segunda-feira da segunda semana do Advento

Primeiro alguém lhe ofende. Ainda não importa se era uma ofensa ou seu capricho, mas sim ter sentido a ofensa. Então você odeia, o que é muito natural. Aí você pode perdoar ou condenar quem lhe ofendeu.

Mesmo que ninguém execute a sua condenação, ela lhe dá uma sensação de justificação – e então você é, pelo que lhe diz seu coração, uma pessoa justa. E assim o dia foi salvo pelo ódio, porque a condenação é a salvação do ódio.

Os fariseus e escribas que se ofenderam com o perdão concedido por Jesus seguiram por outro caminho: eles se sentiam justos por cumprir a Lei, e faziam isto às custas de muito sofrimento. Então vem Cristo e perdoa fácil fácil um zé-ninguém paralítico içado numa maca telhado abaixo. Ele nem teve que se esforçar, foram seus amigos que o trouxeram, carregaram-no telhado acima e o baixaram até onde Cristo estava. O zelo deles não era pela usurpação das prerrogativas de Deus (pois julgavam que Cristo não era Deus), mas sim pela facilidade com que o paralítico obteve aquilo que eles se esforçam tanto para nunca precisar: o perdão de Deus. Eles condenavam – mesmo que não executassem a condenação – porque estavam eles próprios acima de qualquer condenação. Tanto é que condenaram Cristo.

A auto-justificação que temos hoje em dia não se baseia na Lei. Mas o resultado é o mesmo: enquanto os escribas e fariseus justificavam-se pelo cumprimento da Lei, nós nos justificamos pelo ódio, porque é ele que sustenta a condenação. E é assim que ele se salva pela condenação do outro.
Mas este ódio precisa ser alimentado, pois se ele desaparecer, a condenação também desaparece, e a auto-justificação se baseia nesta condenação. E o alimento do ódio é a ofensa.

Será que temos condições de condenar até mesmo os condenáveis escribas e fariseus? Mesmo que façamos do ódio uma nova lei?

Mas voltemos àquele “você” hipotético dos dois primeiros parágrafos (que, portanto, não se referiam a você, e sim a um “você” hipotético que pode ser qualquer um mas é óbvio que não é necessariamente você). Você decidiu perdoar ao invés de condenar.

Isto não impede que você tenha sentido o natural e aceitável ódio pela ofensa sofrida. Porém o perdão dissipa o ódio, porque este perdão é uma espécie de “deixa prá lá”. Aqui surge um perigo: o “deixa prá lá” pode permitir que o ofensor continue lhe ofendendo ou então ofenda os outros.
É urgente não confundir “deixa prá lá o ódio” com o “deixa prá lá a ofensa”. Se esta confusão acontece, o perdão vira um passe-livre para a ofensa e o ofensor vai se sentir à vontade fazendo isto.
O perdão implica tanto em deixar prá lá o ódio quanto em combater a ofensa. Sem combater a ofensa, o perdão tem o mesmo resultado que o ódio, só que neste caso o justificado é o ofensor.

Então temos a conservação do ódio condenador em benefício da auto-justificação; temos um tipo de perdão cúmplice do ofensor; e o perdão que “não esquece o que lhe fazem” (citando um trecho da música Mal Necessário de Ney Matogrosso). É necessário (não necessariamente um mal) não esquecer o que lhe fazem. E observe que o ódio também conserva a ofensa.

O ódio às vezes pode não estar servindo para a auto-justificação, pois a obstinação do ódio em manter a memória da ofensa, embora seja para se alimentar desta memória, é um meio de conservar a ofensa e assim poder combatê-la. Mas este ódio inevitavelmente fará de quem odeia alguém auto-justificado, porque a auto-justificação é amparada pela condenação, que conserva o ódio, que conserva a ofensa.

Cristo perdoou o paralítico mas não disse, como no caso dos dois cegos que imploravam a piedade de Cristo, “a tua fé te salvou”. No caso do paralítico ele disse apenas “teus pecados estão perdoados”. Se o paralítico se salvou ou não não vem ao caso. O que vem ao caso é o perdão gratuito de Cristo – pois o paralítico não fez nada para obter o perdão (o que revoltou os fariseus e escribas), ele nem mesmo pediu perdão, aliás, ele não fez absolutamente nada antes de Cristo mandar que ele pegasse a cama e andasse.
É este perdão de Cristo – gratuito e incondicional – que tanto dissipa o ódio quanto conserva a ofensa sem conservar junto o ódio.

Perdoamos os outros porque Cristo nos perdoou e ainda assim podemos nos insurgir contra a perpetuação da ofensa. Quando o perdão se limita a deixar prá lá, o perdão perpetua a ofensa, e quando se insurge contra a ofensa sem perdoar, se alimenta o ódio que também é uma ofensa, quer ele ajude a destruir a outra ofensa, quer não.

Isto talvez explique a escalada de ódio sem precedentes nos tempos que correm hoje: entre a cumplicidade e a auto-justificação farisaica, não é tão fácil perceber que a solução é o perdão.