Jejum e fome

O Reino de Deus é espiritual, mas seus sinais são tangíveis, têm forma, peso, sabor, cheiro e cor. Mas apesar de tudo, Deus poderia ter se limitado a, por exemplo, ter criado uma placa milagrosa escrita “convertei-vos porque o Reino de Deus está próximo”. Seria um sinal corpóreo de uma coisa espiritual. Só que serviria apenas de sinal (pois o exemplo não é um poço dos desejos versão placa milagrosa).

Os sinais do Reino de Deus tem uma função dupla: espiritual e material. Acreditar em Deus, como disse, se não me engano, São Tiago, até o diabo acredita, e não vai para o céu por isto. E se é verdade que quem faz o bem, mesmo sem acreditar em Deus, está mesmo assim cooperando com Deus, também é verdade que fazer o bem por causa de Deus expande-o, não porque o bem se torna mais eficiente, mas porque vai mais longe.

Os apóstolos queriam fazer o bem. Se colocaram no lugar da multidão faminta e foram sugerir a Cristo que despachasse o povo para comprar comida. Mas Cristo fez mais do que isto: alimentou-os ali mesmo. O milagre não é nem a comida, nem a “mágica” de multiplicar os pães. O milagre é libertar o povo com as ferramentas do Reino que, mesmo sem ter se realizado ainda, já está entre nós.

Cristo veio para anunciar o Reino de Deus, e não para comer e beber, tanto é que os seus jejuns merecem destaque nas narrativas evangélicas. Mas ao longo dos evangelhos, Jesus Cristo come, bebe, e alimenta e cura as pessoas, o que nos mostra que fome e jejum são duas coisas muito diferentes, e enquanto o jejum deve ser feito (o Tempo do Natal nem acabou ainda, mas a Quaresma já está à espreita logo ali, em fevereiro), a fome compulsória e opressora precisa ser combatida – assim como todas as outras injustiças análogas a ela.

A ordem dos tratores

No Evangelho, Cristo, “percorrendo toda a Galiléia, ele ensinava em suas sinagogas, proclamava a Boa Nova do Reino e curava toda a doença e enfermidade entre o povo” (Mt 4,23).

A proclamação da Boa Nova precedia as curas, mas Cristo não deixava de incluí-las na sua “agenda”. Talvez tenha sido uma novidade na época, anunciar uma coisa e depois confirmá-la com sinais concretos, mas nos tempos de hoje, se tornou um esquema muito manjado.

Não é nem pelo fato de que qualquer um pode forjar sinais que legitimem aquilo que fala (qualquer um mesmo: há um vídeo no Youtube comprovando que o Papa Francisco quer se colocar acima de Deus por uma gravação mostrar um crucifixo em primeiro plano e o Papa mais para o fundo e, como o Papa estava em um palco, quem gravou enquadrou o crucifixo na parte de baixo, e o papa na parte de cima, e se isso vale como prova de qualquer coisa, qualquer coisa serve como prova de qualquer coisa também). Mas também há o seguinte: Cristo, sabidamente, foi a causa das curas e todos os outros sinais que apresentou, e estes eram sinais da Boa Nova que ele pregava; mas hoje em dia quem garante que os sinais que as pessoas apresentam para legitimar o que falam não foram eventos completamente desconexos entre si? Se eu perco o ônibus todos os dias e num dia qualquer, rezando uma Ave-Maria pelo caminho, pego ele extraordinariamente no horário, isto pode ser ou não um pequeno milagre de Nossa Senhora, mas não faz de mim uma Jacinta nem me dá legitimidade para reunir uma comunidade dos Rezadores de Ave-Marias Para Não Perder o Ônibus.

O exemplo é ridículo, mas por muito menos alguns agraciados por coincidências aleatórias reunem em torno de si seguidores, seja na esfera religiosa, seja em outras (financeira, sexual, etc.).

Cristo falou primeiro e fez depois. E hoje em dia não se trata, necessariamente, de fazer o contrário – fazer primeiro e falar depois – até porque este também é um esquema bem manjado.

