não como quem está escolhendo entre uma ou outra marca, mas sim como quem precisa decidir entre comer ou pagar as contas, entre se alimentar ou alimentar os filhos, entre usar os trocados que tem para comer agora ou pagar a passagem até um lugar onde possa encontrar uma doação ou um bico, etc.

Uma decisão semelhante é necessária quando a fé está em crise, abrindo um espaço suficiente para os cavalos saltarem. O mais difícil é que este tipo de decisão não é como a aposta pascal, que é como se os cavalos estivessem pulando em uma prova de hipismo, mas é mais parecido com os cavalos selvagens pulando para salvar a vida.

Tanto uma fé “perfeita” quanto uma fé conivente com o absurdo não se sustentam. Se no fim das contas o salmista conclui aconselhando a própria alma a esperar em Deus e louvar novamente a Deus salvador, é porque antes sua alma estava gemendo e chorando no peito do salmista, e eu só consigo acompanhar o salmista como estes cavalos selvagens pulando em cima de curvas sobre um plano cartesiano.

*Eu não sei nem o que é “senoidal” muito bem, só sei que é este o nome do gráfico.