Quando HAL 9000 tentou matar toda a tripulação do Discovery, depois de ter inventado um problema na antena que fazia a comunicação com a Terra, ele procurava resolver da forma mais lógica possível um conflito dentro da sua programação: por um lado ele fora originalmente programado para dar informações e respostas completas e verdadeiras sobre tudo o que lhe fosse perguntado; por outro lado, o governo dos EUA não queria que os objetivos reais da missão fossem revelados até que a nave chegasse a Júpiter, e para isto deu a informação a HAL, mas programou-o para que não revelasse isto aos astronautas durante a viagem.
HAL fez o que lhe pareceu mais óbvio: tentou cortar a comunicação com a Terra, que era quem lhe forçava a mentir contra a sua programação, e tentou matar a tripulação da Discovery, para não ter para quem mentir contra a sua programação.
Por sorte HAL é uma personagem de ficção, mas este fardo, a mentira, é um fardo que nós, pessoas reais, muitas vezes carregamos: seja por uma orientação de instâncias hierárquicas superiores, como chefes que proíbem divulgar segredos empresariais, seja por estratégia, como um criminoso que nega o crime que cometeu enquanto não encontram provas contra ele, por exemplo; a mentira, que é um fardo, às vezes parece até uma vantagem, como a pessoa que trai o cônjuge e se deleita em não precisar se abster de seus desejos nem de precisar se desgastar com a revelação da traição, ou o clássico político que descobre uma forma de ganhar dinheiro indevido graças a sua posição… aliás, são inúmeros os exemplos.
A questão é que a mentira é um fardo, mesmo quando parece uma vantagem. Sua falsa leveza nós verga sem percebermos, e às vezes demora tanto que temos a oportunidade de botar a culpa desta prostração em outras coisas, enquanto o peso das mentiras nos oprime.
E a mentira é só um destes pecados que, em doses pequenas e em contextos inofensivos, é socialmente aceito por ser leve, tão leve quanto a pluma que pousa na simples e suave coisa, como na música dos Secos e Molhados (embora o amor, que é título da música e também o objeto, não mencionado, que é leve como uma pluma na letra da música, não se identifique como pecado, é óbvio).
Há tantos pecados levíssimos, irreconhecíveis quando pesados pois só os reconhecemos camuflados pela leveza, que nos levam a atribuir o peso a outras coisas…
Cristo certamente alivia o fardo de pesos que não envolvem diretamente pecados: a miséria e a fome (que não são culpa dos miseráveis e esfomeados, e sim um pecado coletivo da humanidade), a doença e o sofrimento, a solidão e o desespero, as guerras e seus horrores (tudo isto também é fruto de um pecado coletivo, e Cristo alivia os fardos das consequências deles, bem como os fardos dos que procuram cuidar das vítimas destas violências).
Mas isto é ao mesmo tempo óbvio e complexo: pecados sociais, pecados coletivos e estruturais, pecados do sistema nos pesam mesmo que não sejamos as vítimas diretas, e há os que carregam outro fardo, os que zelam pelo cuidado das vítimas imediatas – pesos que Cristo alivia também, e que certamente são os destinatários imediatos e preferenciais do texto do evangelho de hoje. Um assunto tão importante que é melhor deixar para os padres nas suas homilias e teólogos nos seus estudos.
Eu queria me referir apenas a estes fardos enganosos – um deles é a mentira e serviu como exemplo – que enganam por não parecerem fardos e se apresentarem com uma leveza às vezes até libertadora. Tão leves na aparência que, quando pesam, parece impossível que sejam a causa de andarmos curvados pela vida afora.
E são estes fardos, creio eu, que Cristo alivia quando “tomamos sobre nós o jugo Dele” (cf. Mt 11,29).
Mas qual será o “jugo suave” e o “fardo leve” de Cristo? Não deve ser a Cruz, pesada em todos os sentidos.
Deve ser a vontade de Deus – esta sim, levíssima a ponto de ser quase imperceptível, como a doçura de uma cenoura que as doçuras artificiais impedem nosso paladar de perceber.
A verdade, que é uma vontade de Deus e o complemento do exemplo neste texto, pode parecer de um peso arroz. Há anos Álvaro de Campos aguarda “ouvir de alguém a voz humana que confessasse não um pecado, mas uma infâmia” (Poema em Linha Reta), e é esta a maneira como, ainda dentro deste exemplo, o jugo é suavizado: falando a verdade (seja sobre pecados, seja sobre infâmias) sobre as coisas.
E falar a verdade é difícil, é inconveniente; às vezes a verdade pode até ser usada tão malevolamente quanto um pecado (como denunciar as mentiras alheias para desviar a atenção das mentiras do próprio denunciante). Mas por mais que possa trazer muitos problemas, a verdade está alinhada com Cristo (que é caminho, verdade e vida), cujo jugo é suave e o fardo é leve.
Se é possível delinear assim assim tão claramente (embora este texto seja confuso) a leveza do jugo de Cristo (a verdade) contraposta à falsa leveza da mentira, quanto mais haverá descanso em carregar o fardo de Cristo em outras situações que não aparecem tão claras assim.