Um padre em uma missa mencionou, um dia desses, um santo afirmando que o pecado era uma coisa ótima, porque quando pecamos temos necessidade de sermos resgatados por Deus.
Eu não lembro o nome do santo, e embora eu tenha entendido o sentido da afirmação, achei um tanto ousado, tanto o santo quanto o padre, em fazerem esta afirmação. Agora, ousadia das ousadias, o evangelho de hoje diz, por uma analogia, a mesma coisa: “Em verdade vos digo, se ele a encontrar [a ovelha que se perdeu], ficará mais feliz com ela, do que com as noventa e nove que não se perderam.” (Mt 8, 13)
Este elogio ao pecado pode dar margem a concluir alguma coisa do tipo “eba, então vamos pecar!!!”, o que seria uma conclusão racional, mas só assim, fora de contexto.
Muito mais do que elogiar o pecado, esta passagem (e também a afirmação do santo) demonstram a confiança em Deus que muitos cristãos hoje em dia não tem: ao constatarem pecados (num recorte que exclui a maioria destes e inclui outros minuciosamente selecionados, como a homossexualidade e o aborto – uma seleção que me parece não se fundamentar em um zelo por Deus, mas em alguma outra coisa); enfim, ao constatarem pecados sendo cometidos em escala industrial, se desesperam com a depravação, com o assassinato dos inocentes, com o quão afastadas as pessoas estão de Deus, e então promovem uma cruzada verbal contra os pecadores que, se parassem para pensar direito, veriam que não serve para nada (olha aí os muçulmanos muito bem instalados nas suas terras, instalados inclusive em Jerusalém, depois de matarem e morrerem para expulsá-los séculos atrás – e, diga-se de passagem, num comportamento animalesco coerente com o pensamento de séculos atrás, mas não com o atual).
Imagine você xingar de coisas horríveis um pecador, ofender ele até não poder mais, e no fim ele dizer “nossa, eu sou mesmo um pecador e você me xingou tanto que eu me converti”. Se fosse o ódio que salvasse as pessoas, Cristo não teria morrido na Cruz, mas destilado ódio santo em textões no Facebook. Seria também parecido com Cristo pedir às noventa e nove ovelhas restantes que berrassem “mééééé!!!” bem alto até a ovelha perdida voltar, ao invés de ter feito como fez o dono das cem ovelhas: ido pessoalmente procurar a perdida.
Mas muitos cristãos fazem isto, cruzadas de xingamentos e mééééé’s chiliquentos, por falta de fé, ou melhor, pelo desespero causado pela falta de fé no Deus em nome do qual estão xingando e chilicando.
A ovelha perdida poderia ser muito bem retratada com um olhar malvado, um cigarro na boca, uma faca sangrenta numa das mãos, alguma depravação moral na outra e uma camiseta escrita “a ovelha perdida”.
Neste quadro hipotético (ah, se eu fosse um artista) haveria uma outra ovelha de gravata, bem arrumada, talvez até com uma Bíblia Sagrada numa das mãos e a outra aberta em um gesto de interromper Cristo que fala com ela, que também usaria uma camiseta escrita “uma das noventa e nove que não se perderam”. Por uma janela em um dos cantos do quadro (ambientado em um bar, porque eu não preciso ser um artista para ser um clichê sem talentos) daria para ver as outras noventa e oito pastando tranquilas, nem perdidas nem desnecessitadas de salvação.
O grande perigo das ovelhas perdidas é estarem perdidas, o que é óbvio, mas demonstra que com as ovelhas perdidas tudo está muito claro: elas estão perdidas, e Cristo vai atrás delas.
Mas o perigo das noventa e nove que não se perderam é julgar que também não precisam ser encontradas. São cidadãs de bem, trabalham, não roubam e nem matam (embora talvez gostassem de andar armadas para se proteger das outras, perdidas), vão a igreja todo domingo e talvez só lhes falte “ganhar um fuscão no juízo final e diploma de bem comportado” (Gonzaguinha) para completarem o seu checklist.
Qualquer semelhança do cidadão de bem com o fariseu que dava graças a Deus por não ser ladrão, corrupto, adúltero, nem ser como o publicano que dividia o espaço com ele que jejuava duas vezes por semana e dava o dízimo de tudo o que ganhava … (cf. 18, 11-12); enfim, qualquer semelhança entre o cidadão de bem e o fariseu não é mera coincidência.
Cristo não quer que pequemos (assim como não o querem o padre e o santo mencionados no primeiro parágrafo), e por isto vai atrás dos pecadores – não como um cruzado disposto a eliminar o pecado junto com o pecador, mas apenas para oferecer o seu amor.
Mas o que um Cristo manso e humilde de coração poderá fazer por um pecador que não precisa de salvação porque já se julga um santo?, um santo que se atribui uma licença 007, porque quem odeia o outro é um homicida (cf. 1Jo 3,15), mesmo que o deixe vivo, e quem chama o outro de louco – ou de idiota, em algumas traduções da Bíblia – vai pro inferno (cf. Mt 5,22).
Cristo vem oferecer a salvação ao cidadão de bem e à ovelha perdida, mas acho que deve ser mais fácil de lidar com o “não quero” da ovelha perdida do que com o “não preciso” daquela que não se perdeu.