Tecnicamente falando

Considerando a idéia de Spinoza de que tudo o que se é capaz de fazer é algo natural – pois o natural define-se justamente pelo limite das forças, da potência, da capacidade da pessoa – todas as coisas “artificiais” são tão naturais quanto tomar banho de chuva ou parir.

Uma das coisas que eu estou estudando é o conceito de técnica. Uma coisa meio chata, um professor meu estuda isso e me convidou para estudar e tal, mas ele é uma das pessoas menos toscas dentro da academia, não tem aquela arrogância acadêmica que caracteriza os integrantes dela, e por isso eu resolvi ir na dele. Claro, eu tenho um interesse indireto na coisa toda, mas, por iniciativa própria, faria isso por outros caminhos – por onde vou indo de fato, aliás.

Um dos meus interesses nesse assunto, do conceito de técnica, tem a ver com essa idéia de que a técnica, e as tecnologias por consequência, não são artificiais – ou, se ficar melhor dizer assim, as coisas artificiais são naturais.

Há aquela idéia de que, por um lado, não é mais possível encontrar nada “natural”. A partir do momento em que as pessoas criam uma cultura, e que espalham-se tanto pelo Planeta, que espaço dele está isento da ação humana? O derretimento de uma geleira, provocado pelo efeito estufa é natural ou artificial? Um derretimento causado pelo calor é natural, mas esse calor, responsável pelo derretimento, é artificial, produzido pela humanidade. Comer, fazer sexo, esse tipo de coisas são naturais. Mas essas coisas são feitas dentro de regras e códigos culturais – ou, quando são feitas à margem de códigos culturais – incensto, por exemplo (sem polêmicas penais, por favor: o casal é maior de idade nesse exemplo) – são feitas às escondidas ou buscam regulamentação (não lembro onde na Europa um casal de irmãos queria que a justiça legalizasse o casamento deles. Quero dizer que mesmo as coisas naturais são inseridas dentro da cultura. Não que a cultura as tenha produzido, mas insere-as dentro de si.
Por outro lado – o de Spinoza, se o entendi bem – não é possível fazer nada que não seja natural. Se você fez, é natural. Um machado é natural. Um computador é natural. São coisas técnicas essas coisas.
Heidegger tem um conceito depreciativo de técnica – e é praticamente tudo o que eu entendo de Heidegger. Mas posso chutar que é porque a técnica oculta a coisa em si, o famigerado dasein, quer dizer, “violenta” a coisa em si e desfigura-a. Mas é um chute, eu sei lá qual é a dele.
Mas é esse tipo de idéia, seja ela de Heidegger ou não, que está no fundo da depreciação das coisas técnicas, artificiais. Esse afastamento da natureza, esse distanciamento das “raízes”.

Eu fico com a idéia de que tudo é natural. Se você fizer uma árvore nascer de cabeça para baixo ela é natural – porque está feito, existe, portanto é natural (faltam alguns termos neste raciocínio).

Voltando a mim um pouco: eu tenho essa mania de, depois de ver esses conceitos todos, me perguntar “tá, e daí?”, no sentido de “e as pessoas com isso?”

Por exemplo: filhos adotados. Quando se adota uma criança, persiste em torno dessa relação a mística de que uma mãe ou um pai nessas condições não é tão mãe ou pai quanto os pais “naturais”, biológicos. O que conta é o sangue. Aceita-se a adoção, com aquela benevolência com que se aceita as loucuras que se faz em nome de coisas boas, coisas politicamente corretas: “um desapego tão grande adotar o filho dos outros!!!” Mas uma relação assim não é menos natural do que uma relação entre pais e filhos biológicos. Mas não é um bom exemplo – não que seja um exmplo errado, só não é muito ilustrativo.

Outro exemplo: fertilização in vitro. Ao invés de dizer que por ser artificial não deixa de ser natural, prefiro dizer que é natural. Um óvulo fecundado fora o útero não é menos óvulo do que um óvulo fecundo dentro. Simples assim. Aliás, mais ou menos fora do assunto, eu não entendo porque ainda não conseguiram enfiar o núcleo de um óvulo dentro de outro. Posso estar usando os termos errados, mas, se dois óvulos contém, cada um, metade dos cromossomor, qual é a dificuldade em enfiar uma metade que está em um óvulo dentro de outro óvulo? As diferenças entre o espermatozóide e o óvulo, que eu saiba, são apenas três: o espermatozóide se mexe e tem aquela química que corrói a proteção do óvulo, e pode ter tanto um X quanto um Y. Ou seja: capacidade de mover-se sozinho, capacidade de fecundar o óvulo sozinho, e indeterminação do sexo do feto. Nada disso, eu acho, impede que os cromossomos de dois óvulos sejam fecundados in vitro. Mas é só especulação mesmo.
Voltando ao assunto: a fertilização in vitro não é menos natural do que a fertilização “in cama” (eu não resisti a esta piadinha tão tosca…). Se está fertilizado, fertilizado está.

Enfim acho que essa idéia de unidade entre a técnica e o natural serve para isso: não menosprezar nem um lado nem outro.