A Bíblia, testemunha da vida


A Bíblia sem mitos, pgs. 13-14


Cena de um dos filmes do Kiriku

«Nos meios informados, a maneira como se enfoca e se entende a Bíblia hoje é diferente da de “antes”. Isto é um fato. Herdeiros de uma tradição que acentuava sua qualidade de Palavra de Deus e que a considerava praticamente como ditada por Deus, alguns se sentem consternados, quando hoje lhes é dito que a Bíblia é literatura – literatura sagrada sim, mas literatura – e que, além disso, não há conflito com as ciências. Contribuíram não pouco com o “descobrimento” do caráter literário da Bíblia as descobertas de textos afins que, desde o século passado, estão ocorrendo no Oriente Médio, textos mais antigos do que os da Bíblia (mitos da criação, lendas, salmos, provérbios), bem como os estudos realizados nos campos da sociologia, da antropologia, da linguística e da literatura, entre outros. Consequentemente, têm sido apreciados aspectos e dimensões antes não considerados ou simplesmente ignorados, quando se tratava da Bíblia. Há algum tempo, valoriza-se cada vez mais a comunicação humana que se manifesta na Bíblia: o papel das tradições orais, do povo ou da comunidade onde tomaram corpo os diferentes escritos, o papel do redator, a influência da circunstância e da cultura etc.

A Bíblia é apreciada hoje, mais do que antes, por aquilo que é materialmente: um conjunto de expressões de vida, de testemunhos de vivências históricas e de fé. Sim, seu caráter vivencial e vivificante é talvez o aspecto mais importante: são escritos nascidos da vida e para a vida. Vida em chave religiosa, mas vida vivida. Por isso mesmo, hoje se valoriza muito mais sua dimensão comunicativa, sem por isso valorizar menos a presença de Deus ao longo do processo que conduziu à composição dos diferentes escritos que constituem a Bíblia. Valorizar a dimensão humana da Bíblia não é tirar-lhe a sacralidade, mas, sim, situá-la em nosso mundo, onde se originou: Deus manifestou-se através de acontecimentos históricos até se encarnar ele mesmo. na história. Enquanto se venerava a Bíblia como revelação direta de Deus, se carecia da objetividade necessária para poder apreciar sua profundidade e sua proximidade do homem. E enquanto se olhar a Bíblia como um conjunto de verdades doutrinais, não se valorizará seu caráter vivificante existencial.

Para compreender bem e corretamente um texto composto em tempos passados, deve-se começar por compreender seu berço, seu momento histórico e cultural. Muitos creem que a única coisa que interessa é a relação texto-leitor (o que ele me diz?), e que indagar pela origem histórica de tal ou tal escrito pela comunidade e pelo momento histórico do autor, pelas condições culturais e circunstanciais, são perguntas irrelevantes. Grave erro! Precisamente por ignorá-las, chegou-se a interpretações absurdas que estão distantes da intenção do autor inspirado, por exemplo, com relação a determinadas ordens éticas ou ao tratar o Apocalipse. Depois de tudo, o escritor (por não falar da tradição oral precedente) foi inspirado por Deus dentro do contexto de sua história e de sua cultura, e não à margem dela, e o que escreveu respondia às necessidades desse momento, por isso escreveu para um auditório concreto, imediato, como é evidente nos profetas e nas cartas de São Paulo. Para entender retamente o que o texto diz hoje, deve-se começar por compreender o que dizia na sua origem. É uma questão de fidelidade à mensagem original de seu autor e de continuidade com sua intencionalidade original. É palavra de Deus, sim, mas em palavras de homens histórica e culturalmente situados e, portanto, com muitas limitações e condicionamentos.»