Os novos paradigmas do Concílio Vaticano II.

«O novo Pentecostes e o aggiornamento da Igreja desejados por João XXIII começaram a se fazer sentir desde a primeira sessão do Vaticano II, quando uma ampla maioria de padres conciliares se opôs aos documentos preliminares preparados sob a direção do Cardeal Alfredo Ottaviani, prefeito daquela que se chama hoje Congregação para a Doutrina da Fé, e que João XXIII decidiu devolver à fase de redação. Não se tratava de simples críticas a cada documento em particular, mas, de maneira implícita e num sentido análogo às “mudanças de paradigma” examinadas por Thomas S. Kuhn nas ciências duras, da rejeição radical de um paradigma teológico e da busca de um paradigma alternativo. Como diz o teólogo dominicano brasileiro Carlos Josafat Pinto de Oliveira, antigo professor da Universidade de Friburgo (Suíça), a emergência de um novo paradigma, teológico neste caso, manifesta intenções primordiais e opções fundadoras sobretudo através das quais é rejeitado; porque, nos momentos de transição, sabe-se bem o que não se quer, embora não se saiba bem ainda o que se quer positivamente. De fato, as intervenções dos cardeais, patriarcas e bispos, durante essa primeira sessão do concílio, concordavam, segundo Oliveira, em criticar o caráter a-histórico e intemporalmente unívoco dos documentos preliminares, que não levavam em conta nem a nova consciência histórica da cultura e da filosofia ocidentais, nem os avanços já realizados nesse domínio pelos estudos bíblicos, patrísticos, litúrgicos e sistemáticos, e tampouco indicações do bom Papa João XXIII acerca de uma leitura crente dos sinais dos tempos, como também a “atualização” correspondente da teologia e da pastoral eclesiais num mundo em mudança acelerada. Todos esses aspectos implicavam, ao contrário, uma visão histórica da realidade.

De minha parte, acrescento às considerações de Oliveira o fato de que, com Heidegger, a filosofia, até em representantes precavidos do catolicismo e do tomismo (como Étienne Gilson, a escola de Lovaina ou teólogos como Lubac, Congar, Karl Rahner ou von Balthasar), tinha superado o simples paradigma clássico da substância e estava superando o paradigma moderno do sujeito para se orientar para um novo paradigma não apenas teológico, mas histórico-cultural. Enquanto os dois primeiros paradigmas privilegiavam a identidade, a necessidade, a inteligibilidade e a eternidade como características fundamentais do primeiro princípio e, portanto, da compreensão de Deus, o novo paradigma que emergia, com a sua revalorização da categoria de relação com referência à de substância, convidava a repensar todas essas características a partir da diferença ou da alteridade (a relação), a partir do mistério, dando-se a conhecer como mistério, a partir da gratuidade e do dom e, por conseguinte, da imprevisível novidade histórica.

A mudança de paradigma que decorre disso em ética social aparece com evidência gritante se GS [Gaudium et spes] for comparada com o documento preliminar rejeitado pelos padres conciliares e cujo título era De ordine morali Christiano. Segundo Oliveira, esse documento defendia uma “ordem objetiva e absoluta” sem levar suficientemente em conta a realidade e a objetividade dos fatores humanos subjetivos e históricos, concebia Deus como um “vingador da ordem moral” e defendia uma atitude negativa e autoritária de condenação; tratava-se, em minha opinião, de um “eticismo sem bondade”, como aquele que o Papa Francisco critica na exortação Evangelii gaudium (EG 231). A bondade, de fato, sabe considerar a realidade singular de cada pessoa e de cada situação, e o eticismo é apenas uma caricatura da ética.

Por outro lado, o paradigma ético fundamental de GS não é negativo, mas positivo, porque está orientado pelos princípios da dignidade e da responsabilidade humanas. Esse não é um paradigma ético e social puramente “natural”, mas histórico, porque reconhece as realidades históricas plurais dos povos e das culturas, bem como as das estruturas sociais, políticas e econômicas.»

J.C. Scannone. A Teologia do Povo (raízes teológicas do Papa Francisco), pgs. 186-188.

