Lua fora de curso

Brigar por nada. Por bobagem. Sei lá se para você era importante. Mas era bobagem. Mas discutimos. Até parecia um casal (como é fácil delirar sobre a realidade).
Até brigar com você é bom, apesar de machucar um pouquinho. Mas tudo bem, é com você.

Caminhamos depois, eu e você. Flores, plantas, verde, pássaros (mosquitos, aranhas, mas dessa parte ninguém nunca lembra). Conversamos. A irritação não passou. Mas td bem, as flores, o verde, os mosquitos, e as irritações, foi com você.

Jantamos (quem diria? Mas não é hora de ironia). Espero que seu dia tenha sido, apesar de muito estranho, tão bom como foi o meu. Porque o meu, o meu foi com você.

Pequena história permeada de infantilidade, e que não se sabe ainda como vai acabar.

Era um enorme desfiladeiro. No meio de uma mata qualquer. Devia ficar em um lugar alto, pois, quando olhávamos lá para baixo, somente se via neblina. Ali onde estávamos, porém, não havia neblina: será que estávamos acima da neblina, acima das nuvens? Mas era muito alto. Eu pularia primeiro, você depois. Éramos fortes o suficente para que quem ficasse ali em cima pudesse segurar quem havia se atirado, e para que, quem já houvesse chegado ao chão, segurasse quem pulasse depois. Uma vez vcê já tinha me deixado cair, mas você não sabia que eu pularia, e que o pulo era por sua causa. Agora, este desfiladeiro. Tenho medo, mas tenho disposição para pular primeiro e confiar em você, somente por gostar de você. E eu lhe perguntei: “Você vai pular depois?”. E você não respondeu. Meu maior medo não é de que você não me segure – sei que me exponho a esta possibilidade confiando em você, mesmo que fosse qualquer outra pessoa, estaria me expondo a esta possibilidade, mas somente com você eu me exponho assim. Tenho medo de que você não me segure, mas o meu maior medo é que você não pule também, depois. Talvez seja querer demais. Mas se é demais para você, realmente é melhor darmos meia volta e não ir mais tão longe. “Posso confiar na sua confiança em mim?”

