Solidariedade e misericórdia

«Enquanto na sociologia moderna, o conceito de solidariedade é relativamente recente, tendo sido incorporado no século 19, para a Bíblia, a ideia de que as pessoas precisam colaborar umas com as outras para haver paz social remonta à origem do próprio cristianismo. De fato, trata-se de um dos fundamentos da fé bíblica, como explica o reitor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), professor Jaldemir Vitório.

“A palavra ‘solidariedade’ corresponde, no mundo bíblico, ao que chamamos de ‘misericórdia’. Não é simplesmente uma ajuda entre aqueles que são iguais. Trata-se da misericórdia da relação de proximidade e afeto com o outro, especialmente pelos mais fracos, pobres e oprimidos”, explica.

Segundo o reitor da Faje, praticamente tudo na Bíblia vai se fundamentar a partir o conceito fundamental de misericórdia, que significa, em sua acepção bíblica, libertar os oprimidos e oferecer a ele uma terra de fraternidade. “Em seus primeiros escritos, no Torá, Deus firma um pacto para que Israel, sendo povo de Deus, também seja o povo da misericórdia e da solidariedade”.

“O Código Deuteronômico, que integra o Torá e representa, de certa forma, um código de conduta para o povo de Israel, tem um componente humanista muito forte. Em especial entre os capítulos 12 a 26, em que se dá muita ênfase ao dever de ser solidário com a viúva, do órfão, do pobre e do estrangeiro. Por que o código tem essa preocupação? São categorias que eram marginalizadas na época, cuja sobrevivência dependia da misericórdia do outro”, destaca Jaldemir Vitório.

Esse conceito de misericórdia fundamenta toda a doutrina cristã, até os dias de hoje. Faz-se, inclusive, cada vez mais necessário, uma vez que a modernidade vem apontando para a direção oposta, com a exacerbação do individualismo.

“Hoje, o radicalismo da valorização da pessoa como indivíduo. Estamos nos isolando, construindo muros cada vez mais altos entre nós. As pessoas acham que a solidariedade aumentou com a internet, mas não acredito nisso. A solidariedade virtual não gera comprometimento entre as pessoas. Costumo ilustrar isso com a história do indivíduo que tem milhares de seguidores no Facebook e que, na hora da morte, não tem ninguém no velório”, exemplifica.

Apesar do momento de exacerbação do individualismo, o reitor da Faje se mostra otimista em relação ao futuro. “Chegaremos a um ponto em que teremos que mudar essa postura, com o esgotamento dos recursos naturais e, consequentemente, das possibilidades de vivermos somente em função de nossas necessidades. Um mundo sem solidariedade não é só insuportável. É impossível”, conclui.»

Solidariedade é o fundamento da fé cristã

Imagem: Shane Rounce on Unsplash

Depressão: doença ou problema espiritual?

«O autor [do livro Depressão: Doença ou Problema Espiritual], Ismael Gomes de Oliveira Sobrinho,é médico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em Psquiatria e Psicogeriatria pela Associação Brasileira dePsiquiatria (ABP) e mestre em Ciências da Saúde pela Fa-culdade de Ciências Médicas de Minas Gerais (CMMG). Atua há dez anos na prática clínica e, em empresas e igrejas, realiza palestras relacionadas à saúde emocional, trabalho e espiritualidade cristã.

Com o intuito de responder ao título da obra, o capítulo um é denominado “Causas e Frequência”da depressão. Compreendendo que a Bíblia cristã é mais do que um conjunto de doutrinas teológicas, o autor aponta o erro em não se perceber as crises emocionais vivenciadas por muitos homens e mulheres que tinham uma vida espiritual profunda e sincera. Dúvida, apreensão, sintomas depressivos, angústia extrema, etc., podem ser percebidos nos textos bíblicos que relatam claramente o relacionamento das pessoas com Deus. Então, Sobrinho (2018)questiona: há casos bíblicos de depressão? Verificando textos bíblicos como I Reis 18-19 e Tiago 5.17, responde: “A bíblia […] não apresenta o termo ‘depressão’ registrado em suas páginas. Isso não nos impede de estarmos mais a tentos e verificarmos os dramas humanos vivenciados por esses homens que, apesar de ‘andarem com Deus’, acabaram por expressar diversos sintomas condizentes com momentos depressivos” (SOBRINHO, 2018, p. 22).

Aquela que ocupa o segundo lugar dentre as doenças que mais causam incapacidade para o trabalho, segundo a Organização Mundial da Saúde, também é um problema grave dentro da igreja. Apontando alguns levantamentos estatísticos aterradores, o autor demonstra como as pessoas com depressão têm sido alvo de preconceito e sobrecarga emocional ao longo da vida. Seja diagnosticada entre crianças ou adultos, a influência espiritual na doença seria apenas mais um ponto a ser verificado. Por isso, Sobrinho conclui: “dizer que a opressão maligna ou maldição familiar é a causa da depressão em uma família constitui, além de um erro teológico, uma grande fonte de culpa e de adiamento do tratamento adequado” (SOBRINHO, 2018, p. 29).

Após uma descrição histórica de cristãos fiéis que ficaram doentes (SOBRINHO, 2018, p. 30-31), o autor foca na depressão causada por fatores espirituais. Repelindo os conceitos da falta de fé e oração insuficiente, por exemplo, postula que é um erro resumir a causa das doenças em fatores espirituais como esses. Citando textos bíblicos, Sobrinho também trata da relação entre depressão e pecado. De fato, “de uma forma universal […] e indireta, podemos deduzir que toda enfermidade, e isso inclui a depressão, deriva do pecado. Isso não quer dizer que individual e diretamente toda depressão se origine dele” (SOBRINHO, 2018, p. 43). Ora, se a maioria dos casos depressivos não guarda relação direta com o pecado, é vital que o cristão também entenda as causas biológicas da doença (SOBRINHO, 2018, p. 49-54), a fim de que não se enquadre nos tipos de espiritualidade que adoecem (SOBRINHO, 2018, p. 65-68).