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Espiritualidade e teologia

«Recentemente muitos teologos voltaram a acentuar a dimensão espiritual da teologia. H. Urs von Balthasar (1964, p. 270) buscou manter uma estreita relação entre teologia e espiritualidade, definida por ele como o aspecto subjetivo da dogmática. Para Ratzinger (2008, p. 48), a teologia “vive do paradoxo de que existe uma ligação entre fé e ciência”. Enquanto supõe a fé, o ponto de partida da pesquisa teológica se encontra na experiência do próprio mistério que ela busca compreender e comunicar. Ratzinger (2008, p. 49) afirma uma ligação estreita entre teologia e santidade, não por pietismo barato ou palavrório sentimental, mas por causa da lógica inerente à própria teologia que nasce da experiência de fé. Como dizia Lutero, sola experientia facit theologum. Outros corroboram a opinião de Ratzinger, apontando a fé como o início da teologia, uma vez que a teologia constrói seu discurso crítico e sistemático guiada pela fé. Para fazer teologia cristã, o teólogo precisa ser fiel e racional ao mesmo tempo, ou seja, antes de ensinar sobre Deus, ele próprio deve ser ensinado por ele (O’ COLLINS, 1991, p. 15).
(…)

Hoje em dia se faz urgente, para a teologia, a tarefa de evidenciar a ligação estreita entre fé e razão, fé e ciência. Os riscos de uma interpretação meramente subjetiva do mistério cristão são enormes. A experiência cristã conta sempre com critérios objetivos de discernimento. Se por um lado o mais importante é o encontro amoroso com o Senhor, por outro a revelação, enquanto Palavra de Deus a nós dirigida, conta com inegável objetividade que a experiência não negligencia. Santa Teresa de Ávila (2010, p. 201), que experimentou o mistério cristão num nível muito profundo, afirmou: “O que tenho visto e sabido por experiência é que, nestas coisas, só fica a certeza de que procedem de Deus, na medida em que são conformes à Sagrada Escritura”. A doutora busca na objetividade da Sagrada Escritura confirmação de sua rica experiência. Sua subjetividade não inventa Deus, mas o reconhece e a ele se submete no conhecimento da revelação. Por outro lado, a beleza e grandeza do mistério ultrapassa tudo o que se diz sobre ele: “se o Senhor não me houvesse instruído, pouco teria aprendido com os livros. Nada entendia até que Sua Majestade me fez compreender por experiência” (SANTA TERESA DE JESUS, 2010, p. 171). Não se trata de um conhecimento recebido por via de informação, mas de vivência profunda. Em Santa Teresa encontramos um raro equilíbrio entre fé – experiência e razão – conhecimento. Aqui há dois extremos graves a evitar: um racionalismo que queira dispensar os cristãos de ter que crer e um experimentalismo que desobrigue a fé de mostrar a razoabilidade do conteúdo da revelação. Por outro lado, quem crê não precisa temer a ciência, afinal, como afirma o Papa Francisco na Lumen Fidei,

o olhar da ciência tira benefício da fé: esta convida o cientista a permanecer aberto à realidade, em toda a sua riqueza inesgotável. A fé desperta o sentido crítico, enquanto impede a pesquisa de se deter, satisfeita, nas suas fórmulas e ajuda-a a compreender que a natureza sempre a ultrapassa. Convidando-o a maravilhar-se diante do mistério da criação, a fé alarga og horizontes da razão para iluminar melhor o mundo que se abre aos estudos da ciência (LF 34).

O perigo maior em nossos dias parece ser o do experimentalismo, uma vez que o homem pós-moderno valoriza sobretudo o conhecimento estético, feito de sensações e sentimentos. Nesse caso a fé se distancia da razão. Ele corre, portanto, o sério risco de definir Deus a partir de sua subjetividade, criando para si um ídolo muito diferente do Deus de Jesus Cristo, que exige conversão e compromisso com o Reino.»

CARRARA, P. S.; CARMO, S. M. DO. A teologia como sapientia fidei: interfaces entre teologia e espiritualidade. HORIZONTE – Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 12, n. 34, p. 510-533, 29 jun. 2014.

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O bem da caridade

“Diz o Senhor no Evangelho de João: Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros (Jo 13,35). E também se lê numa Carta do mesmo Apóstolo: Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece Deus. Quem não ama, não chegou a conhecer Deus, pois Deus é amor (1Jo 4,7-8). Examine-se a si mesmo cada um dos fiéis, e procure discernir com sinceridade os mais íntimos sentimentos de seu coração. Se encontrar na sua consciência algo que seja fruto da caridade, não duvide que Deus está com ele; mas se esforce por tornar-se cada vez mais digno de tão grande hóspede, perseverando com maior generosidade na prática das obras de misericórdia.

Se Deus é amor, a caridade não deve ter fim, porque a grandeza de Deus não tem limites. Para praticar o bem da caridade, amados filhos, todo tempo é próprio. Contudo, estes dias da Quaresma, a isso nos exortam de modo especial. Se desejamos celebrar a Páscoa do Senhor com o espírito e o corpo santificados, esforcemo-nos o mais possível por adquirir essa virtude que contém em si todas as outras e cobre a multidão dos pecados.

