Mãe libertadora
«Se quisermos, agora, examinar o porquê do divórcio entre Maria e sociedade, devemos dizer, para começar, que esse problema não é específico da mariologia.
(…)
Existem, porém, razões especiais que explicam por que a fé em Maria não moveu à prática social. Uma delas é que Maria é vista sobretudo como “mãe”, na medida em que, na atual cultura patriarcal, e mais ainda na América Latina, a mãe é uma figura sobretudo doméstica, e não pública. Não se trata agora de substituir a imagem da mãe pela de libertadora, mas de rever e ampliar aquela imagem até incorporar o significado da última.»
(pgs. 27-28)
O hino da Mãe de Deus é o hino dos libertos
«O Magníficat se dá no quadro da chamada Visitação [de Maria a Isabel], isto é, de um encontro apresentando os seguintes traços relevantes:
é um encontro de duas mulheres, no qual os homens, embora presentes, ficam como que na sombra, fato este que contrasta com o quadro de subordinação da mulher na sociedade palestinense, em que era tida como “menor”, condição esta simbolizada pelo porte do véu (cf. 1Cor 11,20);
em seguida, aqui estão presentes duas mulheres pobres, ambas desprezadas, uma porque estéril e outra porque moça insignificante do interior;
enfim, temos aqui duas mulheres grávidas, mulheres “benditas” por serem portadoras da vida
(…)
Tal é o contexto imediato em que Maria canta o Magnificat, o “hino dos libertos” por antonomásia – os libertos que são, em primeiro lugar, a própria Virgem, depois, os humildes e famintos e, enfim, o povo de Israel.»
(C. Boff. Mariologia Social, pgs. 324-325)
A liberdade integral
«Certamente, estas três camadas [do Magníficat: aquilo que Maria disse, a formatação dada pela tradição oral e os retoques de Lucas] se recobrem parcialmente. Com efeito, na redação atual, o sentido conotado, se não o denotado, é indiscutivelmente pós-pascal (…) Essa interface de sentido tem um importante valor hermenêutico, pois dá sustentação teórica à hermenêutica cristã da “libertação social”, enquanto esta permanece organicamente ligada à “libertação soteriológica”, quer como abertura a esta, quer como derivada dela.» (C. Boff. Mariologia Social, pgs. 326-327)
As “predecessoras” de Maria
«… pode-se ver no Magníficat uma aproximação de Maria com Judite. De fato, a bênção de Isabel sobre Maria: “Bendita és tu entre as mulheres” parece repercutir intencionalmente a do chefe do povo, Ozias, em relação a Judite: “Bendita és tu, filha, diante do Deus altíssimo, mais que todas as mulheres que viivem sobre a terra” (Jt 13,18). Em seguida, o mesmo Ozias acrescenta: “A coragem que tiveste não deixará o coração dos homens, que se lembrarão sempre da potência de Deus” (Jt 13,19). Ora, isso mesmo ressoa na proclamação de Maria: “Doravante as gerações me chamarão bendita… Grandes coisas fez por mim o Poderoso” (Lc 1,48b-49a). Mas é também Jael, outra libertadora astuciosa como Judite, que foi declarada “bendita entre as mulheres” (Jz 5,24)
(…)
Além de Judite e Jael, Maria pode ser aproximada ainda de outra libertadora do povo: Ester.
(…)
A tripla aproximação de Maria com Judite, Jael e Ester reveste um significado social nada desprezível, pois coloca Maria na fileira das grandes libertadoras de Israel. Mais ainda, ela emerge aí como a Libertadora suprema, aquela que esmagou a cabeça da serpente ou, dizendo melhor, a mãe d’Aquele que iria vencer para sempre o Dragão (Ap 12,1-5).» (C. Boff. Mariologia Social, pgs. 346-347)
Mariologia Social (Clodovis Boff)