O segundo capítulo intitula-se “A Doença”.O autor aborda odiagnóstico da depressão(seu aspecto estritamente clínico), casos de exames complementares, escalas diagnósticas e medicamentos. Também instrui acerca da importância de se “diferenciar a depressão de sentimentos de tristeza normais e situações de luto” (SOBRINHO, 2018, p. 73). Nesse interim, destaca-se o Inventário de Depressão de Back (SOBRINHO, 2018, p. 74-80), sugerido pelo autor, e a compreensão clara dos sintomas da doença em virtude das possíveis confusões nos dias de hoje. Para tanto, Sobrinho elenca alguns dos principais sintomas da doença: (a) humor deprimido, (b) perda de interesse, prazer e falta de energia e (c) alterações de apetite, sono e desejo sexual. Reconhecendo que “a depressão não é um sintoma isolado, mas um conjunto de sintomas somados que irão exigir o tratamento médico especializado”(SOBRINHO, 2018, p. 82), aborda exemplos dos sintomas físicos(dor ou desconforto do peito, problemas de pele, sensibilidade do sistema gastrointestinal), cognitivos (alterações de memória e concentração) e queixas psicossociais (baixa autoestima, isolamento).

A obra ainda elenca alguns subtipos diferentes de quadros depressivos, “transtornos emocionais que apresentam sintomas depressivos ao longo de sua evolução com características atípicas, sazonais ou que se expressam de maneira menos ou mais intensa que a depressão típica” (SOBRINHO, 2018, p. 93). O autor apresenta a distimia, a depressão e transtornos emocionais no pós-parto, a depressão sazonal e a depressão com sintomas psicóticos, bem como a relação da doença com os transtornos de ansiedade (pânico, ansiedade generalizada e fobia social). Entrementes, o autor demonstra a diferença entre depressão e transtorno bipolar (SOBRINHO, 2018, p. 107-112), a relação entre a doença e o risco de suicídio (113-118), o crescente número de diagnósticos entre crianças, adolescentes e idosos (119-125) e, o caso deste leitor, a depressão em pastores e líderes cristãos (127-130).»

Ângelo Vieira da Silva. Resenha do livro Depressão: Doença ou Problema Espiritual

Imagem: Eric Muhr on Unsplash

Trabalho e capital na DSI

“O trabalho, pelo seu caráter subjetivo ou pessoal, é superior a todo e qualquer outro fator de produção: este princípio vale, em particular, no que tange ao capital. Hoje, o termo «capital» tem diversas acepções: às vezes indica os meios materiais de produção na empresa, às vezes os recursos financeiros investidos numa iniciativa produtiva ou também em operações nos mercados financeiros. Fala-se também, de modo não de todo apropriado, de «capital humano», para indicar os recursos humanos, ou seja, os homens mesmos, enquanto capazes de esforço laboral, de conhecimento, de criatividade, de intuição das exigências dos próprios semelhantes, de mútua compreensão enquanto membros de uma organização. Fala-se de «capital social» quando se quer indicar a capacidade de colaboração de uma coletividade, fruto do investimento em liames fiduciários recíprocos. Esta multiplicidade de significados oferece ulteriores elementos para refletir sobre o que possa significar, hoje, a relação entre trabalho e capital.

A doutrina social tem enfrentado as relações entre trabalho e capital, salientando seja a prioridade do primeiro sobre o segundo, seja a sua complementaridade.

O trabalho tem uma prioridade intrínseca em relação ao capital: «Este princípio diz respeito diretamente ao próprio processo de produção, relativamente ao qual o trabalho é sempre uma causa eficiente primária, enquanto que o “capital”, sendo o conjunto dos meios de produção, permanece apenas um instrumento, ou causa instrumental. Este princípio é uma verdade evidente, que resulta de toda a experiência histórica do homem». Ele «pertence ao patrimônio estável da doutrina da Igreja».

Entre capital e trabalho deve haver complementaridade: é a mesma lógica intrínseca ao processo produtivo a mostrar a necessidade da sua recíproca compenetração e a urgência de dar vida a sistemas econômicos nos quais a antinomia entre trabalho e capital seja superada. Em tempos nos quais, no interior de um sistema econômico menos complexo, o «capital» e o «trabalho assalariado» identificavam com uma certa precisão não só dois fatores produtivos, mas também e sobretudo duas concretas classes sociais, a Igreja afirmava que ambos são em si legítimos: « de nada vale o capital sem o trabalho, nem o trabalho sem o capital ». Trata-se de uma verdade que vale também para presente, porque « é inteiramente falso atribuir ou só ao capital ou só ao trabalho o produto do concurso de ambos; e é deveras injusto que um deles, negando a eficácia do outro, se arrogue a si todos os frutos ».

Na consideração das relações entre trabalho e capital, sobretudo em face das imponentes transformações dos nossos tempos, se deve entender que «o principal recurso» e o «fator decisivo» nas mãos do homem é o próprio homem, e que «o desenvolvimento integral da pessoa humana no trabalho não contradiz, antes favorece a maior produtividade e eficácia do próprio trabalho». O mundo do trabalho está, efetivamente, descobrindo cada vez mais que o valor do «capital humano» tem expressão no conhecimento dos trabalhadores, na sua disponibilidade a tecer relações, na criatividade, na própria qualidade empresarial, na capacidade de enfrentar conscientemente o novo, de trabalhar juntos e de saber perseguir objetivos comuns. Trata-se de qualidades eminentemente pessoais, que pertencem ao sujeito do trabalho mais que aos aspectos objetivos, técnicos, operativos do trabalho mesmo. Tudo isto comporta uma perspectiva nova nas relações entre trabalho e capital: pode-se afirmar que, contrariamente ao que acontecia na velha organização do trabalho, em que o sujeito acabava por ser nivelado ao objeto, à máquina, nos dias de hoje dimensão subjetiva do trabalho tende a ser mais decisiva e importante do que a objetiva.

A relação entre trabalho e capital não raro apresenta traços de conflituosidade, que assume novas características com o mudar dos contextos sociais e econômicos. Ontem, o conflito entre capital e trabalho era originado, sobretudo, « pelo fato de que os operários punham as suas forças à disposição do grupo dos patrões e empresários, e de que este, guiado pelo princípio do maior lucro da produção, procurava manter o mais baixo possível o salário para o trabalho executado pelos operários». Atualmente, a conflituosidade de tal relação apresenta aspectos novos e, talvez, mais preocupantes: os progressos científicos e tecnológicos e a mundialização dos mercados, de per si fonte de desenvolvimento e de progresso, expõem os trabalhadores ao risco de ser explorados pelas engrenagens da economia e pela busca desenfreada de produtividade.