Ao aproximar-se a celebração deste mistério que ultrapassa todos os outros, o mistério do sangue de Jesus Cristo que apagou as nossas iniqüidades, preparemo-nos em primeiro lugar mediante o sacrifício espiritual da misericórdia; o que a bondade divina nos concedeu, demo-lo também nós àqueles que nos ofenderam. Seja, neste tempo, mais larga a nossa generosidade para com os pobres e todos os que sofrem, a fim de que os nossos jejuns possam saciar a fome dos indigentes e se multipliquem as vozes que dão graças a Deus. Nenhuma devoção dos fiéis agrada tanto a Deus como a dedicação para com os seus pobres, pois nesta solicitude misericordiosa ele reconhece a imagem de sua própria bondade.

Não temamos que essas despesas diminuam nossos recursos, porque a benevolência é uma grande riqueza e não podem faltar meios para a generosidade onde Cristo alimenta e é alimentado. Em tudo isso, intervém aquela mão divina que ao partir o pão o faz crescer, e ao reparti-lo multiplica-o. Quem dá esmola, faça-o com alegria e confiança, porque tanto maior será o lucro quanto menos guardar para si, conforme diz o santo Apóstolo Paulo: Aquele que dá a semente ao semeador e lhe dará pão como alimento, ele mesmo multiplicará vossas sementes e aumentará os frutos da vossa justiça (2Cor 9,10), em Cristo Jesus, nosso Senhor, que vive e reina com o Pai e o Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amém.”

Dos Sermões de São Leão Magno, papa (Sermo 10 de Quadragesima, 3-5:PL 54,299-301) (Séc.V)

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Quem somos nós?

“La primera afirmación de Andrade nos sitúa en el lugar desde el que ella hace teología. Interpelada por la realidad que la rodea, hace visible que la marginación de los empobrecidos llega hasta los límites del lenguaje. Ellos no entran en la definición de persona que aprendimos. Como tampoco entran quienes padecen demencia senil, discapacidad física se vera o sufren un retraso grave, los abandonados del mundo y del sistema. Su quehacer teológico se encarna en la dolorosa situación de quienes se encuentran en las fronteras de lo humano y en su impotencia quedan desposeídos de la dignidad que les es otorgada, mientras otros se arrogan para sí el ser sujetos, libres y autónomos, con capacidad para disponer de sus vidas y de la vida de otros/otras. у

Si incluir a los marginados no fuera motivo suficiente para incorporar al discurso teológico un nuevo concepto de persona, Andrade propone otras razones a lo largo de su profusa obra. Entre ellas, el impacto significativo que puede ofrecer un nuevo lenguaje antropológico a la hora de pensar los discursos sobre Dios, la creación, la gracia y el pecado.
(…)
La elección del término autopresencia para referirse a la persona no es casual. En su intento por proponer un concepto inclusivo, sin connotaciones previas, esta noción no conlleva ni la autoconciencia ni la autoposesión. Autopresente no es el yo encerrado en sí mismo, es quien es presente a sí mismo, a sí misma, y siendo en sí, tiene la capacidad para responder ante alguien, reaccionando a una presencia, una mirada, una palabra, un gesto.

Presente a sí misma, la persona es búsqueda y pregunta por su identidad. Pregunta que ha de ser respondida por quienes entretejen la trama de su vida. Esta dinámica implícitamente descubre la ausencia de un yo omnipotente. Por el contrario, la autopresencia se espera a sí misma en los demás, aguardando que otros/otras colmen sus deseos y carencias. Por tanto, por más difuso que sea el yo es esperanza que se abre indefinidamente al anhelo de una plenitud que al menos sacie su ser vulnerable y dependiente, allí donde se encuentre, como se encuentre.

Preguntar, buscar, esperar son procesos comunes a toda autopresencia; sin embargo, son propios de cada autopresencia y, por ende, intransferibles. El yo personal no puede ser reemplazado por nadie en sus vivencias. Su memoria, deseos y sentimientos le pertenecen. Es autónomo en su aper tura ilimitada y, por tanto, también puede manifestar, aún imperceptible mente, su rechazo.

La persona pregunta presente ante sí espera descubrir su propio mis terio como sí misma. Autopresencia-esperanza-autonomía “describen a una persona siempre necesitada de alguna sanación e integración que no es capaz de procurarse por sus propias fuerzas”. Es en el encuentro consigo con los demás y su contexto donde halla las respuestas a sus preguntas.

La pregunta por el misterio que soy no puedo responderla sin ti: Abiertas a más de sí, las personas se descubren a sí mismas y a sí mismas en comunión con otras.”