Cabe a nós, a partir da ordem na qual Cristo fez as coisas, fazer a segunda por causa da primeira. “Transformar o mundo” pode significar muita coisa boa, e também muita coisa ruim. Agora, transformá-lo por causa da Boa Nova não tem erro, desde que não nos limitemos nem à proclamação, nem à transformação; a não ser, é claro, que o que esteja em jogo não seja nem a Boa Nova, nem a transformação do mundo a partir dela.

Se deixar com eles, eles levam até os bodes

Na Epifania do Senhor (Mt 2,1-12) podemos observar, nos magos vindos do Oriente (que a Bíblia não diz que eram reis, mas também não diz que não eram, portanto) podemos observar, nos Três Reis Magos, como às vezes até mesmo os caminhos mais obscuros levam a Cristo.

Eles estavam procurando Cristo (embora às vezes ele seja encontrado sem querer, até porque sempre ele já estava nos procurando antes), mas no seu lugar encontraram Herodes. Na sua busca, colocaram o malvado no encalço de Cristo.

Aproveitando-se da inocência dos Três Reis Magos (que não sabiam dos planos homicidas de Herodes), enviou-os à frente, como batedores involuntários, para depois usar as informações deles contra Cristo. Mas, depois de encontrar o Senhor recém-nascido, foram avisados em sonho para deixar Herodes de lado.

É muito conhecida a ideia de que Deus se serve até do mal para fazer o bem – o que de maneira nenhuma justifica qualquer mal – mas a ideia principal é que, quaisquer que sejam os caminhos que nos levam a Cristo, o caminho de volta já não será igual ao que nos levou a ele.

Isto é uma metáfora para a conversão, mas também a informação, muito literal, que independente de como julguemos ser o caminho que percorremos, além de olhar para o céu (o que é indispensável), é necessário olhar também para a terra onde nossos pés estão pisando, para não voltar pelo caminho que leva à morte.

Quem é o Cristo?

São João Batista, o profeta, a voz que clama do deserto, o precursor, o homem sacrificado por dizer a verdade, o batista, se define, antes de mais nada, pelo que ele não é: “eu não sou o Cristo” (Jo 1,20). Mais do que um modelo, um exemplo ou uma inspiração, esta definição primária que ele faz de si, pela negativa, é uma essência – e ela sim assume esta função de modelo, exemplo, etc.

Aqueles que seguem Cristo o representam diante dos outros, e esta representação deveria servir apenas para conduzir quem está diante do representante ao representado, ou seja, representar Cristo significa exclusivamente conduzir o outro a Cristo. Por um lado, só é possível fazer isto, conduzir a Cristo, a partir da Igreja; por outro lado, os apóstolos, os pastores, o rebanho, o fiel, não são apóstolos, pastores, fiéis, etc., da Igreja, mas de Cristo.

Se é necessário levar Cristo ao outro, e igualmente necessário fazer isto a partir da Igreja, não é a Igreja que deve ser levada ao outro. Talvez, como estratégia, funcione em alguns casos, mas esta não é a única, nem a melhor – nem deveria ser a principal, até porque o anúncio de Cristo não precisa de estratégias (embora elas sejam muito convenientes, pois mesmo com estratégias é fácil se perder nisto tudo, sem estratégias, então, fica mais fácil ainda). A questão é que a Igreja é uma necessidade indispensável que não pode ser relativizada nem muito menos posta de lado, mas – assim como São João Batista – não é o Cristo.

A Igreja sabe muito bem disto, mas cada pessoa que a integra pode facilmente se confundir. Pois, assim como São João Batista e a Igreja, aquele que representa Cristo não é o Cristo, e assim como o Batista, esta deveria ser a primeira apresentação de si.

Somos Cristo quando buscamos primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, somos Cristo quando praticamos obras de piedade, somos Cristo quando não respondemos às injustiças com outras injustiças nem com violência, somos Cristo quando não perdemos a cabeça quando a única coisa que resta é a fé… podemos ser Cristo de muitas maneiras e em muitos sentidos, mas não somos o Cristo.