Não se deve julgar erroneamente que o processo de superação da dependência do trabalho em relação à matéria seja capaz por si de superar a alienação no trabalho e do trabalho. A referência não é só aos grandes bolsões de não trabalho, de trabalho clandestino, de trabalho infantil, de trabalho sub-remunerado, de trabalho explorado que ainda persistem, mas também às novas formas, muito mais sutis, da exploração dos novos trabalhos, ao super-trabalho, ao trabalho-carreira que às vezes rouba espaço a dimensões igualmente humanas e necessárias para a pessoa, à excessiva flexibilidade do trabalho que torna precária e não raro impossível a vida familiar, à modularidade do trabalho que corre o risco de ter graves repercussões sobre a percepção unitária da própria existência e sobre a estabilidade das relações familiares. Se o homem é alienado quando inverte meios e fins, também no novo contexto de trabalho imaterial, leve, qualitativo mais que quantitativo, podem dar-se elementos de alienação «conforme cresça a … participação [do homem] numa autêntica comunidade humana solidária, ou então cresça o seu isolamento num complexo de relações de exacerbada competição e de recíproco alheamento».”

As relações entre trabalho e capital (DSI, 276-280)

Imagem: print de Fome, sede e martírio à beira-mar (Revista Piauí)

É melhor humanizar-se ou algoritmizar-se?

Enquanto preferimos evoluir às custas da nossa própria desumanização, esquartejando a nossa própria humanidade para que ela possa se adequar às exigências dos algoritmos de beleza, força e poder, que nós mesmos criamos para depois tratá-los como se fossem a nossa própria superação, Deus insiste em humanizar-se para que nós tenhamos uma espécie de rota de fuga de volta a nossa própria humanidade, que ele nos deu, para (ao contrário do que nos acostumamos) humanizar a força, a beleza, o poder, os seus algoritmos e o que quer que seja que criemos. Em vez de nos deixar submeter nossa carne a uma sequência finita de ações executáveis, preferiu ele próprio se fazer carne e habitar entre nós.

(Sim, é mais fácil escrever uma introdução de qualidade duvidosa para um antigo texto decente do que escrever um texto decente inteiro por si só).

Cristo restituiu a perfeição original da humanidade

A humildade foi assumida pela majestade, a fraqueza, pela força, a mortalidade, pela eternidade. Para saldar a dívida de nossa condição humana, a natureza impassível uniu-se à natureza passível. Deste modo, como convinha à nossa recuperação, o único mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, podia submeter-se à morte através de sua natureza humana e permanecer imune em sua natureza divina.

Por conseguinte, numa natureza perfeita e integral de verdadeiro homem, nasceu o verdadeiro Deus, perfeito na sua divindade, perfeito na nossa humanidade. Por “nossa humanidade” queremos significar a natureza que o Criador desde o início formou em nós, e que assumiu para renová-la. Mas daquelas coisas que o Sedutor trouxe, e o homem enganado aceitou, não há nenhum vestígio no Salvador; nem pelo fato de se ter irmanado na comunhão da fragilidade humana, tornou-se participante dos nossos delitos.

Assumiu a condição de escravo, sem mancha de pecado, engrandecendo o humano, sem diminuir o divino. Porque o aniquilamento, pelo qual o invisível se tornou visível, e o Criador de tudo quis ser um dos mortais, foi uma condescendência da sua misericórdia, não uma falha do seu poder. Por conseguinte, aquele que, na sua condição divina se fez homem, assumindo a condição de escravo, se fez homem.

Entrou, portanto, o Filho de Deus neste mundo tão pequeno, descendo do trono celeste, mas sem deixar a glória do Pai; é gerado e nasce de modo totalmente novo. De modo novo porque, sendo invisível em si mesmo, torna-se visível como nós; incompreensível, quis ser compreendido; existindo antes dos tempos, começou a existir no tempo. O Senhor do universo assume a condição de escravo, envolvendo em sombra a imensidão de sua majestade; o Deus impassível não recusou ser homem passível, o imortal submeteu-se às leis da morte.

Aquele que é verdadeiro Deus, é também verdadeiro homem; e nesta unidade nada há de falso, porque nele é perfeita respectivamente tanto a humanidade do homem como a grandeza de Deus. Nem Deus sofre mudança com esta condescendência da sua misericórdia nem o homem é destruído com sua elevação a tão alta dignidade. Cada natureza realiza, em comunhão com a outra, aquilo que lhe é próprio: o Verbo realiza o que é próprio do Verbo, e a carne realiza o que é próprio da carne.

A natureza divina resplandece nos milagres, a humana, sucumbe aos sofrimentos. E como o Verbo não renuncia à igualdade da glória do Pai, também a carne não deixa a natureza de nossa raça. É um só e o mesmo – não nos cansaremos de repetir – verdadeiro Filho de Deus e verdadeiro Filho do homem. É Deus, porque no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus: e o Verbo era Deus. É homem, porque o Verbo se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,1.14).

Das Cartas de São Leão Magno, papa (Epist. 28, ad Flavianum,3-4: PL 54,763-767) (Séc.V)

Imagem: Michael Dziedzic on Unsplash

Mística de olhos abertos

«Dorothy Day nasceu em 1897, em Nova York, passando a maior parte da infância em Chicago. Em 1916, retorna com a família para Nova York e começa a trabalhar no jornal socialista The Call. Trabalha também para a revista The Masses, opondo-se ao envolvimento dos EUA na Primeira Guerra Mundial. Em 1917, é presa ao protestar em frente à Casa Branca pelo direito do voto das mulheres e faz greve de fome, experiência que a marcou profundamente e que terá posteriormente influência em sua conversão.

Eu perdi todo o sentimento da minha própria identidade. Eu refleti na desolação da pobreza, miséria, doença e do pecado. Que eu estaria livre depois de trinta dias não significava nada para mim. Eu nunca seria livre novamente, nunca livre quando eu soube que atrás das barras de todo o mundo havia homens e mulheres, jovens meninas e meninos, sofrendo restrição, punição, solidão e sofrimento por crimes dos quais todos nós éramos culpados.

Na prisão começa a ler a Bíblia e as palavras divinas ecoam em seu coração, tanto que tenta se convencer de que a leitura era por mera diversão literária. Dorothy foi uma mulher de seu tempo, tempo de rebelião de costumes provocada, entre outras coisas, pelo avanço do movimento feminista que deu à mulher maiorcondição de envolvimento político e proporciona nova maneira de encarar a sexualidade.