Sánchez Ruiz, A. (2019). Tu misterio es nuestra esperanza. Contribuciones del concepto de persona como autopresencia-en- relación. Revista Iberoamericana De Teología, 14(27), 11-41. Recuperado a partir de https://ribet.ibero.mx/index.php/ribet/article/view/13

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Historicizar a salvação cristã

“Romero otorga una profundidad mística a la opción por los pobres al invitar a sus lectores a contemplar al Cristo de la pasión en el pueblo sufriente. En un artículo de 1972 trae a colación, sin cita, una frase de Karl Rahner: “La marcha de la historia sólo se entiende proyectándola sobre la pasión de Cristo y viceversa”. Inspirado en esa afirmación, Romero escribe: “Ha sido una conjugación de la pasión de Cristo y de la pasión de nuestro pueblo […] Una verdadera pasión del pueblo, del pueblo pobre que es, en último término, el que tiene que cargar la cruz fabricada por las ambiciones y rivalidades”.

El misterio de la encarnación permitió a Romero descubrir la presenciade Cristo en el rostro de los pueblos sufrientes. En 1971, invitaba a asumir la renovación posconciliar que se encuentra en el documento de Medellín, dado que “el espíritu marcó allí la hora y descubrió el verdadero rostro de la Iglesia de Cristo, encarnada y dando respuesta a nuestros pueblos”.

La contemplación de la Pasión del Señor en la pasión del pueblo tiene entonces hondas connotaciones políticas, pues lleva a la Iglesia a insertarse en el “via crucis nacional” para superar todo odio e injusticia y así permitir la recuperación de la dignidad de todos los hombres en la resurrección. Más adelante, en 1978, con toda la dramática experiencia de la creciente violencia en El Salvador, monseñor Romero hizo una lúcida contemplación política de la pasión cuando afirmó que:

Cristo afeado y dolorido, oprimido y maltratado, no es sólo un individuo de la historia: en él hay que mirar al que carga todas las culpas y las consecuencias de todas las culpas. Él es la mejor figura de un pueblo desfigurado por el pecado de quienes integran este pueblo.

Contemplar a Cristo en los que sufren los atropellos contra sus derechos fundamentales hace que la defensa de esos derechos sea parte del “minis-terio de la Iglesia a la humanidad”. Romero pedía que la Pascua tuviera incidencia social y política en la práctica de la comunidad cristiana. Las comunidades deben convertirse en “cirios de Pascua […] que descubran a nuestra patria los verdaderos caminos de su dignidad, de su paz y de su verdadero progreso”.

La opción por los pobres, fundada en la contemplación de la pasión de Cristo en la pasión del pueblo, será la semilla de lo que podríamos denominar una espiritualidad política; es decir, una fe que puede alimentarse a partir de una contemplación del Señor en la historia, en lo concreto de un mundo lacerado, de un pueblo sufriente. Ellacuría dirá que monseñor Romero contribuyó a historizar la salvación cristiana.”

Farfán Pacheco, M. M., & Ruiz Serna, D. F. (2020). FE-POLÍTICA Y OPCIÓN POR LOS POBRES EN LA PRODUCCIÓN PERIODÍSTICA DE MONSEÑOR ÓSCAR A. ROMERO. Revista Iberoamericana De Teología, 16(31), 43-73. Recuperado a partir de https://ribet.ibero.mx/index.php/ribet/article/view/55

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Cristo, sumo-sacerdote, é a nossa propiciação

«Uma vez por ano o sumo sacerdote, afastando-se do povo, entra no lugar onde estão o propiciatório, os querubins, a arca da aliança e o altar do incenso; ninguém pode entrar aí, exceto o sumo sacerdote. Mas consideremos o nosso verdadeiro sumo sacerdote, o Senhor Jesus Cristo. Tendo assumido a natureza humana, ele estava o ano todo com o povo – aquele ano do qual ele mesmo disse: O Senhor enviou-me para anunciar a boa-nova aos pobres; proclamar um ano da graça do Senhor e o dia do perdão (cf. Lc 4,18.19) – e uma só vez durante esse ano, no dia da expiação, ele entrou no santuário, isto é, penetrou nos céus, depois de cumprir sua missão redentora, e permanece diante do Pai, para torná-lo propício ao gênero humano e interceder por todos os que nele creem.