Assim como é necessário sabermos que não somos o Cristo, é necessário sabermos que quem se apresenta como tal também não é (exceto, é claro, o próprio Cristo). São estes, que mesmo se declaram com muita humildade a superioridade de Deus sobre si próprios, se colocam como a melhor via de acesso a Cristo, ou como dignos de confiança irrestrita, ou então como quem deve ser obedecido em nome de Deus (pois a pessoa que pede ou exige obediência distorce profundamente o sentido de obediência que o Evangelho apresenta).

São João Batista ainda repete, até hoje, que não é o Cristo, para que nos lembremos que identificar-se com Cristo é diametralmente oposto a identificar-se, seja pelo que se fala, seja pelo que se faz, como Cristo.

Nossa Senhora das Pesquisas

Um anjo anuncia a Maria que ela será a mãe de Cristo, depois ela visita Isabel e seu espírito exulta em Deus, o Salvador; então ela e José vão a Belém para o recenseamento, não encontram onde se hospedar e ela acaba parindo dentro de uma caverna onde os animais comem; logo em seguida aparecem pastores que, durante o trabalho, receberam uma mensagem de um anjo, informando que Cristo tinha nascido.

Enquanto isto, Maria “retinha todos esses acontecimentos procurando-lhes o sentido” (Lc 2,19), como nós que procuramos o sentido das coisas, tanto as mesmas sobre as quais Maria refletia, quanto outras diferentes.

Entre tantas memórias que a Igreja celebra ao longo do ano, poderiam incluir uma memória das Bodas de Caná (mas João Paulo II preferiu fazer disto um mistério Luminoso do Rosário) para celebrar o dia em que Maria contou aos trabalhadores o resultado das suas reflexões: “fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2,5).

Maria, Mãe de Deus

Às vezes as pessoas tratam as diversas religiões como se fossem variações diferentes da mesma coisa, o que não é verdade. Apesar disto, existem semelhanças óbvias, e diferenças marcantes, algumas vezes muito práticas, como uma igreja pela qual eu passei no intervalo de algum curso de não sei o que, e me pareceu ter cara de igreja católica, ia ter missa dali alguns minutos, mas como saber se era ou não sem perguntar? Aí vi uma foto do papa e ficou fácil porque, embora a religião católica não seja centralizada do papa, acho que só ela se dá ao trabalho de pendurar alguma foto dele nas paredes.

Outro “diferencial” é Maria, que amanhã é o tema da solenidade do primeiro dia do ano e também fica muito em evidência nesta época do Natal. A disciplina da teologia que estuda Maria se chama “Mariologia”, um nome que deveria ser repensado porque também pode se aplicar ao estudo do doce de mariola, e que eu confesso que passei correndo por cima, por ter sido justamente no final do ano e absolutamente tudo é correria em final de ano, com ou sem pandemia.

No fim a vivência prática da relação com Maria se sobrepõe muito a qualquer estudo, porque em relação a ela se tem muito mais a viver do que a dizer, é a impressão que eu tenho.

E justamente por ser um assunto mais amplo nos seus aspectos práticos do que teóricos, ele implica muito na dimensão social da devoção a Nossa Senhora. Eu acho que faz muita falta a (pelo menos aparente) dissociação entre a devoção a Maria e os aspectos sociais disto.

Os católicos, quando querem, sabem se mobilizar para além da Internet, o que é provado, por um exemplo agradável e positivo, nas romarias para Aparecida, e por um exemplo desagradável e negativo, as reações quase histéricas contra o aborto.

Até quem é favor da legalização do aborto é, na sua maioria, contra abortar, pois o foco deles não é o aborto em si mas a precariedade das estruturas sociais que transformam a gravidez, que de outra forma é uma graça de Deus, em uma maldição terrível para quem sofre mais com a exploração capitalista. Claro que há histeria também do outro lado, apesar de a histeria católica quase sempre gritar mais alto, mas poderia ser de outra forma, e justamente dentro desta espiritualidade mariana (observação irrelevante: “Marianalogia” soaria melhor que “Mariologia”).