Leva uma vida agitada e boêmia, tem um caso com Lionel Moise que resulta em uma gravidez e por pressão do parceiro, vê-se forçada a praticar o aborto. Casa-se posteriormente com Barkeley Tobey, produtor literário, mas acaba deixando-o e retomando o romance, por alguns meses, com Lionel Moise.

Vive tempos de estabilidade afetiva e emocional com Forster Batterham, botânico. Com ele tem uma filha, Tamar Theresa, em 1927, cujo nascimento marca o início de sua conversão, conforme lemos em sua autobiografia: “minha alegria de ter dado à luz a uma criança que me fez fazer algo definitivo. Eu queria que Tamar pudesse ter um caminho de vida e instrução”. O batismo da menina foioportunidade de pensar sobre sua própria experiência de fé:

Eu sabia que batizaria minha filha a todo custo. Eu sabia que não a deixaria debatendo muitos anos como eu fizera, duvidando e hesitando, indisciplinada e amoral. Eu senti que era a maior coisaque faria por minha filha. Para mim, eu rezei pelo presente da fé. Eu tinha certeza, ainda sem garantia. Eu adiei o dia da decisão.

Por conta das amigas Bee e Blanche, católicas devotas, Day começa a questionar sobre a fé e sobre a Igreja Católica. Relembrando alguns fatos do passado, diz: “o primeiro rosário que tive me foi dado por uma amiga de minha vida desordenada, que, mais tarde, se tornou comunista e foi ativa no trabalho para Espanha Legalista”. Ainda continua afirmando que “foi por eu sempre ir à catedral que Mary me deu o rosário. Eu não ia à missa porque era cedo e eu tinha que trabalhar”. Nota-se que durante sua vida, mesmo afastada, nunca perdeu a referência à Igreja com a qual tinha uma relação tradicional.

Ainda antes do batismo da filha, relata: “Tamar seria batizada e eu sabia que o rasgo que isso causaria nas relações humanas ao meu redor”. Mesmo sem a aprovação do companheiro, a menina é batizada. Essa decisão levou ao fim a relação com Batterham. Contudo, o batismo de Dorothy é posterior.

No momento de decisão, Dorothy sabia que “tornar-se católica significaria encarar a vida sozinha”, mas segue adiante. Tanto que seu relacionamento com Forster acaba e, assim, passa a ser mãe solteira. Isso não lhe é um peso, pois nota sua coerência de vida e de testemunho: “eu queria ser pobre, casta e obediente. Eu queria morrer para viver, para deixar o homem velho e vestir Cristo”.

Day nunca deixou enfraquecer seu compromisso pela justiça social e o viver entre os mais pobres. Ela acreditava numa “Igreja dos pobres” e ela mesma relata: “uma comunidade estava crescendo. Uma comunidade dos pobres, que apreciavam estar juntos, que sentiam que tinham embarcado em uma grande empreitada, que tinham uma missão”.

Após uma manifestação em Washington, Dorothy compreende que não havia conhecido nenhum leigo católico pessoalmente. Quando retorna para Nova York, encontra o Pe. Peter Maurin. Sobre esse encontro escreve: “Peter, o camponês francês, cujo espírito e ideias dominarão o resto deste livro, assim como eles dominarão o resto da minha vida”. Era o Pe. Peter quem falava sobre pobreza e sociedade para Dorothy e para os pobres. Será ele seu companheiro e parceiro de vida espiritual, além do trabalho apostólico. Em 1933, iniciam o Catholic Worker Movement (CWM), movimento que além da publicação de um jornal influente (com o custo de um centavo), fundou casas para os desabrigados da Grande Depressão e, aos poucos, foi se adaptando às novas exigências da sociedade.

O CWM desejava viver um compromisso cristão radical a fim de criar uma nova sociedade “dentro da casca velha”. Os propósitos do CWM são: uma crítica da distribuição injusta da riqueza; uma crítica da organização política do governo; uma crítica das imagens distorcidas da pessoa humana causadas por classes, raça e sexo; uma forte condenação da corrida armamentista. Os meios para chegar a esses fins são: uma concepção personalista do ser humano; uma sociedade descentralizada; não violência; obras de misericórdia; e pobreza voluntária.

Dorothy Day era uma revolucionária que buscou a revolução do coração combinada com a ação em defesa do ser humano, sempre em obediência e devoção à Igreja, que não era cega e nem acrítica. Vai à Roma com um grupo de mulheres durante o Concílio Vaticano II e pede aos padres conciliares que condenem a guerra.

É presa aos 75 anos por se declarar pacifista e morre em 29 de novembro de 1980, no meio dos pobres, em Nova York. Está em processo de canonização e já foi declarada Serva de Deus, por São João Paulo II,em 2000. Por seu itinerário espiritual, Dorothy Day pode ser considerada uma “mística de olhos abertos” e precursora da espiritualidade laical no espírito do Concílio Vaticano II. Sua vida é testemunho de uma espiritualidade de compaixão e solidariedade, comprometida com a transformação da sociedade.

Dorothy era uma pessoa que tinha consciência de seu corpo, valorizava sua sexualidade. Gostava de carinho, de estar com as pessoas, de ser amada e de amar. É justamente sua sensibilidade feminina, conforme afirma Bingemer, que a faz “apóstola dos mais pobres e defensora dos sem voz, paladina da paz e da justiça”. Sua difícil experiência com a maternidade teve grande importância em sua vida e marcou também seu engajamento social. A gravidez e o nascimento da filha representaram uma grande graça depois do aborto, pois imaginava que não poderia mais engravidar. É profundo e tocante o relato sobre essa passagem de sua vida.»

Ceci Maria Costa Baptista Mariani e Henrique Matheus Biondo Costa. Dorothy Day, “mística de olhos abertos”

O fracasso do sacrifício

«Em vista disso, faz-se necessário o desvendamento da estrutura mimética da subjetividade, para se alcançar o estágio da subjetividade em chave de desejo como doação, que seja capaz de engendrar a construção do espaço intersubjetivo do mútuo reconhecimento na assimetria do dom e na gratuidade. Para alcançar esse estágio é imprescindível o desmantelamento do desejo mimético violento que estrutura toda subjetividade, visto que a maneira de ser-no-mundo está marcada irreversivelmente pelo mimetismo, como mostrou exaustivamente René Girard.

