«Nós identificamos, na pessoa humana, uma primeira inclinação, que ela compartilha com todos os seres: a inclinação para conservar e desenvolver sua existência. Há, habitualmente, entre os seres vivos, uma reação espontânea em face da ameaça iminente de morte: fuga, defesa da integridade da própria existência, luta para sobreviver. A vida física aparece, naturalmente, como um bem fundamental, essencial, primordial: daí brota o preceito de proteger a própria vida. Sob esse enunciado de conservação da vida se perfilam as inclinações para tudo o que contribui, de uma forma própria ao homem, à manutenção e à qualidade da vida biológica: integridade do corpo; uso dos bens exteriores, que garantam a subsistência e integridade da vida, tal como a nutrição, a vestimenta, a moradia, o trabalho; a qualidade do ambiente biológico… A partir dessas inclinações, o ser humano se propõe fins a realizar, que contribuem ao desenvolvimento harmonioso e responsável do próprio ser e que, portanto, lhe aparecem como bens morais, valores a buscar, obrigações a cumprir e direitos a fazer valer. Com efeito, o dever de preservar a sua própria vida tem como correlativo o direito de exigir o que é necessário à sua conservação em um ambiente favorável.
A segunda inclinação, que é comum a todos os seres vivos, concerne à sobrevivência da espécie, que se realiza pela procriação. A geração se inscreve no prolongamento da tendência de perpetuar o ser. Se a perpetuação da existência biológica é impossível ao próprio indivíduo, ela é possível à espécie, e, assim, em certa medida, se encontra vencido o limite inerente a todo ser físico. O bem da espécie aparece, então, como uma das aspirações fundamentais presentes na pessoa. Particularmente, em nossos dias tomamos consciência quando certas perspectivas, como o aquecimento climático, avivam nosso senso de responsabilidade para com o planeta como tal e da espécie humana em particular. Essa abertura a um certo bem comum da espécie anuncia já algumas aspirações próprias ao homem. O dinamismo para com a criação está intrinsecamente ligado à inclinação natural, que leva o homem para a mulher e a mulher para o homem, dado universal reconhecido em todas as sociedades. O mesmo vale para a inclinação de cuidar dos filhos e de educá-los. Essas inclinações implicam que a permanência do casal de homem e mulher, e até mesmo sua fidelidade mútua, já sejam valores a buscar, mesmo se eles só possam se manifestar plenamente na ordem espiritual da comunhão interpessoal.
O terceiro conjunto de inclinações é específico ao ser humano como ser espiritual, dotado de razão, capaz de conhecer a verdade, de entrar em diálogo com os outros e de estabelecer relações de amizade. Assim, deve-se reconhecer sua particular importância. A inclinação a viver em sociedade deriva, primeiramente, do fato de que o ser humano tem necessidade dos outros para superar seus limites individuais intrínsecos e atingir sua maturidade nos diferentes âmbitos de sua existência. Mas, para manifestar plenamente sua natureza espiritual, ele tem necessidade de estabelecer relações de amizade generosa com seus semelhantes e de desenvolver uma cooperação intensa na busca da verdade. Seu bem integral está, assim, intimamente ligado à vida em comunidade, que existe em virtude de uma inclinação natural e não por uma simples convenção, e que o faz se organizar em sociedade política [54] . O caráter relacional da pessoa se exprime também pela tendência de viver em comunhão com Deus ou o Absoluto. Isso se manifesta no sentimento religioso e no desejo de conhecer a Deus. Certamente, ela pode ser negada por aqueles que se refutam admitir a existência de um Deus pessoal, mas que permanece mais ou menos implícita na busca da verdade e do sentido que habita em todo ser humano.
