«Jesus não morreu por acaso, nem por doença, nem por acidente. Embora a comunidade cristã vá dizer que sua cruz se explica pelos desígnios da presciência de Deus (At 2,23; 4,28), é preciso, contudo, considerar os fatores históricos. Jesus foi levado à morte por causa do anúncio do Reino de Deus, o que implicava também o anúncio de outra imagem de Deus. Seja o anúncio do Reino de inclusão e igualdade, de perdão e liberdade, seja o anúncio de Deus como Pai de ternura, compaixão e misericórdia, isso incomodou os chefes religiosos.
Desde o início de seu ministério público e no decorrer de sua missão de anunciar o Reino e denunciar as práticas idolátricas do antirreino propagadas pelos chefes religiosos, Jesus foi perseguido. Foi ficando cada vez mais clara, para Jesus, a percepção de que a realização da vontade do Pai teria que passar pela entrega de sua vida. Mesmo que os evangelhos reflitam a interpretação das comunidades cristãs, há sólidas evidências de que o Jesus terreno revelou ter consciência do significado salvífico de sua morte (RYAN, 2020, p. 60-64). É o que se pode notar na indicação de que não veio para ser servido mas para servir (Mc 10,45), nos anúncios da paixão (Mc 8,31; 9,31; 10,32-34), nos relatos da instituição da eucaristia, em que ele manifesta a confiança de que sua morte servirá para a restauração de Israel e a renovação da aliança divina (Mt 26,26-30; Mc 14,22-26; Lc 22,14-20), e na oração no Getsêmani, na qual ele entrega sua vida àquele a quem chamava de Abbá (Mt 26,36-45; Mc 14,32-42; Lc 22,39-46). O próprio Jesus – e não apenas a comunidade cristã – deve ter lido sua morte à luz de textos proféticos: o martírio de um judeu fiel poderia expiar os pecados do povo (2Mc 7,37-38), o suplício do servo sofredor exerce o papel de sofrimento vicário no plano de Deus (Is 52,13–53,12). A confissão de fé dos primeiros cristãos de que a morte de Jesus tem poder salvífico (1Ts 5,10; Rm 4,25; 1Cor 15,3) certamente se fundamenta em atitudes e palavras do próprio Jesus.
A morte como oferta sacrificial
Ligada à morte, a ideia de sacrifício foi bastante útil para os Santos Padres explicarem o modo como se dá a salvação do gênero humano por Jesus Cristo (RYAN, 2020, p. 97-100). Clemente de Roma ensinava que o sangue de Cristo foi precioso para o Pai, já que foi derramado para a expiação do pecado humano e trouxe a graça do arrependimento. Atanásio ensinava que Jesus, oferecendo-se a si mesmo como sacrifício sem mancha, entregou-se à morte no lugar de todos os seres humanos, para acertar as contas com a morte e libertá-los das consequências da primeira transgressão. Segundo Ambrósio, por sua auto-oferenda, Jesus redimiu a carne humana, que era sujeita ao pecado. João Crisóstomo, nas homilias sobre a Carta aos Hebreus, se refere à morte de Cristo como sacrifício de propiciação para comprar o fim da raiva de Deus. De modo diverso, Agostinho afirma que o sacrifício de Cristo não foi para aplacar a ira de um Deus furioso, mas consequência de sua encarnação, que implicava a manifestação de sua solidariedade plena, até a morte na cruz, com a humanidade ferida e perdida.
Como o sacrifício de Cristo, também a comunidade cristã se oferece em sacrifício na eucaristia, por meio do sumo sacerdote Jesus Cristo, que se ofereceu a Deus em sua paixão por nós, na forma de servo, para que pudéssemos participar de sua cabeça gloriosa e, assim, praticar as boas obras que são o verdadeiro sacrifício a ser oferecido a Deus.