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A estrutura mimética da subjetividade justifica o paradoxo da condição humana, que se intercala entre violência e redenção, através da in-visibilização ou visilização do outro, do encobrimento ao reconhecimento (MENDOZA, 2016, p. 31-50). A novidade da análise do desejo de René Girard reside na “complexa exterioridade fundante” da subjetividade (MENDOZA, 2015a, p. 362), isto é, a configuração do desejo se dá pela influência de um terceiro. Esse terceiro se expressa tanto no modelo que se imita, como no próprio objeto desejado. À análise do mecanismo fundante da subjetividade chama-se “teoria do desejo mimético”, por meio da qual se compreende a violência intersubjetiva como vontade de onipotência, visto que na mímesis há um potencial aquisitivo. Nisso reside a raiz da violência intersubjetiva que assola a humanidade, desde os primórdios da humanidade. Compreende-se, pois, que o estágio do mútuo reconhecimento, além da dialética hegeliana como último estágio da subjetividade, passa pelo desvendamento do desejo mimético violento e sua subversão para o desejo mimético de doação.

E esta passagem se faz necessariamente, não pela negação do mimetismo, visto que não é possível deixar de imitar; antes, pela instauração de outro modelo a imitar. Se por um lado a teoria do desejo mimético explica a condição humana mergulhada na rivalidade, por outro lado ela, também, consegue justificar a passagem dessa condição para a condição humana marcada pela oferenda de si mesmo.

Esse outro modelo a imitar foi plenamente revelado em Jesus de Nazaré10, em sua oferenda de si mesmo no seio do contágio mimético. É exatamente essa condição humana reconciliada, marcada pela gratuidade, que o cristianismo dá testemunho para a instauração da Civitas Dei. Descobre-se assim a verdade antropológica do cristianismo, como modo de pôr fim ao mecanismo mimético violento da subjetividade e, consequentemente, da religião sacrificial. Cristo foi aquele que desvelou o fracasso da religião sacrificial e desmontou seus mecanismos vitimários. Não apenas isso, ele também revelou a verdade da inocência da vítima e, consequentemente, a universalidade e a transcendência do cristianismo.»

Cleusa Caldeira. Teologia e niilismo pós-moderno: a subjetividade vulnerável como locus theologicus no pensamento de Carlos Mendoza Álvarez

imagem: Kingsley Osei-Abrah on Unsplash

A Comunidade humana

Índole comunitária da vocação humana

Deus, que por todos cuida com solicitude paternal, quis que os homens formassem uma só família, e se tratassem uns aos outros como irmãos. Criados todos à imagem e semelhança daquele Deus que «fez habitar sobre toda a face da terra o inteiro género humano, saído dum princípio único» (Act. 17,26), todos são chamados a um só e mesmo fim, que é o próprio Deus.

E por isso, o amor de Deus e do próximo é o primeiro e maior de todos os mandamentos. Mas a Sagrada Escritura ensina-nos que o amor de Deus não se pode separar do amor do próximo, «…todos os outros mandamentos se resumem neste: amarás o próximo como a ti mesmo… A caridade é, pois, a lei na sua plenitude» (Rom. 13, 9-10; cfr. 1 Jo. 4,20). Isto revela-se como sendo da maior importância, hoje que os homens se tornam cada dia mais dependentes uns dos outros e o mundo se unifica cada vez mais.

Mais ainda: quando o Senhor Jesus pede ao Pai «que todos sejam um…, como nós somos um» (Jo. 17, 21-22), sugere – abrindo perspectivas inacessíveis à razão humana – que dá uma certa analogia entre a união das pessoas divinas entre si e a união dos filhos de Deus na verdade e na caridade. Esta semelhança torna manifesto que o homem, única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma, não se pode encontrar plenamente a não ser no sincero dom de si mesmo (2).

Interdependência da pessoa humana e da sociedade humana

A natureza social do homem torna claro que o progresso da pessoa humana e o desenvolvimento da própria sociedade estão em mútua dependência. Com efeito, a pessoa humana, uma vez que, por sua natureza, necessita absolutamente da vida social (3), é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais. Não sendo, portanto, a vida social algo de adventício ao homem, este cresce segundo todas as suas qualidades e torna-se capaz de responder à própria vocação, graças ao contacto com os demais, ao mútuo serviço e ao diálogo com seus irmãos.

Entre os laços sociais, necessários para o desenvolvimento do homem, alguns, como a família e a sociedade política, correspondem mais imediatamente à sua natureza íntima; outros são antes fruto da sua livre vontade. No nosso tempo, devido a várias causas, as relações e interdependências mútuas multiplicam-se cada vez mais; o que dá origem a diversas associações e instituições, quer públicas quer privadas. Este facto, denominado socialização, embora não esteja isento de perigos, traz, todavia, consigo muitas vantagens, em ordem a confirmar e desenvolver as qualidades da pessoa humana e a proteger os seus direitos (4).

Porém, se é verdade que as pessoas humanas recebem muito desta vida social, em ordem a realizar a própria vocação, mesmo a religiosa, também não se pode negar que os homens são muitas vezes afastados do bem ou impelidos ao mal pelas condições em que vivem e estão mergulhados desde a infância. É certo que as perturbações tão frequentes da ordem social vêm, em grande parte, das tensões existentes no seio das formas económicas, políticas e sociais. Mas, mais profundamente, nascem do egoísmo e do orgulho dos homens, os quais também pervertem o ambiente social. Onde a ordem das coisas se encontra viciada pelas consequências do pecado, o homem, nascido com uma inclinação para o mal, encontra novos incitamentos para o pecado, que não pode superar sem grandes esforços e ajudado pela graça.

Promoção do bem-comum

A interdependência, cada vez mais estreita e progressivamente estendida a todo o mundo, faz com que o bem comum – ou seja, o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e fàcilmente a própria perfeição – se torne hoje cada vez mais universal e que, por esse motivo, implique direitos e deveres que dizem respeito a todo o género humano. Cada grupo deve ter em conta as necessidades e legítimas aspirações dos outros grupos e mesmo o bem comum de toda a família humana (5).

Simultâneamente, aumenta a consciência da eminente dignidade da pessoa humana, por ser superior a todas as coisas e os seus direitos e deveres serem universais e invioláveis. É necessário, portanto, tornar acessíveis ao homem todas as coisas de que necessita para levar uma vida verdadeiramente humana: alimento, vestuário, casa, direito de escolher livremente o estado de vida e de constituir família, direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, direito de agir segundo as normas da própria consciência, direito à protecção da sua vida e à justa liberdade mesmo em matéria religiosa.

