O fracasso do sacrifício

«Em vista disso, faz-se necessário o desvendamento da estrutura mimética da subjetividade, para se alcançar o estágio da subjetividade em chave de desejo como doação, que seja capaz de engendrar a construção do espaço intersubjetivo do mútuo reconhecimento na assimetria do dom e na gratuidade. Para alcançar esse estágio é imprescindível o desmantelamento do desejo mimético violento que estrutura toda subjetividade, visto que a maneira de ser-no-mundo está marcada irreversivelmente pelo mimetismo, como mostrou exaustivamente René Girard.

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A estrutura mimética da subjetividade justifica o paradoxo da condição humana, que se intercala entre violência e redenção, através da in-visibilização ou visilização do outro, do encobrimento ao reconhecimento (MENDOZA, 2016, p. 31-50). A novidade da análise do desejo de René Girard reside na “complexa exterioridade fundante” da subjetividade (MENDOZA, 2015a, p. 362), isto é, a configuração do desejo se dá pela influência de um terceiro. Esse terceiro se expressa tanto no modelo que se imita, como no próprio objeto desejado. À análise do mecanismo fundante da subjetividade chama-se “teoria do desejo mimético”, por meio da qual se compreende a violência intersubjetiva como vontade de onipotência, visto que na mímesis há um potencial aquisitivo. Nisso reside a raiz da violência intersubjetiva que assola a humanidade, desde os primórdios da humanidade. Compreende-se, pois, que o estágio do mútuo reconhecimento, além da dialética hegeliana como último estágio da subjetividade, passa pelo desvendamento do desejo mimético violento e sua subversão para o desejo mimético de doação.

E esta passagem se faz necessariamente, não pela negação do mimetismo, visto que não é possível deixar de imitar; antes, pela instauração de outro modelo a imitar. Se por um lado a teoria do desejo mimético explica a condição humana mergulhada na rivalidade, por outro lado ela, também, consegue justificar a passagem dessa condição para a condição humana marcada pela oferenda de si mesmo.

Esse outro modelo a imitar foi plenamente revelado em Jesus de Nazaré10, em sua oferenda de si mesmo no seio do contágio mimético. É exatamente essa condição humana reconciliada, marcada pela gratuidade, que o cristianismo dá testemunho para a instauração da Civitas Dei. Descobre-se assim a verdade antropológica do cristianismo, como modo de pôr fim ao mecanismo mimético violento da subjetividade e, consequentemente, da religião sacrificial. Cristo foi aquele que desvelou o fracasso da religião sacrificial e desmontou seus mecanismos vitimários. Não apenas isso, ele também revelou a verdade da inocência da vítima e, consequentemente, a universalidade e a transcendência do cristianismo.»

Cleusa Caldeira. Teologia e niilismo pós-moderno: a subjetividade vulnerável como locus theologicus no pensamento de Carlos Mendoza Álvarez

imagem: Kingsley Osei-Abrah on Unsplash