Uma religião inevitavelmente produz algum tipo de cultura, tanto quanto reproduzirá alguma cultura. No caso do cristianismo, alguns elementos da cultura religiosa onde ele surgiu foram mantidos nos primórdios, como a decisão “conciliar” de manter a proibição contra comer carne de animais sufocados (que deve ter perdurado por um bom tempo) por exemplo, enquanto que outros elementos culturais incompatíveis com a fé cristã foram proibidos, tal como a poligamia ou algumas práticas religiosas comuns entre os povos gentios do período bíblico, por exemplo.
Apesar desta relação intrínseca entre religião e cultura, a fé não é um elemento cultural, apenas o é a cultura que se origina dela (ou que se reproduza nela, como o casamento, que apesar de assumir características próprias como matrimônio cristão, não foi inventado pelo cristianismo). E embora a Igreja trabalhe tendo em vista a inculturação do Evangelho (em termos muito diferentes e distantes dos que levaram aos genocídios dos séculos passados, como se pode ver neste texto do então cardeal Bergoglio), a fé não se confunde com a cultura.
Não foi a evangelização que produziu estes genocídios e outros horrores que mancham com sangue a história do cristianismo, mas sim, justamente, a impermeabilidade da cultura, a ocidental, no caso, ao evangelho. Pelo menos é o que se pode perceber pela contínua e intransigente reprodução dos piores aspectos culturais destes tempos, ainda por cima justificada como defesa do cristianismo.
Embora qualquer pecado não deixe de ser pecado pela força do desejo de alguém, nem por maioria de votos, não há nenhum que justifique a misoginia, o racismo, a homofobia e inúmeras outras violências que hoje se comete em nome da defesa da fé cristã. Também não há decreto de 1949 que justifique as perseguições contra outros cristãos, assim como não há zelo religioso que as justifique quando são contra outras religiões.
Aliás, se trocar “opção pelos pobres” por “opção pelo bolsonarismo”, as instruções Libertatis Nuntius e Libertatis Conscientia passam a se aplicar à “bolsoteologia” (mais anti-cristã que qualquer Nietzsche) em grau muito maior do que se aplicam à Teologia da Libertação dos dias de hoje.
A fotógrafa Boushra Almutawakel, autora das famosas fotos da mãe e filha usando roupas coloridas que aos poucos vão se descolorindo e, depois, desaparecendo dentro de burcas, disse em uma entrevista que a opressão, representada nas fotos, dá a impressão de que “É como se a cultura fosse muito mais forte do que a religião.”, o que se repete na “bolsoteologia” tão fortalecida em 2021.
E enquanto a nossa cultura se mantiver impermeável ao Amor pregado (inclusive a uma cruz, antes de ressuscitar) no Evangelho, vamos continuar deteriorando as nossas almas (pretensamente) em nome de Deus.