A ordem social e o seu progresso devem, pois, reverter sempre em bem das pessoas, já que a ordem das coisas deve estar subordinada à ordem das pessoas e não ao contrário; foi o próprio Senhor quem o insinuou ao dizer que o sábado fora feito para o homem, não o homem para o sábado (6). Essa ordem, fundada na verdade, construída sobre a justiça e vivificada pelo amor, deve ser cada vez mais desenvolvida e, na liberdade, deve encontrar um equilíbrio cada vez mais humano (7). Para o conseguir, será necessária a renovação da mentalidade e a introdução de amplas reformas sociais.

O Espírito de Deus, que dirige o curso dos tempos e renova a face da terra com admirável providência, está presente a esta evolução. E o fermento evangélico despertou e desperta no coração humano uma irreprimível exigência de dignidade.

Respeito da pessoa humana

Vindo a conclusões práticas e mais urgentes, o Concílio recomenda a reverência para com o homem, de maneira que cada um deve considerar o próximo, sem excepção, como um «outro eu», tendo em conta, antes de mais, a sua vida e os meios necessários para a levar dignamente (8), não imitando aquele homem rico que não fez caso algum do pobre Lázaro (9).

Sobretudo em nossos dias, urge a obrigação de nos tornarmos o próximo de todo e qualquer homem, e de o servir efectivamente quando vem ao nosso . encontro – quer seja o ancião, abandonado de todos, ou o operário estrangeiro injustamente desprezado, ou o exilado, ou o filho duma união ilegítima que sofre injustamente por causa dum pecado que não cometeu, ou o indigente que interpela a nossa consciência, recordando a palavra do Senhor: «todas as vezes que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes» (Mt. 25,40).

Além disso, são infames as seguintes coisas: tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho; em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador.

Respeito e amor dos adversários

O nosso respeito e amor devem estender-se também àqueles que pensam ou actuam diferentemente de nós em matéria social, política ou até religiosa. Aliás, quanto mais intimamente compreendermos, com delicadeza e caridade, a sua maneira de ver, tanto mais fàcilmente poderemos com eles dialogar.

Evidentemente, este amor e benevolência de modo algum nos devem tornar indiferentes perante a verdade e o bem. Pelo contrário, é o próprio amor que incita os discípulos de Cristo a anunciar a todos a verdade salvadora. Mas deve distinguir-se entre o erro, sempre de rejeitar, e aquele que erra, o qual conserva sempre a dignidade própria de pessoas, mesmo quando está atingido por ideias religiosas falsas ou menos exactas (10). Só Deus é juiz e penetra os corações; por esse motivo, proibe-nos Ele de julgar da culpabilidade interna de qualquer pessoa (11).

A doutrina de Cristo exige que também perdoemos as injúrias (12), e estende a todos os inimigos o preceito do amor, que é o mandamento da lei nova: «ouvistes que foi dito: amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Mas eu digo-vos: amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam» (Mt. 5, 43-44).

Igualdade essencial entre todos os homens

A igualdade fundamental entre todos os homens deve ser cada vez mais reconhecida, uma vez que, dotados de alma racional e criados à imagem de Deus, todos têm a mesma natureza e origem; e, remidos por Cristo, todos têm a mesma vocação e destino divinos.

Sem dúvida, os homens não são todos iguais quanto à capacidade física e forças intelectuais e morais, variadas e diferentes em cada um. Mas deve superar-se e eliminar-se, como contrária à vontade de Deus, qualquer forma social ou cultural de discriminação, quanto aos direitos fundamentais da pessoa, por razão do sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião. É realmente de lamentar que esses direitos fundamentais da pessoa ainda não sejam respeitados em toda a parte. Por exemplo, quando se nega à mulher o poder de escolher livremente o esposo ou o estado de vida ou de conseguir uma educação e cultura iguais às do homem.

Além disso, embora entre os homens haja justas diferenças, a igual dignidade pessoal postula, no entanto, que se chegue a condições de vida mais humanas e justas. Com efeito, as excessivas desigualdades económicas e sociais entre os membros e povos da única família humana provocam o escândalo e são obstáculo à justiça social, à equidade, à dignidade da pessoa humana e, finalmente, à paz social e internacional.

Procurem as instituições humanas, privadas ou públicas, servir a dignidade e o destino do homem, combatendo ao mesmo tempo valorosamente contra qualquer forma de sujeição política ou social e salvaguardando, sob qualquer regime político, os direitos humanos fundamentais. Mais ainda: é necessário que tais instituições se adaptem progressivamente às realidades espirituais, que são as mais elevadas de todas; embora por vezes se requeira um tempo razoàvelmente longo para chegar a esse desejado fim.

Superação da ética individualista

A profundidade e rapidez das transformações reclamam com maior urgência que ninguém se contente, por não atender à evolução das coisas ou por inércia, com uma ética puramente individualística. O dever de justiça e caridade cumpre-se cada vez mais com a contribuição de cada um em favor do bem comum, segundo as próprias possibilidades e as necessidades dos outros, promovendo instituições públicas ou privadas e ajudando as que servem para melhorar as condições de vida dos homens. Mas há pessoas que, fazendo profissão de ideias amplas e generosas, vivem sempre, no entanto, de tal modo como se nenhum caso fizessem das necessidades sociais. E até, em vários países, muitos desprezam as leis e prescrições sociais. Não poucos atrevem-se a eximir-se, com várias fraudes e enganos, aos impostos e outras obrigações sociais. Outros desprezam certas normas da vida social, como por exemplo as estabelecidas para defender a saúde ou para regularizar o trânsito de veículos, sem repararem que esse seu descuido põe em perigo a vida própria e alheia.

Todos tomem a peito considerar e respeitar as relações sociais como um dos principais deveres do homem de hoje. Com efeito, quanto mais o mundo se unifica, tanto mais as obrigações dos homens transcendem os grupos particulares e se estendem progressivamente a todo o mundo. O que só se poderá fazer se os indivíduos e grupos cultivarem em si mesmos e difundirem na sociedade as virtudes morais e sociais, de maneira a tornarem-se realmente, com o necessário auxílio da graça divina, homens novos e construtores duma humanidade nova.