Conhecendo esta propiciação que reconcilia os homens com o Pai, diz o apóstolo João: Meus filhinhos, escrevo isto para que não pequeis. No entanto, se alguém pecar, temos junto do Pai um Defensor: Jesus Cristo, o Justo. Ele é a vítima de expiação pelos nossos pecados (1Jo 2,1-2). Paulo lembra igualmente esta propiciação, ao falar de Cristo: Deus o destinou a ser, por seu próprio sangue, instrumento de expiação mediante a realidade da fé (Rm 3,25). Por isso, o dia da expiação continua para nós até o fim do mundo.
Diz a palavra divina: Na presença do Senhor porá o incenso sobre o fogo, de modo que a nuvem de incenso cubra o propiciatório que está sobre a arca da aliança; assim não morrerá. Em seguida, pegará um pouco do sangue do bezerro, e com o dedo, aspergirá o lado oriental do propiciatório (cf. Lv 16,13-14). Ensinou assim aos antigos como havia de ser celebrado o rito de propiciação, oferecido a Deus em favor dos homens. Tu, porém, que te aproximaste de Cristo, o verdadeiro sumo sacerdote que, com o seu sangue, tornou Deus propício para contigo e te reconciliou com o Pai, não fixes tua atenção no sangue das vítimas antigas. Procura antes conhecer o sangue do Verbo e ouve o que ele mesmo te diz: Isto é o meu sangue, que será derramado por vós, para remissão dos pecados (cf. Mt 26,28).

Também a aspersão para o lado do oriente tem o seu significado. Do oriente nos vem a propiciação. É de lá que vem aquele homem cujo nome é Oriente e que foi constituído mediador entre Deus e os homens. Por esse motivo és convidado a olhar sempre para o oriente, de onde nasce para ti o Sol da justiça, de onde a luz se levanta sobre ti, para que nunca andes nas trevas, nem te surpreenda nas trevas o último dia; a fim de que a noite e a escuridão da ignorância não caiam sorrateiramente sobre ti, mas vivas sempre na luz da sabedoria, no pleno dia da fé e no fulgor da caridade e da paz.»

Das Homilias sobre o Levítico, de Orígenes, presbítero (Hom. 9,5.10:PG12,515.523) (Séc.III)

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Linguagem e (des)humanização

“Não somos nós que fazemos a pergunta pelo sentido da vida, mas a própria vida nos faz, quando exatamente as coisas já não fazem sentido e o coração humano continua pulsado por ter algo pelo qual viver. Mas também quando exatamente quando a vida nos inspira a encontrá-lo, de muitas formas, e sem forma definida alguma, pois é mistério e está além de toda forma. Como enigma, esconde algo de grandioso que pede sua decifração, e eis que nasce a linguagem, como cifras a serem não somente lidas, mas executadas onde as formas da beleza vão sendo assimiladas no interior humano que transbordam como fonte de sentido em seu agir, e eis o poeta, o que cifra o mundo, que nele se inspira, para outros também experimentarem. A linguagem é exatamente a decifração do mundo, e de modo especial a linguagem poética, que nasce da escuta atenta à essa vida maravilhosa e horrenda ao mesmo tempo, mas que algo faz o poeta acreditar que pode fazer sentido a vida, quer seja quando nos provoca ao encanto, quer seja quando não permite que nos percamos em delírios de nossas ilusões. É pelo surgimento da linguagem que o ser humano se humaniza e constrói uma sociedade em que suas formas sociais correspondam as formas daquilo que forma a sua consciência.

A Teologia tenderá a dizer que este “algo” que dá sentido à vida é “Alguém”. A Literatura ora concorda, quando este “Alguém” também provoca esse “algo”, mas com todo direito, desconfia de um “Alguém” que tão pouco tem “algo” a dizer à tarefa humana de ser humana, e mais ainda, quando em nome deste “Alguém” legitima as cegueiras que desumanizam a vida. Aqui a poesia é teológica quando é atéia, porque diz Deus no avesso. Quando o discurso sobre Deus não enxerga suas cegueiras é porque deixou de ser inspirado, ou seja, deixou de ser provocado por algo/Alguém que lhe provocava uma paixão pela vida, e assim, se torna apático com a vida concreta das pessoas e da sociedade para inventar um mundo paralelo, no qual se refugia e sacrilegamente chamará “céu”, como distância da condição humana. O santo que Zaratustra encontra não mais ama os homens para amar a Deus:

Pois por que — disse o santo — vim eu para a solidão? Não foi por amar demasiadamente os homens? Agora amo a Deus; não amo os homens. O homem é para mim, coisa sobremaneira incompleta. O amor pelo homem matar-me-ia.

É a partir desse momento que “Deus morreu”! Morre não porque já não tem mais nada a dizer a vida, mas sim porque já não o escutam, e o tratam como morto. Colocam em “Suas” palavras a legitimação da apatia de seus corações. Esse “deus” não era mistério, era um fantasma que assombrava pelo medo, e sua linguagem apática era teológica.