A morte como expiação dos pecados
Como único, verdadeiro, sumo e eterno sacerdote, Cristo oferece-se a si mesmo como vítima pascal. Assim, ele supera a instituição cultual do Antigo Testamento, ligada ao Templo e aos sacrifícios, indicando que, como a Lei, tampouco o culto salva. O único ato salvador a assegurar, de uma vez por todas (Hb 7,27; 9,12.26.28; 10,10), o perdão dos pecados e a comunhão com Deus é a morte sacrificial de Jesus, que veio para servir e dar a sua vida por nós (Mt 20,28), para derramar o seu sangue e nos purificar do pecado (1Jo 1,7), para nos resgatar a todos do poder do mal (1Tm 2,6). Em lugar de uma ação sagrada realizada no recinto do Templo e com rituais precisos (Lv 1-15) que mediassem o desejo humano de expiação (Hb 9,1-10), o sacrifício de Jesus acontece fora do Templo e da cidade santa, como assassinato de um malfeitor (Hb 13,12). Este é o verdadeiro culto a Deus, que responde plenamente aos anseios de expiação, pois abre o caminho para o repouso divino e a herança eterna. O grande ritual de expiação, que visava libertar Israel de seus pecados e restabelecer a aliança do povo com Deus (Lv 16), realiza-se definitivamente em Jesus Cristo, que carregou o pecado do mundo e o expiou com seu próprio sangue (Hb 9,6-14). Substitui-se a prática sacrificial de animais pela oferta de um único mediador entre Deus e os seres humanos (Hb 9,1-15), o único santuário, o único sacerdote, o único sacrifício realmente agradável a Deus, não o sacrifício simbólico celebrado com ritos religiosos, mas o sacrifício real da vida inteira doada em favor dos irmãos. Com sua morte sacrificial na cruz, Cristo supera todos os ritos e sacrifícios da antiga aliança (Hb 10,1-10). “Assim, ele suprime o primeiro para estabelecer o segundo” (Hb 10,9). Por isso, a cidade nova – a Igreja, o céu – não precisa de santuário, “pois o seu santuário é o próprio Senhor, o Deus todo-poderoso, e o Cordeiro” (Ap 21,22).
Daí o convite a que os cristãos superem a negligência (Hb 2,1), a incredulidade (Hb 3,12-13), a imaturidade espiritual (Hb 5,11-12) e saiam do recinto sagrado (Hb 13,13) para entrar em contato com o mundo onde se encontra o Cristo humilhado, que não se envergonha de ser nosso irmão (Hb 2,11) e continua a carregar a sua cruz no meio dos pobres. Assim, os fiéis alcançam a salvação em assemelhar-se a Jesus, em sua prática de amor ao próximo, no amar até o fim, até a doação da própria vida.
A morte como pagamento do resgate do cativeiro
Além da ideia de sacrifício, também a noção de resgate serviu para os Santos Padres apresentarem sua explicação soteriológica. Servindo-se da passagem de Mc 10,45 (“o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos”), alguns Padres da Igreja ensinam que, com sua morte e ressurreição, Jesus triunfa sobre o mal e resgata a humanidade que estava cativa, sob o poder do diabo. Gregório de Nissa afirma que a humanidade, com o pecado, havia se vendido a Satanás, o qual passou a ter direito sobre nós. Por questão de justiça, portanto, Deus precisava dar ao diabo, senhor da humanidade, a oportunidade de pedir o que quisesse como preço pelo resgate do ser humano. O diabo pediu o que era mais valioso do que a raça humana: o sangue do Nazareno, nascido de uma virgem e realizador de tantos milagres. Mas enganou-se porque não enxergara a divindade escondida dentro da humanidade do Senhor. Ao ressuscitar dos mortos, Jesus engana o diabo e o vence, e, unindo ao seu corpo toda a raça humana, a resgata do cativeiro diabólico. Para Agostinho, o diabo adquiriu direitos sobre a humanidade com o pecado dos primeiros pais. Por um ato de justiça e não de poder, Deus liberta a raça humana com a humildade de Cristo na encarnação, quando este não só se torna semelhante a nós, mas, embora inocente, assume também nosso sofrimento. Por ter matado um homem inocente, o diabo perdeu os direitos sobre a humanidade.
Todavia, essa ideia do resgate não foi assimilada por todos. Gregório Nazianzeno considera um ultraje chocante imaginar que o sangue de Cristo fosse o pagamento dado ao diabo pela libertação do ser humano; de modo diverso, ele entendia que o Pai aceitou a oferenda livre de Cristo não por exigência do diabo, mas porque, na economia da salvação, a humanidade deveria ser santificada pela humanidade de Deus, para que pudesse nos libertar vencendo o poder do tirano e nos conduzindo a si pela mediação do Filho.
