Uma ervilha embaixo do meu colchão?

Sem assunto, mas com vontade de escrever.
Na maioria das vezes, no meu caso, é isso mesmo: só vontade de formar palavras, frases, parágrafos, etc.
Mas outras vezes não é bem falta de assunto, mas sim uma certa indeterminação, indefinição, ou falta de clareza sobre o assunto. E acho que dessa vez é isso.

Talvez seja o fato de que – o que não é novidade – eu tenha percebido que certas pessoas (na verdade, uma pessoa determinada, mas vamos fazer de conta que é uma reflexão generalizada sobre a vida, bem vago) não merecem um mínimo
a) da confiança que tenho nelas
b) da dedicação que tenho a elas
c) do carinho que tenho para com elas
d) de alguns etcéteras que tenho para com elas.

Desde que o mundo é mundo que as coisas são assim: pessoas decepcionadas com pessoas que decepcionam. Mas as coisas também incluem as pessoas decepcionadas reclamando – e quem sou eu para acabar com uma estrutura ancestral dessas? Vou reclamar igual, portanto.

O lance é que eu, por traumas mal-resolvidos causados por experiências anteriores, sou muito prudente em confiar em alguém. “Confiar”, nesse caso, significa algo como “baixar a guarda”, qualquer que seja o significado correto de “confiar” caso não seja “baixar a guarda”.

E, para mim, baixar a guarda não implica só em deixar transparecer toda a minha enorme fragilidade, insegurança, medo e outros intens que compõem o meu “lado obscuro”, mas também em deixar transparecer tudo o que eu tenho de melhor, de interessante, de curioso, de belo e de agradável.
O que eu costumo fazer, com a guarda em alerta, é selecionar um pouco de cada: um medo aqui, uma coisa bela ali, uma insegurançazinha menor mais prá lá, uma amabilidadezinha acolá.

Assim, eu sou um livro aberto, mas é uma edição de textos selecionados. Não é que eu me esconda, e sim, apenas, eu não entrego todo o jogo. A maioria das pessoas faz isso, eu sei, mas me impressiona como as pessoas tem facilidade em se abrirem em pouco tempo, às vezes por coragem, às vezes por descuido. Não é um espanto que indique uma crítica a essas pessoas: que sejam corajosas ou descuidadas tanto quanto queiram, tudo bem. É um espanto que indica admiração mesmo: eu não conseguiria fazer isso, me abrir, me deixar conhecer de maneira mais completa em pouco tempo. Acho que as pessoas tem forças diferentes, aquela velha história de que, para uma pessoa, um quilo pode pesar muito mais ou muito menos do que para outra.

Aconteceu, uma ou duas vezes, de eu baixar a guarda por precipitação: apesar dos meus traumas, me entusiasmei, e isso só serviu para reforçar o trauma. Mas uma vez, uma única vez, que eu me lembre, eu baixei a guarda voluntariamente.

Me pareceu que era o momento certo. A pessoa certa. Não que ela não fosse me atacar – eu não espero que qualquer pessoa não me machuque nunca, pelo menos um pouquinho. Mas me pareceu que – para conotinuar com a metáfora do livro – fosse alguém com interesse em ler, tentar compreender, e gostar da leitura. Você pode discordar completamente do que diz um livro e gostar dele. “Decorar”, me disse uma amiga minha uma vez, “vem da expressão ‘de coração’: quando você decora um livro, significa que o entendeu com o coração”. Claro que isso não vale, de maneira geral, para a tabuada, por exemplo, que você decora porque vai cair na prova. É mais no sentido – essa concepção de “decorar” como entender com o coração, e por isso lembrar do que leu – de decorar uma música que se gosta, por exemplo. Acho que “decoração” no sentido de enfeitar a casa com coisinhas bonitinhas também deve ter a ver com “de coração”. Mas a questão é que é isso, eu fui lido, talvez – t-a-l-v-e-z – até compreendido, mas não fui decorado.

Aliás, a palavra é muito boa.

Eu tanto não fui decorado no sentido de compreendido com o coração (como eu ando com um vocabulário fofo ultimamente), como não fui decorado no sentido de “enfeitado”. Porque, acho eu, você sempre enfeita uma pessoa de quem você gosta. Não necessariamente se iludindo com características daquela pessoa (quer dizer, maximizando ou inventando características), mas também reforçando, adornando a pessoa – é o caso de, por exemplo, você se prestar a ouvir problemas que, para você, são fúteis e facilmente solucionáveis, mas que para a outra pessoa são catástrofes de proporções mundiais, de maneira que você realmente sinta com ela (não por compaixão, mas por empatia de sentimentos*). De maneira que eu não fui decorado duas vezes.

*Porque “compaixão” é você empatizar com o sofrimento dos outros, mas é possível que você também tenha empatia pelos sentimentos de alguém porque você empatiza com as coisas alegres dela, quer dizer: é uma empatia aberta ao que vier, seja agradável ou não; e não uma empatia restrita ao sofrimento, que é uma restrição que caracteriza a compaixão, que por sua vez geralmente é sinal de sentimento de superioridade.

Eu sempre calculo minha abertura (a permissão de acesso a mim, digamos). E só dessa vez deixei todas as minhas portas abertas sem vigiar nada: pode ver e tocar o que quiser, sinta-se em casa. Várias vezes, ao achar melhor não abrir tanto, imaginei se não havia calculado errado, mas não tenho como saber isso e por isso mesmo não importa. Dessa vez, tenho cada vez mais certeza de que foi um cálculo errado, uma decisão inadequada. E não concluo isso por nada estrondoso, colossal, que mereça minhas lágrimas ou minha grosseria.

Dia desses eu disse para uma amiga minha, que estava se justificando sobre o fim que ela deu no namoro dela, que o que acaba com a relação são pequenas coisinhas que acabam pesando muito mais do que grandes eventos, como uma serenata (exemplo de um grande evento positivo) ou uma traição (exemplo de um grande evento negativo). Ela estava explicando que ele nunca fez nada de mau a ela, mas que em certas atitudes corriqueiras ele demonstrava uma indelicadeza muito desagradável para com ela. E eu disse que uma traição às vezes é menos destrutiva do que a contínua falta de afagos distraídos, por exemplo.

E são essas pequenas coisas, tanto a falta de umas como a presença de outras coisinhas pequenas assim, que me levam a concluir que eu me abri com a pessoa errada, ou melhor, que meu julgamento foi errado, ou, melhor ainda, minhas expectativas (para com a pessoa em questão) foram inadequadas. Quer dizer, acho minhas expectativas perfeitamente adequadas, mas são inadequadas a determinada pessoa.

Acho que talvez seja esse desconforto que esteja me dando vontade de escrever: eu preciso deixar bem claro, para mim, o que é que me incomoda tanto, tendo em vista que é um incômodo com uma pessoa que não fez para mim nada de ruim que mereça grande destaque.

E, sabe-se lá o que eu vou fazer quanto a isso, mas cedo ou tarde de alguma maneira eu tenho de resolver isso.