A essa tendência específica do homem corresponde a exigência percebida pela razão de realizar concretamente esta via de relações e de construir a vida em sociedade em bases justas, que correspondam ao direito natural. Isto implica o reconhecimento da igualdade fundamental de todo indivíduo da espécie humana, além das diferenças de raça e de cultura, e um grande respeito pela humanidade lá onde ela se encontre, e inclusive do menor e do mais desprezado de seus membros. “Não faças para o outro o que não queres que te façam”. Nós reencontramos aqui a regra de outro, que hoje é posta como princípio próprio de uma moral de reciprocidade. O primeiro capítulo permitiu-nos reportar à presença dessa regra na maior parte das sabedorias, assim como no próprio Evangelho. É em referência a uma formulação negativa desta regra de ouro que são Jerônimo manifestava a universalidade de vários preceitos morais. “É justo o julgamento de Deus que escreve no coração do gênero humano: ‘Aquilo que não queres que te façam, não faças aos outros’. Quem não sabe que o homicídio, o adultério, os furtos e toda espécie de cobiça são o mal, e, por isso, que não queremos que sejam feitos a nós mesmos? Se não soubéssemos que estas coisas são más, jamais nos lamentaríamos quando elas nos fossem infligidas”. A regra de ouro une vários mandamentos do Decálogo, assim como numerosos preceitos budistas, até regras do confucionismo, ou ainda a maior parte das orientações das grandes Cartas que indicam os direitos das pessoas.
Ao final desta rápida explicitação dos princípios morais, que derivam da tomada de consciência pela razão das inclinações fundamentais da pessoa humana, estamos na presença de um conjunto de preceitos e valores que, ao menos em sua formulação geral, podem ser considerados universais, porque se aplicam a toda a humanidade. Eles se revestem, também, de um caráter de imutabilidade, na medida em que decorrem de uma natureza humana cujos componentes essenciais permanecem idênticos ao longo de toda a história. Todavia, pode acontecer que estejam obscurecidos ou mesmo apagados no coração humano em razão do pecado e dos condicionamentos culturais e históricos que podem influenciar negativamente a vida moral pessoal: ideologias e propagandas insidiosas, relativismo generalizado, estruturas de pecado … É necessário, portanto, ser modesto e prudente quando se invoca a “evidência” dos preceitos da lei natural. Mas é correto reconhecer nestes preceitos o fundo comum sobre o qual se pode apoiar um diálogo em vista de uma ética universal. Os protagonistas deste diálogo devem, no entanto, aprender a abstrair-se de seus interesses particulares para se abrir às necessidades dos outros e se deixar interpelar pelos valores morais comuns. Em uma sociedade pluralista, na qual é difícil se entender sobre os fundamentos filosóficos, tal diálogo é absolutamente necessário. A doutrina da lei natural pode trazer sua contribuição a tal diálogo.
É impossível permanecer no nível de generalidade, que é aquele dos princípios primeiros da lei natural. A reflexão moral, com efeito, tem necessidade de descer ao concreto da ação para aí lançar sua luz. Mas quanto mais ela enfrenta situações concretas e contingentes, tanto mais suas conclusões são afetadas por uma nota de variabilidade e de incerteza. Não é surpreendente, pois, que a aplicação concreta dos preceitos da lei natural possa tomar formas diferentes nas diversas culturas ou mesmo em épocas diferentes dentro de uma mesma cultura. Basta invocar a evolução da reflexão moral sobre questões como a escravatura, empréstimo a juros, duelo ou pena de morte. Às vezes, essa evolução conduz a uma compreensão melhor da interpelação moral. Às vezes, também, a evolução da situação política ou econômica traz uma reavaliação das normas particulares que foram estabelecidas anteriormente. De fato, a moral se ocupa de realidades contingentes que evoluem no tempo. Se bem que tenha vivido em uma época de cristandade, um teólogo como santo Tomás de Aquino, tinha uma percepção muito nítida. “A razão prática, escreve ele na Suma Teológica, se ocupa de realidades contingentes, nas quais se exercem as ações humanas. É por isto que, embora nos princípios gerais haja alguma necessidade, quanto mais se afronta as coisas particulares tanto mais há indeterminação (…). No campo da ação, a verdade ou a retidão prática não é a mesma para todos nas aplicações particulares, mas unicamente nos princípios gerais; e para aqueles que a retidão é idêntica em suas próprias ações, ela não é igualmente conhecida por todos. (…) E aqui, quanto mais se desce no particular, mais a indeterminação aumenta”.»
Comissão Teológica Internacional. Em busca de uma ética universal: novo olhar sobre a lei natural, 48-53.
Imagem: The Cybernetic Princess