Eu quero, nos próximos dias, semanas, meses ou anos (vá saber) escrever sobre todas as séries que eu gosto de assistir (que por coincidência são as mesmas que assisto – quer dizer que só assisto às que gosto). Eu ia escrever sobre Twin Peaks, mas vou esperar ver a última fita para falar, eu acho. Mas é demais!
Mesmo assim, tem a ver com o assunto da série anterior. Não, na verdade não tem não. Foi algo só mencionado por cima no textinho sobre o The LW.
Não sei que artista deixou um cachorro morrer de fome amarrado em uma parede. Dá para entender a lógica dele: arte tem a ver com esse negócio de impactar as pessoas. Andy Warrol (é assim que se escreve) colocou aquele mictório na sua exposição para fazer refletir sobre o que é arte e o que não é arte, e blá blá blá. Certo, aceito isso. Mas e se fosse o broche da avó dele? O caso teria corrido o mundo e os anos como um tipo de marco na história da arte? Será que ele entraria para a história com as Marylin Monroes apenas? Foi muito legal a parada do mictório, confesso – mas Valérie Solanas não fez algo muito mais interessante e merecedor de maior destaque (me refiro ao SCUM e não ao tiro)? O que eu quero dizer é: o mictório precisou impactar para virar discussão. (por isso a história do broche: se fosse só o objeto deslocado, não teria o mesmo efeito; teve que ser um objeto impactante deslocado, entendeu?)
Certo, discutiu-se – e discute-se ainda – arte, o que é arte? o que é um objeto de arte? o que é estética? Ok.
Mas eu falava da lógica do cara lá: ele quis causar impacto. Andy Warrol colocou um mictório entre finos objetos de arte, causou impacto por uma boa causa. O artista matador de cusco? Matou o cão para mostrar a hipocrisia das pessoas. Lindo. E falo sério. Uma idéia genial. Como ele mesmo disse, ninguém daria bola para o bicho, só falam do cãozinho porque o sr. artista amarrou ele na parede (onde se lia “tu és o que tu lês”) e deixou-o morrer. E ninguém fez nada, desamarrar o cão, chamar a polícia, bater no artista…
Acho que a liberdade criativa é tão importante quanto comida. Mas você não precisa pensar assim, e pode preferir comer a ter liberdade. Eu vou fazer o que? Lhe obrigar a ter liberdade criativa? Dar pincel e tinta aos esfomeados pedintes da rua? “Aqui menininha, explore sua criatividade, expresse seu lindo interior com estas lindas cores nesta tela…” Se ela comer o pincel e beber a tinta, foi uma manifestação artística?
Mas além da liberade artística, há outra coisa em jogo: os bicho (que nem diz a minha vó). Animais não são gente – eu também acho. Mas o que dá o direito a uma pessoa a matar os animais por tais ou quais motivos? Eu sei que se um leão entrar com fome pela minha porta, ele me come e está se fudendo para o direito das outras espécies (eu, no caso) sobreviverem. E eu, com fome, matava ele e comia também (acho fascinante o vegetarianismo e suas variantes, mas não vivo sem um pão com salsicha ou mortadela ou uma lasanha e essas comidas antiecológicas). Mas leões e outros animais não abatem nenhuma outra espécie sistematicamente. Certo, vai que alguém aí sabe de uma espécie de macacos que mata sistematicamente uma espécie de, sei lá, cobras, porque uma espécie sente raiva da outra. Mesmo assim, eles não criam a espécie que odeiam, engordam-na com um monte de porcarias para ficarem mais saborosas, e comem-na nos dias de festa e de guarda. Eles sentem raiva, e matam. “O ser humano é o único animal que ri quando entende a piada”, disse o Luiz Fernando Veríssimo, mas também é o único que comete crueldades em bando e depois escreve livros de ética sobre isso. Onde eu quero chegar?
Os animais, ditos irracionais (e é racional que a fuga de capital estrangeiro da Bovespa mereça mais destaque que a fome no mundo?), por mais que matem, seja por fome, vingança ou esporte, não fodem com todo o ecossistema em que vivem. Se isso não é uma atitude racional, me internem. “Ah, mas eles não têm a intenção de proteger o ecossistema, eles só não têm capacidade para isso”. Mais irracional ainda é quem tem capacidade de fazer ou não fazer isso, e faz. Quero dizer que os seres humanos não se sustentam sós no mundo e, se não for pelo mero gosto pelos bichos, precisam respeitar e cuidar por questões de sobrevivência, de manutenção do mundo. Claro, esse argumento perde a validade se vc está se fudendo para as próximas gerações. Mas, então, que tal este? “Sem intenção alguma”, a selva inteira se vinga – e nem se trata de vingança, mas de autopreservação. Ou vc acha que, conscientemente (o que duvido) ou não, a selva não possui mecanismos de defesa contra uma espécie dominante? É só uma hipótese, mas tenho certeza de que está correta. Não imagino que a selva esteja arquitetando um plano para exterminar a humanidade. Ela (a humanidade, quer dizer, nóis) está se exterminando. Vai levar um monte de espécies junto, é verdade. Mas a selva vai sobreviver a isso, se reconstitui, e pronto, teremos um futuro sem pessoas no futuro. Mais do que isso: qualidade de vida, sem esse tipo de cuidado, não existe. Experimente viver só de mini-chicken e salsicha para ver como é bom.
Esse tipo de pensamento, de que os animais são inferiores, é que está por trás da grande idéia do sr. artista em matar o cão. Um cão vale menos do que a mensagem da sua morte, uma árvore vale menos do que as 500 folhas de papel que ela vai produzir, um rio vale menos do que uma papeleira instalada às suas margens, um boi menos do que um churrasco… se vc concordar com o pressuposto de que a espécie humana precisa das outras espécies para manter-se (não ´so a espécie, mas também os indivíduos, independente da espécie como um todo), logo esta sequência termina em que o ser humano também vale menos do que a papeleira, a mensagem, o churrasco.
Considero muito importante a mensagem que o cara quis passar. Mas o cachorrinho, creio eu, era muito mais importante do que ela.