É aqui que a visão literária de Deus não é menos importante que a visão teológica, pois aquela por ser uma linguagem que nasce da escuta nunca deixou de escutar o Mistério da vida, esta por sua vez, acabou por sofrer de esclerocardia e surdez afetiva, dada sua paixão, demasiada paixão, pela razão cartesiana, que por sua vez temia a paixão, por fazer perder a razão. Nas palavras de Voltaire, o bom teólogo é aquele que tem um “coração gelado” e por isso o conselho:

Acaso era necessário odiar-se, perseguir-se, degolar-se por essas quimeras incompreensíveis? Corram com os teólogos, e o universo ficará tranqüilo (pelo menos em matéria de religião). Admitam-nos, dêem-lhes autoridade, e a terra será inundada de sangue.

Para o filósofo francês, a espada do frio teólogo se chama “dogma” e é causa de todas as barbáries, de modo que para conhecer a Deus não basta “uma razão para o conhecer” mas fundamentalmente ter “um coração para o amar”. Mais propriamente falando, Voltaire criticava o “dogmatismo” de uma linguagem cristã de Cristandade, ou seja, criticava o modo de ser apático de um cristianismo cultural que era usado para legitimar as escusas escolhas políticas de seu tempo, e que as Letras oriundas de uma consciência marcadamente humana, não aceitariam uma linguagem (modo) de ser desumano, por mais sagrada que pudesse ser a linguagem. O dia em que a linguagem teológica desumaniza é sinal que já não é Deus quem fala, mas alguém que se aproveita de Sua fama.”

Alex Villas Boas. Se poeticamente o humano habita o mundo, poeticamente Deus habita o humano.

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O livro de Rute

“O quadro inicial da fome no livro de Rute começa dirigindo-se a uma família de Belém (bêth lehem = casa do pão). Essa família foge da crise migrando para os campos de Moab onde estes viverão por mais de dez anos. Logo morre o chefe da família, e, embora casados com mulheres moabitas, os dois rapazes também morrem sem deixar descendentes, ficando três mulheres, viúvas e sem filhos (Rt 1, 1-4). Essa emigração é consequência do individualismo provocado pelos altos tributos cobrados pelo império, que obrigavam o povo a trabalhar dobrado para pagá-lo e mesmo com todo esforço a miséria toma conta das famílias. Diante da fome a família de Elimeleque busca alternativas. Noemi retorna a Belém com uma das noras, Rute, e lá sobrevivem das sobras da colheita de um parente próximo, que posteriormente se casa com a jovem viúva, moabita, e também compra a terra do falecido parente judeu. Segundo Lopes (1997) a fome é consequência dos projetos de reconstrução promovidos por Esdras e Neemias, pois acentuaram os conflitos existentes em Jerusalém. A imagem do mal no livro de Rute pode ser identificada pelo quadro de crise e fome na terra.

É uma história de libertação precisamente porque descreve claramente os elementos básicos de uma história libertadora (Gn 12,10-20; 20,1-17; 26,1-17; Ex 1-3), como opressão, situação de risco de vida, de fome, viuvez, migração, sem-terra e sem comida, escravidão, cena de fome força a migração. Apresenta protesto em dois extremos: crise (o grito amargo de Noemi- Rt 1,20) e sua resolução (Rt 4,14-17). Rao (2009) diz que a história mostra o motivo de uso de artifícios, por Rute e Noemi, para sobrevivência.

A história de Rute não é inocente, mas é uma crítica velada à estrutura iníqua que gera fome, morte, migração, viuvez, marginalização da mulher etc. Apela para uma lei do tempo dos juízes, a lei da respiga, como superação da fome. Marianno (2010) diz que “para sobreviver em tempos de fome, a viúva mais velha colocou a serviço das duas a sua experiência de mulher vivida, de ler o caráter das pessoas com os olhos que o tempo lhe permitia ter” (MARIANNO, 2010, p. 121). A autora destaca que Noemi buscava justiça, trazendo à memória a história de seus ancestrais, como o caso de um sogro que largou sua nora no esquecimento e essa precisou usar artifícios comprometedores para que ele cumprisse com suas obrigações sociais (Gn 38). Essa era uma lei humanitária que permitia aos pobres rebuscar a área depois que os trabalhadores fizessem a colheita (Lv 19,9-10; Dt24,19). Rute pede a Noemi permissão para “respigar” em alguma lavoura cujo proprietário ou funcionários a recebessem, pois estavam no início da colheita da cevada, e Rute entra em ação para superar o mal daquele momento (FERREIRA, 2014). Embora pareça como mendicância, essa prática era não só aceita como garantida por direito ao estrangeiro, órfão e viúva (CARRASCO, 2002).”