Responsabilidade e participação social

Para que cada homem possa cumprir mais perfeitamente os seus deveres de consciência quer para consigo quer em relação aos vários grupos de que é membro, deve-se ter o cuidado de que todos recebam uma formação mais ampla, empregando-se para tal os consideráveis meios de que hoje dispõe a humanidade. Antes de mais, a educação dos jovens, de qualquer origem social, deve ser de tal maneira organizada que suscite homens e mulheres não apenas cultos mas também de forte personalidade, tão urgentemente exigidos pelo nosso tempo.

Mal poderá, contudo, o homem chegar a este sentido de responsabilidade, se as condições de vida lhe não permitirem tornar-se consciente da própria dignidade e responder à sua vocação, empenhando-se no serviço de Deus e dos outros homens. Ora a liberdade humana com frequência se debilita quando o homem cai em extrema miséria, e degrada-se quando ele, cedendo às demasiadas facilidades da vida, se fecha numa espécie de solidão dourada. Pelo contrário, ela robustece-se quando o homem aceita as inevitáveis dificuldades da vida social, assume as multiformes exigências da vida em comum e se empenha no serviço da comunidade humana.

Deve, por isso, estimular-se em todos a vontade de tomar parte nos empreendimentos comuns. E é de louvar o modo de agir das nações em que a maior parte dos cidadãos participa, com verdadeira liberdade, nos assuntos públicos. É preciso, porém, ter sempre em conta a. situação real de cada povo e o necessário vigor da autoridade pública. Mas para que todos os cidadãos se sintam inclinados a participar na vida dos vários grupos de que se forma o corpo social, é necessário que encontrem nesses grupos bens que os atraiam e os predisponham ao serviço dos outros. Podemos legitimamente pensar que o destino futuro da humanidade está nas mãos daqueles que souberem dar às gerações vindoiras razões de viver e de esperar.

O Verbo encarnado e a solidariedade humana

Do mesmo modo que Deus não criou os homens para viverem isolados, mas para se unirem em sociedade, assim também Lhe «aprouve… santificar e salvar os homens não individualmente e com exclusão de qualquer ligação mútua, mas fazendo deles um povo que O reconhecesse em verdade e O servisse santamente» (13). Desde o começo da história da salvação, Ele escolheu os homens não só como indivíduos mas ainda como membros duma comunidade. Com efeito, manifestando o seu desígnio, chamou a esses escolhidos o «seu povo» (Ex. 3, 7-12), com o qual estabeleceu aliança no Sinai (14).

Esta índole comunitária aperfeiçoa-se e completa-se com a obra de Jesus Cristo. Pois o próprio Verbo encarnado quis participar da vida social dos homens. Tomou parte nas bodas de Caná, entrou na casa de Zaqueu, comeu com os publicanos e pecadores. Revelou o amor do Pai e a sublime vocação dos homens, evocando realidades sociais comuns e servindo-se de modos de falar e de imagens da vida de todos os dias. Santificou os laços sociais e antes de mais os familiares, fonte da vida social; e submeteu-se livremente às leis do seu país. Quis levar a vida dum operário do seu tempo e da sua terra.

Na sua pregação claramente mandou aos filhos de Deus que se tratassem como irmãos. E na sua oração pediu que todos os seus discípulos fossem «um». Ele próprio se ofereceu à morte por todos, de todos feito Redentor. «Não há maior amor do que dar alguém a vida pelos seus amigos» (Jo. 15, 13). E mandou aos Apóstolos pregar a todos a mensagem evangélica para que a humanidade se tornasse a família de Deus, na qual o amor fosse toda a lei.

Primogénito entre muitos irmãos, estabeleceu, depois da sua morte e ressurreição, com o dom do seu Espírito, uma nova comunhão fraterna entre todos os que O recebem com fé e caridade, a saber, na Igreja, que é o seu corpo, no qual todos, membros uns dos outros, se prestam mùtuamente serviço segundo os diversos dons a cada um concedidos.

Esta solidariedade deve crescer sem cessar, até se consumar naquele dia em que os homens, salvos pela graça, darão perfeita glória a Deus, como família amada do Senhor e de Cristo seu irmão.

Gaudium et spes (24-32)

Imagem: Mario Purisic on Unsplash

Meditação cristã

“Terá, por isso, de ser interpretada correctamente a doutrina daqueles mestres que recomendam « esvaziar » o espírito de todas as representações sensíveis e de todos os conceitos, mantendo, porém, uma amorosa atenção a Deus, de modo que permaneça no orante um vazio que pode ser então « cheio » pela riqueza divina. O vazio de que Deus precisa é o da renúncia ao próprio egoísmo, não necessariamente o da renúncia às coisas criadas que Ele nos deu e no meio das quais nos colocou.”

Jesus, a novidade cristã da aliança que supera o sacrifício

“As religiões arcaicas se situam num tempo anterior à “era axial”. Algo de novo acontece entre os anos 900 e 200 antes de Cristo (700 anos que, nas eras da humanidade, são um período de tempo relativamente
curto. Da Europa à China opera-se uma grande transformação religiosa e cultural que tem vigência até nossos dias. Por isso se chamaram de “era axial”, os anos que estabeleceram o eixo de nossa era. Na China, o taoísmo e o confucionismo reorganizam a religião e a vida do povo desde uma visão sapiencial e ético-política. Na Índia, o budismo reforma profundamente o hinduísmo, introduzindo o caminho óctuplo da espiritualidade, no qual o desapego e a renúncia ao desejo, e, consequentemente, a renúncia de qualquer sacrifício, são enorme salto de qualidade. Na Grécia, o nascimento e o exercício da racionalidade criam um espaço autônomo, com medidas, proporção e equilíbrio formal, teoria filosófica, lógica e jurídica, acuando os deuses para o Olimpo e criando a polis e a democracia, a ética política. Já os romanos saltam do direito de sangue para o direito da pessoa jurídica, uma invenção que permite operacionalizar a universalidade que os gregos alcançavam pela razão e os orientais pelas reformas religiosas. Este é o tempo em que se deixa para trás a vida e a religião tribal em torno de sacrifícios, para se abrir à universalidade através da ética da justiça objetiva, como também da ética da bondade, enfim, da compaixão.