O “sim” de Maria não foi um sim parcial, como parece ser a defesa da vida dos grupos pró-vida que se mobilizam só quando uma criança estuprada vai abortar ou quando o aborto é aprovado na Argentina, por exemplo. O “sim” foi um sim integral, em defesa da vida em toda a sua extensão, incluindo, portanto, a vida das crianças que vivem em condições precárias, dos adolescentes que precisam trabalhar e por isto não podem estudar, dos jovens que depois de não terem podido estudar, não conseguem trabalhar, e por aí vai: os adultos em situações precárias, os idosos abandonados, ou que então ainda são obrigados a trabalhar no limite de suas forças… Os direitos humanos, tão atacados e menosprezados nestes tempos bolsonaristas, são a “versão civil” da exaltação dos humildes e dos famintos que Deus saciou no Magnificat cantado por Maria na visita a Isabel, relembrada no mínino em todas as segundas e nos sábados, porque é o segundo mistério gozoso do terço. E o próprio Magnificat é repetido diariamente entre o fim da tarde e o início da noite por quem reza a Liturgia das Horas junto com toda a Igreja.

O combate ao aborto deveria ser um tópico (fundamental, mas localizado) dentro do movimento de defesa da vida, e não sua maior expressão. Mas da maneira como é, parece ser apenas formalmente uma luta católica, ou mesmo religiosa, servindo na prática a outros interesses bem distantes de qualquer coisa que possa ser chamada de “religião”.

Enquanto a defesa da vida não for integral como o sim de Maria, e também como ensina a doutrina da Igreja, não só o aborto vai passar mais cedo ou mais tarde, mas toda a boiada que já passou e os defensores da vida não notaram ou então não dão bola, vai continuar passando por cima de todos nós, sejam conservdores, progressistas, crentes, ateus ou quem quer que seja – especialmente os mais vulneráveis.

As vidraças do Carrefour

A propriedade privada deve ser respeitada e protegida na medida razoável do seu uso em prol do bem comum. Quando ela se torna um instrumento de opressão, porém, por isto mesmo ela perde seus “direitos”.

Uma pessoa vale mais do que uma propriedade, mas esta é uma relação em que os termos não poderiam se antagonizar, pois a propriedade privada é posse de alguém cujo valor é igual ao de quem é oprimido por esta propriedade. Em si mesma a propriedade não oprime ninguém, mas o uso opressor, por parte do proprietário, torna-a opressora.

As vidraças do Carrefour nunca fizeram nada para ninguém, mas seu valor é infinitamente menor do que o homem que foi morto pelos seguranças do Carrefour. Se é verdade que erros acontecem e é necessário relevar que ninguém é perfeito, também é verdade que o mesmo erro repetido deixa de ser uma falha pontual e se torna um indício de que é um procedimento habitual, reconhecido ou não. Mesmo que o Carrefour não tenha a intenção de violentar os negros, as repetidas violações demonstram que mesmo assim elas acontecem – se não era a intenção violentar os negros, o Carrefour também não se importa que elas aconteçam em suas lojas.

Se a intenção do Carrefour não é violentar ninguém nem impedir a violência, ele é sim responsável pelas repetidas violências que ocorrem nas suas dependências, tanto as que sabemos quanto as que ainda não descobrimos. Como o poder público se omite, a exemplo do presidente que ignora a morte de um homem negro e nega o racismo para preservá-lo, cabe à sociedade reagir. E se não é possível elogiar a violência da reação, é menos possível ainda se opor a ela quando recai somente sobre a propriedade que o Carrefour usa para violentar os negros.

A violência dos protestos do dia 20 não foi contra outras pessoas, mas contra as coisas (a propriedade) do Carrefour. Se fosse pelo prazer de quebrar as coisas gratuitamente seriam vandalismos, como a mídia os chamou. Mas foram uma reação cuja nocividade quase desaparece diante do mal que, para não atrapalhar os negócios, o Carrefour promove com a sua omissão.

Lc 16,9

Onde Cristo sugere que se faça amigos com o dinheiro desonesto, uma interpretação forçada e descontextualizada poderia concluir que roubar é bom – ou que, pelo menos, é uma sugestão de Cristo.