Gláucia Loureiro de Paula. O livro de Rute como proposta de superação do mal estrutural.

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A fé e a razão

“Pode-se dizer que a relação entre a fé e a razão, para não se deturpar, exige três principais momentos: 1 – preparação para a fé pela razão; 2 – ato da fé; 3 – inteligência do conteúdo da fé. No entanto, nem sempre se transita livremente e sem sobressaltos de um para outro momento passando-se por essas três etapas.

A interação entre esses três momentos é o itinerário ideal desejado para o cristão, todavia essas três etapas não se exigem mutuamente. Apenas o primeiro momento se impõe: pois, obrigatoriamente, só pode crer quem é dotado de razão (os animais não creem); quem não possui razão (no sentido de pensamento) não pode crer e assentir com a fé. A razão é condição primeira de possibilidade da própria fé.

Daí para diante – após a primeira etapa das relações entre a fé e a razão – surgem em campo outros fatores fundamentais para a continuidade da interação (da afirmação da fé); um deles é, por exemplo, a vontade, que pode levar à interação dessas etapas ou romper sua continuidade¹5. Por exemplo: a deliberação da vontade pode nos afastar da fé, recusando e rejeitando o ato da fé. Nesse caso, o movimento das relações entre a fé e a razão é esvaziado de seu significado e meta. Quando isso não ocorre, e o assentimento da razão se embasa na vontade, o processo continua na direção de certa intelecção da revelação.

Em suma, sob a conduta da fé, a razão não se extravia como acontece com os filósofos guiados exclusivamente pela razão. Esse seria o caso de alguns filósofos gregos nos quais Santo Agostinho se inspirou: Platão e Plotino. Eles viam a verdade e a almejavam (“trata-se da doutrina mais próxima da verdade cristã e dela devemos nos utilizar”); no entanto não possuíam os meios para alcançá-la (a verdadeira filosofia para Santo Agostinho era aquela que, não contente em mostrar fins, fornece meios para alcançá-los).

Toda filosofia que pretenda bastar-se a si mesma se equivocará, errará (os erros de Platão e de Aristóteles são os de uma razão autônoma), de modo que o único método seguro é o de ter a revelação como guia, a fim de se chegar a alguma inteligência de seu conteúdo. Em outras palavras, a razão só alcança a verdade com o auxílio da fé. A razão é impotente para abarcar e esgotar a verdade. Ela é convidada a crer, é-lhe pedido que compreenda a necessidade de crer se quiser compreender outras coisas.

A razão é inseparável da fé em seu exercício, pois não basta a si própria. Essa fórmula, tão estranha aos modernos e aos preconizadores de uma razão soberana, passa a ser a marca distintiva do itinerário agostiniano rumo à verdade.

Retomando alguns aspectos das relações entre fé e razão, nota-se que crer é um ato do pensamento”. Para crer, para ter fé, é preciso pensar; todo aquele que crê pensa, crendo pensa, pensando crê.
Eis a resposta de Santo Agostinho a quem perguntasse sobre a ordem da intelecção e da fé, isto é, se devemos primeiro compreender” para crer ou crer para depois compreender No Sermão 45, on sobre o sentido da intelecção e da fé, diz que todos querem entender, mas nem todos querem crer. Se lhe dissessem: “compreenda para crer”, responderia, “crê para que compreendas” (Intelligam, ut credam; respondeo: Crede, ut intelligas”) acrescentando o versículo de Isaías: “se não crerdes, não compreendereis” (nisi credideritis, non intellegetis; Is 7, 9).

Diz o Hiponense, em seguida, que em parte tem razão aquele que diz “compreenda para crer” visto que ele (Santo Agostinho) fala para que creiam aqueles que não creem e sem entenderem o que ele diz não podem crer. Logo, é em parte verdade que se “compreender para crer” e também o que Santo Agostinho diz conforme o profeta: “crê para compreender”. E já que ambos têm razão, acrescenta: “Portanto compreende para crer, crê para compreender” (Ergo intellige, ut credas; crede, ut intelligas). E encer ra o Sermão dizendo como esses termos devem ser entendidos: “Compre ende minha palavra para crer; crê para que compreendas a palavra de Deus” (Intellige, ut credas, verbum meum; crede, ut intelligas verbum Dei).

Há razões para crer; uma delas é ser razoável, não confiar apenas na razão. Outra: a fé não é um fim em si mesmo, mas deve conduzir à intelecção. A fé, em si mesma, também pode se extraviar”. Ambos os termos são indissociáveis no percurso rumo à verdade.”