Israel participa desta grande transformação da “era axial”. Em Israel, os profetas relativizam e contestam os cultos e o templo para insistir na centralidade religiosa da justiça e da misericórdia: “misericórdia e não sacrifício!” (Os 6,6). Essa profunda mudança foi aprendida com enorme crise, no caso de Elias; e foi exigida com consequências conflituosas e dolorosas em Isaías e Jeremias; tornou-se apocalíptica e missionária em Ezequiel, em Daniel e nos profetas do exílio. Mas tornou-se um “fio dourado” em meio às regressões sacrificais de Israel. A figura de Abraão é recordada como fundamento deste salto de qualidade: Abraão é a memória de um sacrifício que não foi cumprido, uma ordem religiosa de oferecer o primogênito em holocausto ao “grande patriarca celeste”, para reforçar o poder do patriarca terrestre; mas essa ordem foi transgredida em vista de uma nova obediência e de um novo interdito: a de “não fazer mal ao menino”. Abraão deixa assim a religião de seus pais, de sua pátria e de sua cultura, e se torna um errante, fugitivo e nômade; abre-se para um caminho de futuro, cortando os laços com o passado. É pai de um povo que vive de promessa e pai de muitos povos como modelo de fé que supera o sacrifício. De Abraão a Jesus, pode-se ler a Escritura com o fio dourado da busca de superação do sacrifício, desmascarando ou ao menos diminuindo, tornando assimétrica a violência que está sacralizada na justiça da vingança, na guerra aos outros, nas punições de todo tipo.

O próprio Girard, em O bode expiatório, comenta os Evangelhos para constatar como as atitudes de Jesus, as suas curas e libertações, seus ensinamentos, tudo leva para a liberdade abraâmica de não obedecer à
Lei quando esta mesma Lei exige morte ou adoece e entristece, ainda que a Lei seja sagrada e constitua o coração da religião. O “Reino de Deus” é um critério de liberdade em relação a qualquer tipo de sacrifício. Mas Jesus acaba sendo sacrificado por causa disso, por relativizar e ameaçar o templo e a lei, a religião estabelecida sobre o retorno do sacrifício. Jesus repete: “Misericórdia e não sacrifício!” (Mt 12,7; 9,13; Lc 19,10).

Em João 8, 33ss, depois de Jesus salvar a pecadora da lei e do sacrifício e de se proclamar como palavra libertadora com autoridade, desencadeia-se com seus interlocutores uma discussão sobre quem é filho de Abraão. Jesus nega-lhes esse título: “Vós procurais matar-me, a mim que vos falei a verdade – isso Abraão não fez!” E em seguida desmascara-os como filhos de Caim, o homicida e pai da cidade e da cultura que escondem inimizade e violência nas muralhas e no manto das boas aparências – filhos do homicida e do pai da mentira desde as origens. Esta cena dramática desmonta a violência mascarada em justiça, em heroísmo e religião.

Finalmente, a Páscoa de Jesus, em todos os seus passos, é uma expulsão do “príncipe deste mundo”, o “acusador”, cujo poder é a violência mascarada e potencializada na religião, na ordem sagrada que sacrifica. Mas Jesus “amou até o fim” e atravessou a violência, rompendo seu círculo na liberdade do perdão, liberdade em relação ao círculo fechado do ódio e da vingança. O túmulo “vazio” testemunha que a morte de Jesus não é a do herói sacrificado cujo corpo, em grande mausoléu, se torna centro sagrado das instituições de poder e de ordem. A morte de Jesus termina num túmulo vazio. Não é a morte sagrada, o sacrifício arcaico, que salva. A ressurreição de Jesus não é resultado de um sacrifício, mas de um amor fiel e de um protesto com poder criador de Deus. De fato, a ressurreição, como coroamento do fio dourado da Escritura, é a definitiva vitória da misericórdia sem sacrifício, porque é uma vitória sem produzir vencidos; vitória sem vingança, sem novas vítimas; é força suave que chega por testemunhas femininas, trazendo outra lógica, a da religião do dom de vida sem precisar de morte; do reconhecimento e da ação de graças, sem precisar do preço da vida. Doravante, a palavra “sacrifício”, o da “Nova e Eterna Aliança”, profetizada por Jeremias e começada por Jesus, está livre para se referir à celebração do dom de Jesus numa refeição que inclui a todos e a todas como irmãos e irmãs.

A universalidade cristã, onde não há mais grego ou judeu, homem ou mulher, livre ou escravo, mas onde todos se juntam à mesa de ação da graças – a Eucaristia – é uma universalidade concreta, de corpos e de relações sociais, e não teórica ou jurídica como a universalidade grega e romana. O Cristianismo se tornou a religião da misericórdia e da Eucaristia, e, por isso, da igualdade e da liberdade. Mas os cristãos foram perseguidos por isso.”

Luiz Carlos Susin. Da religião do sacrifício à religião da fraternidade.

Imagem: Jon Tyson on Unsplash

O dragão de Ap 12

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Em verdade, Ap 12 focaliza apenas o primeiro nível (Dragão = Diabo), deixando em segundo plano suas concretizações históricas, as quais serão desenvolvidas no capítulo seguinte na forma das duas Feras: a dom Mar, que também tem sete cabeças e uma coroa sobre cada cabeça (Ap 13,1), e a da Terra, que, tem cara de cordeiro, mas voz de dragão (Ap 13,11).


Notemos que o contraste entre os dois “sinais”, respectivamente, da Mulher e do Dragão, não poderia ser mais violento: da parte da Mulher, a suprema fraqueza, e da parte do Dragão, a máxima força; da parte da Mulher, a extrema expressão da humanidade, e da parte do Dragão, a mais repugnante manifestação de brutalidade.


Contudo, sob estas aparências contrárias, lateja uma outra realidade. A aparente fraqueza da Mulher é a verdadeira força, e a aparente força do Dragão é a verdadeira fraqueza. A vitória está não com quem traz ódio, violência e morte, mas com quem sofre para testemunhar o Amor e dar a vida. Eis, portanto, o segredo que o Livro da Revelação quer desvendar a nossos olhos.


(…)
Quanto aos empreendimentos do Dragão, desembocam todos no fracasso: a tentativa de devorar o Menino, a batalha com Miguel, a perseguição da Mulher e, enfim, a perseguição dos fiéis. Seu assalto é típico de quem está desesperado e sabe-se perdido. Tudo o que intenta fracassa, para seu maior furor.


(…) De fato, em Jesus o Reino de Deus enfrenta vitoriosamente o Reino de Satanás (Cf. Mt 12,25-29), ainda que este volte a se encarnar nos sistemas de injustiça que se sucedem na história.”

Clodovis Boff. Mariologia Social, p. 396-397

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