Forçando a interpretação para outro lado, pode ser que Cristo esteja apenas dizendo, implicitamente, que não existe dinheiro honesto: um centavo ou um milhão contém em si a mesma quantia de desonestidade, quer venha de um trabalho honesto, quer seja o lucro de algum pecado. Neste caso o dinhheiro é sempre, por definição, sujo. Forçando um pouco mais a barra desta intepretação, mesmo o sexo pode ou não ser santo, mas o dinheiro, nunca.

Uma solução esperta poderia ser dar todo o dinheiro à Igreja, livrando-se assim desta impureza vil e deixando-a nas mãos de quem está suficientemente perto de Deus para não se contaminar; quem sugerisse isto, se é que já não foi sugerido por aí, além de roubar aplicando um golpe religioso-financeiro, teria que apagar o versículo 9 do capítulo 16 de Lucas, pois Cristo sugere exatamente o contrário, a depeito da desonestidade intrínseca do dinheiro: usá-lo em benefício dos outros.

Eu não acho que Cristo esteja condenando quem usa o dinheiro para si, pois até dar um dinheiro custa outro dinheiro, e além disto, ninguém é de ferro. O problema é não compartilhar e, pior ainda, o apego emocional ao dinheiro que a incapacidade de compartilhar pressupõe.

Quando lemos “não podeis servir a Deus e ao dinheiro”, o termo grego que Lucas usa é “mamonnas” (ou “mammonnas”, ou “mammonas”, eu não tenho certeza de quantos emes e enes tem no meio da palavra), cujo radical é “mamon”, um termo hebraico que tem a ver com dinheiro, mas também se transformou numa personificação do dinheiro em uma divindade – e quem não paga um dízimo a algum banco hoje em dia?

Se você procurar “mamon” no google e for parar no verbete correspondente da Wikipedia, vai ver lá que o papa Bento XVI disse em algum discurso que (estou citando de cabeça porque se eu abrir mais uma janela no computador para conferir, trava tudo aqui – fica aí a sugestão para me doarem um computador com SSD, mas nada menor que 300 GB, por favor, porque menos que isso eu prefiro tentar fazer uma ligação de pendrives em série) “mamon”, no fim das contas, significa não admitir perder nos negócios financeiros – e o melhor exemplo disto seria, acho eu, as concessões à iniciativa privada, nas quais o governo continua gastando com o que foi concedido, pagando à empresa que administra a concessão, e a empresa nunca perde dinheiro (basta ver a linha 4-amarela do metrô de SP ou o apagão no Amapá, que quem está resolvendo, ainda que com muita má vontade, é o governo e não a concessionária que não tem vontade nenhuma de resolver, seja ela boa ou má).

A pobreza alheia é um mal que mancha não o pobre, mas os outros que tem mais que ele, pois se é verdade que é um problema sistêmico e nenhuma ação individual vai resolvê-lo, não é porque não dá para resolver que não seja responsabilidade de todas as pessoas: quanto mais rico, mais responsável; mas até quem consegue, no máximo, se virar com um ou dois salários mínimos também tem responsabilidade nisto. Enquanto apoiarmos que alguém possa ter quantias imensuráveis de dinheiro enquanto outros ficam com uma carência inversamente proporcional, todos nós vamos estar sustentando toda esta pobreza, coletivamente, e se não formos capazes de ajudar quem precisa, ainda estaremos apoiando isto pessoalmente.

Gentileza

Talvez seja mais fácil compreender a parábola em Lc 16,1-8 depois de ler o versículo seguinte, 9: “fazei-vos amigos com a riqueza injusta, para que, no dia em que ela vos faltar, eles vos recebam nos tabernáculos eternos.”

O administrador desonesto achou melhor garantir seu futuro fraudando as dívidas que os outros tinham com o seu patrão para que eles pagassem menos, esperando que, com este favor (ainda que tenha sido um favor desonesto), eles o ajudassem depois do fim do “aviso prévio” que recebera do patrão.

Se Cristo estava relativizando a desonestidade, ou então achou tão óbvio que o foco da parábola era a troca de favores e não a relativização da desonestidade, eu não sei, assim como eu não sei se o foco da parábola é mesmo a troca de favores, porque é uma parábola bem confusa e os comentários sobre ela por aí não (me) ajudam muito.