Confiança

Confiança não é coisa para qualquer pessoa. Da minha parte, por exemplo, é difícil de se obter. Veja bem, “difícil” não quer dizer “raro”. Eu sou bastante trouxa, o suficiente para que me façam de idiota com facilidade. Já desisti da malandragem. Não sei se funcionou para a Cássia Eller, mas fazem anos que eu canto “Eu só peço a deus um pouco de malandragem”, e nada. Só consigo ser mais trouxa. Talvez por isso… “Ou não”, como diria “Caê” (conheço pessoas que chamam Caetano Veloso de “Caê”, pessoas que eu sei que o cantor não faz a menor idéia que existem; me divido entre ter raiva de uma pessoa tão medíocre a ponto de tratar um artista como se fosse seu camarada, mesmo que este artista não saiba da existência desse camarada, e ter pena dessa mediocridade. Mas eu também tenho minhas mediocridades; espero apenas que sintam por mim o que quiserem, menos pena – mesmo quando eu queira que sintam pena de mim).
Mas, sobre a confiança, a recíproca é verdadeira: é difícil conquistar, também, a confiança de outra pessoa. É difícil ser confiável. Têm pessoas de quem sei que tenho, ou acredito ter, confiança. Outras, não me interessa o mínimo se confiam em mim ou não. Tem também aquelas que, para seu próprio bem, espero que não confiem em mim, porque destas (poucas, mas contundentes) eu não teria o menor pudor em trair a confiança, a menos que isso fosse muito imprudente na hora. Mas existem pessoas, pouquíssimas, acho que talvez apenas uma, de quem eu gostaria de ter a confiança. Que pudesse deixar algo como, por exemplo, seu diário comigo e confiasse que eu não leria. Não importa se eu leria ou não (e, desta que tenho em mente, eu não leria mesmo). Mesmo sendo uma pessoa bastante fuxiqueira, curiosa além do que é de minha conta, estas poucas pessoas (talvez somente “esta” pessoa) merecem meu supremo esforço em não bisbilhotar onde sei que seria invasivo fazer isso. Até porque, por mais que realmente haja esforço de minha parte, de certa maneira é mais fácil não trair a confiança de quem eu gosto.
Mas “de quem eu gosto”, no fim das contas, não tem confiança em mim. E é aqui que ou eu descobri algo muito importante, fundamental, ou então estou fazendo uma tempestade em um copo d’água.
Acontece que o fato de eu confiar em alguém não gera um compromisso de reciprocidade: ninguém em quem eu confio tem obrigação de confiar em mim. Nem “de quem eu gosto”. Mas “de quem eu gosto”, por mais que eu goste, não tem confiança em mim. E isso muda tudo. Não tenho como esperar, como desejar, como me permitir alimentar expectativas por alguém que não confia em mim. Pessoas que eu espero que confiem em mim, mas que não confiam, tenho bastante no trabalho, na faculdade, na rua da minha casa… mentira, ninguém na rua da minha casa tem, da minha parte, esta expectativa. Eu não sei se eu me faço entender, e deve ser porque nem mesmo eu entendo bem. Mas uma amizade precisa ter confiança. Já me afastei de gente muito querida e importante por sentir a desconfiança alheia. É algo que você sente na nuca, um arrepio nos cabelos da nuca, mas, no caso, era ciúme, não de mim, mas ciúme da namorada, como se eu fosse calhorda o suficiente para trair a confiança de duas pessoas assim (porque quando você faz amizade com um casal, e imagina que as duas pessoas confiem em você, você trai as duas ao dar em cima de alguma das pessoas do casal, e o ciúme alheio na sua nuca, ainda mais sem motivo, apenas por paranóia espontânea, é realmente desagradável). A questão agora não é o ciúme de ninguém. É tão somente desconfiança. É colocar-se em posição de defesa, mesmo que seja de maneira muito sutil, quando vêem que você coloca a mão nos bolsos, com medo que você tire dali uma faca. É pensar que você seria alguém filha-da-puta o suficiente para agir de ma-fé. Não se trata tanto da mágoa que isso me causa. Mágoa passa, se passa por cima, dá trabalho, e muito, mas quando você gosta de alguém, vale o esforço. Se trata mais que uma coisa prática, uma questão funcional. Eu não posso querer conviver com alguém que não confie em mim. Tudo bem que me cobrem, mas cobrar lealdade constantemente seria o fim. Quando você convive com alguém, não precisa ser um relacionamento amoroso, em certos momentos é necessário tanto saber que eu posso fechar meus olhos e me deixar cair que alguém vai me segurar, quanto que a pessoa com quem eu convivo também seja capaz de fechar os seus olhos e confiar que eu estarei ali, que não a deixarei cair. E se a pessoa não for capaz de fechar os olhos perto de mim, se não for capaz de baixar a guarda, não é que não sirva, como se fosse uma tesoura sem fio, mas é que não funciona a relação. Pode-se estabelecer relações onde a guarda fica em alerta – no trabalho, na faculdade onde as cobras peçonhentas estão sempre sibiliando atrás dos murais e nas esquinas dos corredores – e, a´te algumas vezes, uma relação assim, mesmo permeada de desconfiança, pode ser muito agradável, porque você não espera que aquela pessoa confie muito em você, mas confie um pouco, níveis ordinários de confiança. Mas certas relações não vingam com desconfiança.
Talvez eu é que seja exigente demais (talvez seja por isso que, afinal de contas, eu nunca tenha amado, por exigir confiança demais). Talvez eu queira das pessoas – de certas pessoas, ou de uma em particular – algo que ela não possa, ou quem sabe até nem queira me oferecer. Mas, por mais que isso seja quase como ter que cortar um pedaço da minha carne, e sem fazer escândalo, isso, a confiança, a confiança em mim, não é possível ficar faltando. Isso é como “avião sem asa, fogueira sem brasa”: não existe – ai, espero nunca ter que pagar por dizer isso – amor sem que confiem em você.