A morte como prestação de satisfação a Deus
Com Anselmo da Cantuária, temos a passagem do uso de imagens ou metáforas para a elaboração de uma teoria soteriológica da satisfação (RYAN, 2020, p. 109-121). Ele quer oferecer uma elucidação racional dos mistérios da fé e responder a pensadores judeus que julgavam ofensiva à dignidade e à impassibilidade de Deus a ideia de encarnação. Daí o título de sua obra principal: Cur Deus homo? (Por que Deus se fez homem?). Seu argumento soteriológico se contextualiza na época feudal, em que a submissão à vontade da autoridade superior era essencial para a manutenção da ordem social e, portanto, em caso de ofensa à autoridade era exigida satisfação correspondente ao status social do ofendido. Situa-se ainda no contexto do sistema penitencial, em que havia penitências prescritas para pecados específicos em vista da satisfação para a reparação dos pecados. A satisfação oferecida pelo ofensor à autoridade e pelo pecador a Deus passou a ser uma analogia natural para explicar o sacrifício de Cristo em favor da redenção da humanidade.
Anselmo pressupõe a crença cristã de que Deus criou a humanidade para a felicidade eterna, o que requer a submissão completa da vontade humana aos planos divinos. Ao pecar, todos recusaram essa submissão, desonrando Deus e, em consequência, perturbando a ordem do universo. A superação do pecado envolve, portanto, a restauração da honra divina e o restabelecimento da harmonia do universo. Para isso há dois caminhos, o castigo divino ou a prestação de satisfação a Deus. O castigo é uma ideia inconcebível, pois contraria o desejo divino de que todos alcancem a bem-aventurança eterna. A prestação de satisfação por parte do ser humano é impossível, pois sendo infinita a dignidade de Deus é também infinita a ofensa contra ele e, portanto, a humanidade é incapaz de cobrir a distância entre o pecado cometido e a honra ofendida.
Por questão de justiça e por respeito à liberdade e à responsabilidade humanas, Deus não pode desconsiderar a ofensa e, portanto, a exigência de satisfação. Por misericórdia, Deus quer levar adiante o seu plano de ter todos consigo na felicidade eterna. A saída do impasse encontra-se na encarnação de Deus. A prestação da satisfação será feita por alguém que é ao mesmo tempo Deus perfeito e homem perfeito. A dívida é paga por alguém da raça humana, que sendo Deus apresenta-se como oferenda correspondente ao status divino daquele cuja honra foi ofendida. Como a morte é efeito do pecado, o Filho eterno de Deus não precisava morrer, mas livremente quis entregar-se à morte para satisfazer a honra divina; por este ato extremo de liberdade pessoal e de obediência ao Pai, sua auto-oferenda tem valor infinito, maior do que todo o pecado da humanidade. Sua morte presta satisfação apropriada para Deus e produz a redenção de toda a raça humana.
Com leves nuances de diferença, Tomás de Aquino acolhe a teoria de satisfação, enquanto considera que
sofrendo por amor e por obediência, Cristo ofereceu a Deus mais do que exigia a compensação de todas as ofensas do gênero humano. (…) Portanto, a paixão de Cristo foi uma satisfação pelos pecados humanos não só suficiente, mas superabundante. (TOMÁS DE AQUINO, 2002, p. 693)
Essas explicações da salvação pela morte – sacrifício, expiação, resgate, satisfação – sempre se correlacionam com a ressurreição. Se Cristo não tivesse ressuscitado, sua morte não teria poder salvífico. O primeiro efeito salvífico da morte e ressurreição do Senhor manifestou-se nos discípulos. A experiência pascal do encontro com o Cristo ressuscitado fez os discípulos vivenciarem, também eles, sua Páscoa particular: de medrosos e trancados em casa tornaram-se corajosos e ousados no anúncio da ressurreição do Senhor. Passaram a professar a inauguração, ainda que provisória, do Reino de Deus pregado por Jesus. A morte do mestre foi aceita pelo Pai, que se vingou dos mandantes e assassinos libertando a vítima do poder da morte e dando-lhe um novo modo de viver. Assim, a ressurreição de Jesus revela o significado universal da pessoa, da mensagem e da obra salvadora de Jesus.
Como não é possível entender o ministério público do anúncio do Reino sem o destino de morte, também não dá para separar a morte e a ressurreição. Surgiu muito cedo na comunidade uma interpretação soteriológica da morte e da ressurreição de Jesus, como dois eventos que se explicam mutuamente: em Jesus não há morte sem ressurreição, não há ressurreição sem morte. Sua morte não é vista apenas como acontecimento histórico, mas como evento salvífico: ele morreu por nossos pecados, como parte integrante da vontade salvadora de Deus. Sua ressureição, em conexão com a morte, é vista como intrínseca à revelação do desígnio salvador de Deus.»
Enciclopédia digital Theologica Latinoamericana. A salvação em Jesus Cristo, 5
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