Uma interpretação rápida e simplista poderia ser alguma coisa como “sejam legais com os outros nesta vida para que eles sejam legais com vocês na vida eterna”; e assim como há a observação de que os “filhos da luz” tem uma tendência à serem grosseiros com os outros, também está implícita a recomendação para que não o sejam.

Os “filhos do mundo” não tem, afinal de contas, a perspectiva do respaldo de Deus, o que os obriga a serem muito mais prudentes do que os “filhos da luz”, mais ou menos como Hermione observou sobre os bruxo que, confiando nos seus poderes, teriam dificuldade em usar a lógica para encontrar a garrafa correta no final de Harry Potter e a Pedra Filosofal: é mais ou menos como se os “filhos da luz” tivessem uma tendência a tocar um “foda-se” para o mundo que vai passar tendo em vista o que há de vir – e pelo que se pode deduzir do versículo seguinte, o 10, o modo como lidamos com as coisas temporais também interfere nas coisas eternas.

Daria para dizer que entre ver a luz e ser grosseiro, e não ver a luz e ser amável, seria melhor então ser um filho da luz que é cavalo com os outros do que um filho do mundo amável? Eu não sei, mas acho que não. Entre as primeiras coisas que a luz de Deus ilumina não está a amabilidade para com os outros, mas se não é possível que Deus ilumine isto também, como esperar que, parafraseando o versículo 10, quem não se deixa iluminar nas coisas pequenas se deixe iluminar nas coisas grandes? Afinal, ainda no versículo 10, “quem é injusto nas coisas pequenas o será também nas grandes”, o que talvez explique porque religiosos tão iluminados sejam inesperadamente vis em escândalos financeiros ou sexuais.

É possível que eu esteja distorcendo um pouco os versículos de 8 a 10 em favor do que eu penso, mas acho que só estou defendendo um detalhe relevante desta passagem: ainda que não se justifique “desviar-se” do que Deus quer para tratar bem os outros, o que Deus quer também não justifica tratar mal as pessoas.

Escolhas

Lc 14,26
À primeira vista, Jesus Cristo pode parecer um líder ciumento cuja insegurança o leva a exigir que lhe amem acima de tudo e de todos. Líderes interesseiros também fazem este tipo de coisa (quem nunca ouviu de algum chefe que era necessário o empregado decidir se sua prioridade era alguma pessoa próxima ou o emprego? Mas até quem responda “eu” pode ver o quanto as pessoas que cuidam de crianças ou de algum parente adoentado, na sua maioria mulheres, são preteridas por estas condições); e quantos líderes religiosos não cobram dos seus liderados que lhe deem prioridade frente a quaisquer outros que não sejam eles?
É claro que deixar quem amamos de lado em prol de um emprego não garante permanecer empregado, e que líderes religiosos exigindo atenção quase sempre o fazem apenas pelo seu próprio benefício, e não em benefício de quem estão cobrando a atenção. Mas porque Cristo fala como uma estrelinha em decadência quando se espera mais dele do que dos outros?
Embora o verdadeiro Cristo seja apenas um, independente de como o vejamos, até quem tem a perspectiva correta dele tem apenas perspectiva e não o que se poderia chamar de uma visão clara e objetiva dele. O mesmo Cristo que aparece como rei também aparece como mendigo na escultura que o retrata deitado em um banco de praça enrolado em cobertas que ainda assim deixam os pés de fora, e nenhuma das duas representações é falsa, mas também não é absoluta. Até podemos pensar que, assim como quando Pedro me fala de Paulo eu sei mais sobre Pedro que sobre Paulo, quando uma ou outra representação de Cristo é renegada por alguém é possível pressupor o caráter desta pessoa baseando-se em suas preferências – mas ao fazermos esta avaliação, sempre seremos Pedro falando sobre Paulo.
É que no caso de Cristo entra em cena o que foi objeto de disputas teológicas no passado e, apesar de já bem definido, muitas vezes é deixado de lado ao ler certas passagens da Bíblia: o caráter divino de Cristo. Pois se, por um lado, Cristo não é Deus disfarçado de gente como a gente e sim genuinamente gente como a gente, por outro lado, ele nasceu humano só porque antes disto já existia sendo Deus.
Gente como a gente às vezes precisa de atenção e pede, mas às vezes pede fingindo que não é um pedido e sim uma oferta imperdível (“me dê atenção e seja feliz por isto”), quando não a exige como se fosse um dever alheio. É aí que Cristo parece ser mais um necessitado pedindo atenção, entre outras pessoas carentes, banners em sites, carros de som na rua e avisos de todos os tipos.
Mas sendo plenamente humano, Cristo também é, antes de ter se tornado humano, Deus. E se só é possível amar por graça de Deus, muitas vezes o amor que se percebe não transparece a graça, que não é óbvia, pois, se fosse, não teria sido necessária a revelação de Cristo e o Evangelho não serviria para nada.
Amar implica em escolher prioridades, o que não significa escolher o que vai ser desprezado, mas sim que mesmo quando o sentimento contempla todo mundo, na prática não dá para dar atenção a tudo o tempo inteiro.
Só que Deus é mais amplo do que o tempo, a atenção e o sentimento: por isto que ter mais amor a Cristo do que a qualquer outra pessoa é a melhor maneira de amá-las, o que se estende à vida – não porque seja necessário escolher entre Cristo ou a vida, mas porque a vida (e o amor, a justiça, etc.) vem de Cristo, e preferir Cristo, no fim das contas, é como um combo completo de amor-vida-justiça-e-tudo-o-mais que não torna as coisas necessariamente mais fáceis, mas abrange tudo o que deixamos de lado quando dependemos de ter que escolher apenas com base no ou-isto-ou-aquilo.