Mariana Paolozzi Sérvulo da Cunha. Santo Agostinho: fé e razão na busca da verdade.

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A voz do silêncio

«A palavra e o silêncio não são opostos, mas são como as duas faces de uma mesma moeda: aquele que ora não tem que escolher um e renunciar ao outro, mas conciliar os dois e mostrar que ambos são necessários para veicular a experiência vivenciada na oração. Deus colocou no ser humano uma necessidade e uma capacidade seja de silêncio seja de expressão verbal. O silêncio se situa entre dois exercícios de linguagem: ele procede da palavra e a ela reconduz. A linguagem da oração, porquanto se sirva de palavras, encontra-se sempre diante da dificuldade para exprimir o indizível.

Na oração, falar significa lutar contra a insuficiência e inadequação das linguagens existentes. Por esse motivo, muitas vezes, os grandes orantes preferem o silêncio à palavra. A linguagem deles busca indicações, alusões, um tatear na obscuridade para pronunciar o Inefável. É uma linguagem incerta que só pode balbuciar diante do que é transcendente.

Em uma verdadeira comunicação, silêncio e palavra devem por força sucederem um ao outro em uma verdadeira ética de comunicação, porque toda pergunta pede uma resposta, toda afirmação exige um deter-se para refletir sobre o seu peso, todo diálogo provoca uma deliberação recíproca (cf. LE BRETON,1997, p. 17).

Não existe palavra sem silêncio: As palavras dão significado ao mundo, nos permitem compreendê-lo, tocá-lo, são o instrumento para fazê-lo comunicável, mesmo se muitas vezes de modo imperfeito e limitado, porque o mundo está sempre em movimento e em uma complexidade crescente. O discurso não poderia existir a não ser na relação recíproca entre silêncio e palavra. O silêncio não é uma escória, um resto, um vazio a ser preenchido. Linguagem e silêncio se misturam na expressão da palavra: assim que podemos dizer que todo enunciado nasce do silêncio interior do indivíduo sempre em diálogo consigo mesmo. Toda palavra é precedida por uma voz silenciosa, por um sonho despertado repleto de imagens e pensamentos difusos sempre atuantes no nosso coração. Esse mundo caótico e silencioso jamais se deixa calar, carregado como é de desejos, emoções, e prepara uma formulação que surpreende com frequência quem a emite (cf. LE BRETON,1997, p. 19).

O que nos faz acreditar em um pensamento que existiria por si antes da expressão são os pensamentos já constituídos e já expressos que nós podemos reevocar a nós silenciosamente e para os quais nós nos damos a ilusão de uma vida interior. Mas na realidade esse silêncio presumido é vibrante de palavras, essa vida interior é uma linguagem interior (MERLEAU-PONTy, 1945, p. 213).

As palavras na sua trama de silêncio: Se a presença do ser humano é antes de mais nada aquela da sua palavra, ela é também inelutavelmente aquela do seu silêncio. A relação com o mundo não se trama somente na continuidade da linguagem, mas também nos momentos de suspensão, de contemplação, de retiro, isto é, em todos os momentos em que a pessoa se cala. Palavra e silêncio se misturam na conversação para conduzir a uma troca. Quando o homem se cala, isso não significa que se comunique menos. O silêncio não é nunca um vazio, mas o sopro entre as palavras,a réplica curta que autoriza a circulação de sentido, ou a troca de olhares, das emoções (cf. LE BRETON,1997, p. 25-27).

O silêncio põe a palavra em movimento, dando-lhe um ângulo particular. O ritmo do silêncio e da palavra cria a possibilidade da troca: as vozes, os olhares, os gestos, a distância que se mantém entre um e outro, tudo isso doa uma contribuição à circulação de sentido. Nenhum homem é reduzível somente ao seu discurso: o conteúdo da palavra é somente uma dimensão do processo da comunicação: as pausas, os modos de falar ou de calar, os silêncios, são igualmente decisivos. A voz se interrompe às vezes, retoma o seu sopro, deixa ao outro o tempo de uma réplica. Os breves silêncios que ornam a discussão permitem um átimo de reflexão antes de prosseguir com o raciocínio, verificando o acordo do outro com respeito a uma proposta susceptível de provocar uma divergência de opinião. Sem o reverso do silêncio, a comunicação seria impensável.

Por isso, uma oração silenciosa não é uma oração fracassada, onde não se deu o diálogo com o Senhor. Mas uma oração fecunda, profunda, cheia de afeto, expressão de um amor onde as palavras sobram.»

Alfredo Sampaio Costa. A oração como um falar e calar. Algumas questões sobre a linguagem da mística.

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