Lc 12,14

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Ser uma pessoa vitoriosa e ser uma pessoa cristã não são duas coisas incompatíveis, mas ser uma pessoa cristã para ser uma pessoa vitoriosa é uma instrumentalização da religião, uma atitude errada, e é inútil, porque não funciona – portanto, é uma coisa errada e inútil.

A Providência divina garante que Deus proverá o necessário para vivermos e sobrevivermos; e Deus promove a justiça entre as pessoas com certeza; mas esta justiça costuma ser mais coletiva do que individual, e quem “ganha uma causa” depois de pedir a Deus por isto é bom que se lembre que é mais provável que tenha ganho esta causa porque isto serve aos planos de Deus e não porque Deus deu razão a quem “ganhou a causa” – pois pode muito bem ser que Deus dê razão a alguém que acha que deveria ganhar, mas perde porque isto não é parte do plano de Deus. O que eu quero dizer é que talvez isto seja o significado de “Quem me estabeleceu para ser vosso juiz…?” em Lc 12,14.

O homem que pede a Jesus o julgamento da divisão da herança talvez merecesse, ou talvez não, e Cristo não se ocupa com isto, mas com o indício de ganância que o pedido do homem revelou. É necessário que nós desenvolvamos o discernimento para agir com justiça, e Cristo não é nenhum Dom Pedro I para exercer o papel de Poder Moderador. A Providência divina é a garantia de Deus, e a justiça divina consiste em orientar tudo para a salvação das pessoas: entre nós, cabe aprender a agir com justiça, e quanto mais este aprendizado for fundamentado em Deus, melhor.

Assim como Cristo não é, conforme ele próprio, juiz, ele também não é, conforme as minhas divagações, um certificado de justiça e correção. Não que Cristo não seja, mais do que justo, a própria Justiça, mas evocar Cristo para certificar nossa própria justiça e correção é corromper a imagem de Cristo, inclusive quando temos razão – a menos que se trate de uma revelação particular de Deus, o que fazemos é com base em nossos valores, critérios, e coisas do tipo, que podem se basear na Bíblia ou textos religiosos ou não, e mesmo quando se baseiam nisto, ninguém garante, ou pelo menos Cristo não o faz, que determinada decisão está em conformidade com Deus.

Tem coisas que são óbvias: não deixar que alguém morra certamente está em conformidade com Deus, já matar alguém não está. Então, exceto pelas coisas óbvias, temos três alternativas: julgar as coisas sem se importar com Deus nestes julgamentos, julgar as coisas tentando adequar este julgamento dentro dos critérios de Deus, ou fingir que o julgamento foi com base em critérios divinos.

A terceira opção é a dos nobres cidadãos de bem que consentem na degradação humana e ambiental para livrarem a pátria do comunismo e fazer dela um Estado mais cristão que o Vaticano – uma opinião pessoal que não sabemos se Cristo aprova ou não.

Lc 12, 1-7

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Os fariseus da época de Cristo acreditavam em viver a fé nos seus aspectos exteriores, o que, junto com o antagonismo ao domínio romano, lhes dava prestígio entre o povo, embora não fizessem nada disto por convicção e sim pelo reconhecimento que agir assim – representar exteriormente a fé e antagonizar o domínio romano – lhes dava.

A hipocrisia de que Jesus acusa os fariseus é esta: o objetivo deles era apenas o reconhecimento e para isto não importava serem o que representavam. Como a fé representada era muito difícil de ser vivida além da representação, valia a pena “pagar de santo” para aproveitar o afago no ego e todos os mimos que o reconhecimento traz.

Mas a hipocrisia não era novidade no mundo naquela época, e muito menos é agora. E se fingir-se de santo também não é, talvez haja alguma inovação vinda da política bolsonarista neste sentido. Embora muita gente seja bolsonarista por julgar-se um cidadão de bem (e mesmo que o conceito de “bem” neste caso seja discutível, o fato é que muita gente entra nesta por indentificar-se sinceramente com este “bem” representado pelo bolsonarismo), mas isto também não é novidade, pois não é a primeira vez que alguém hipócrita engana uma quantidade imensa de pessoas.

A novidade do bolsonarismo é fazer da fé uma bandeira política, diferente (mas não muito) dos fariseus, que se escondiam na hipocrisia apenas pelo prestígio, pois não iriam livrar o povo da dominação romana que antagonizavam – quem tentou isto foram os zelotas, sem sucesso –, nem eram os santos que pareciam. Mesmo o tempo da cristandade, que identificava religião e estado na Idade Média, não é comparável, pois a identificação não era artificial. A hipocrisia bolsonarista consiste em fazer da fé farisaica uma bandeira política que não tem o menor interesse na fé, a não ser como verniz para conquistar o poder político e acobertar a corrupção dos poderosos.

É uma imitação grotesca do que as minorias – as mulheres, os negros, os homossexuais, etc. – vinham fazendo ao longo dos últimos anos, forçando a criação de políticas justas que garantissem os seus direitos: apresentando-se com sua fé farisaica, o bolsonarismo fez da fé uma bandeira política não como afirmação da própria fé, mas como alavanca para combater quem não a tem (“não a tem” segundo a ótica bolsonarista).

Transformando a fé em uma bandeira, o combate político se torna um combate religioso, e quem não apoiaria um governante “eleito em nome de Deus”? O problema é que a fé e o “em nome de Deus” são usados apenas como chamarizes para ganhar o poder dos votos, e também como escudo para perpetuar a corrupção, afinal, o que significam alguns desvios e algumas corrupções, que nem são novidade no país, frente a cristianização da nação?

É claro que objetivo do cristianismo passa bem longe de cristianizar nações, pois o objetivo do cristianismo é simplesmente anunciar Cristo que morreu e ressuscitou para nos salvar, e eleito de Deus por eleito de Deus, a maioria dos reis de Israel também o eram, e foram um fracasso tanto do ponto de vista político, como do ponto de vista da fé – o que significa que nem os que Deus elegeu ele mesmo eram flor que se cheirasse só por terem governado em nome de Deus.

Mas “cristianismo”, “fé”, “Deus” e afins são palavras corrompidas no bolsonarismo, palavras vazias que servem apenas ao projeto de poder voltado à ambição dos que foram eleitos dentro deste projeto.

A única luz no fim do túnel são as palavras de Cristo assegurando que nada dito às escondidas deixará de ser revelado, mas tomara que até mesmo antes disto seja possível aprender a votar de acordo com a fé, e não votar na na bandeira de uma fé desfigurada tecida com os fios da hipocrisia.