The sound of music

A muitos e muitos anos, talvez também em uma galáxia muito distante, mas com certeza nesta, tinha um cigarro chamado Lark. Era o único cigarro que eu fumava de besta. Eu me sentia, olha só que estranho, a música da propaganda. A letra era “Lá, lá, Lark”, mas escrita assim, sem som, fica sem graça. Até porque não se tratava tanto da letra da música, mas do som (e importância da letra entrava somente porque o som delas também era bom: se fosse “Larque”, “Larq”, “L’Arc”, “Lahrc”, não faria diferença).
As diferenças entre as diferentes escritas de um mesmo som somente têm importância na escrita. Em uma conversa, não existe diferença entre “casar” e “casá”, “mi dá um beiju” e “me dá um beijo”. Esse é um problema unicamente da escrita, que é um registro. Por outro lado, a escrita compartilha alguns problemas com a conversa: “Minha mãe disse que ela queria casar comigo” é uma declaração incestuosa ou uma fofoca sobre aquela menina?. Isso pode deixar parecer que a escrita é mais clara, mais confiável.
A escrita é, ao menos pode ser, mais calculada. Falar é sempre mais espontâneo, é algo mais direto. E é sempre um complemento, até muito importante, mas complementar. Ouvir “eu te amo” não é apenas decodificar uma mensagem. Ouvir “eu te amo” implica também em sentir o calor do corpo de quuem fala, em olhar os olhos, o olhar, a forma do corpo de quem fala, em sentir a mão percorrendo a pele, os cabelos, em sentir a respiração ali na frente, outra respiração em nossa frente que também diz “eu te amo”, sem, no entanto, formular frase alguma, sem letras, apenas som e calor. Falar “eu te amo” já é amar (desconsiderando os casos de falsidade, de mentira; mas nunca podemos ter certeza da intenção alheia, somente pode-se confiar, e confiar já é, também, amar), porque já é toda essa maneira de dizer “eu te amo” também sem as palavras: com o corpo, com os sons, com o calor, com o contato entre as peles, as línguas, as bocas, com as respirações que acabam se tornando a mesma respiração, dois corpos, duas respirações que não se fundem, não se tornam uma mesma coisa, mas sim duas coisas que compartilham algo que somente essas duas coisas (coisas: corpo, respiração, pessoa) conseguem compartilhar. Nunca participei de Swing, menage a trois, nem de nada que envolvesse mais de três pessoas peladas e qualquer coisa parecida com sexo (mezzo falta de interesse, mezzo falta de oportunidade; mais ou menos assim: nas vezes em que tive curiosidade, faltou oportunidade, e nas poucas oportunidades que tive, não tive interesse – às vezes, porque o grupo ou alguns dos componentes não compensavam, ou por ter outras coisas para fazer; enfim, dei toda essa explicação só para dizer “nunca fiz, mas nada contra”, eu só sei simplificar depois de complicar). E falei do swing só para dizer que não sei se três ou mais pessoas conseguem compartilhar o amor. Há quem diga que se pode amar duas pessoas ao mesmo tempo, sei lá, até hoje nunca foi o meu caso.
Mas a escrita é um registro da fala, em certos casos. Mas também se pode escrever coisas que não serão faladas: existe um mundo próprio da escrita.
Eu queria chegar aqui: fumando Lark, eu me sentia a música (mais ou menos como um cara que beba cerveja para se sentir o pegador da propaganda, ou uma garota que use Seda para se sentir a mocinha do “Me olha. Me olha de novo.”, ou uma criança que compre as bonecas das RBD para se sentir uma Rebelde). Fumar Lark está para a música da propaganda mais ou menos como escrever “eu te amo” está para ouvir “eu te amo”. Nenhuma das duas experiências é pior, escrever é legal e amar também. Mas uma experiencia não traduz a outra, não substitui a outra. Fumar Lark não é o mesmo que dançar e ouvir a música, mas era o que eu fazia. Até acho que, se fumo hoje, é mais por nostalgia dos tempos do Lark (não só a música, mas tudo o que era aquele mundo de então), mesmo que eu não faça questão de que aqueles tempos voltem (foram bons, mas hoje é hoje e eu gostei de muito do que veio depois daquele tempo… não é bem isso, mas o assunto não é esse). Hoje eu tenho apenas um registro daquela música: 8mg de alcatrão, 0,8mg de nicotina e 8mg de monóxido de carbono, sem contar o Cádmio, o Mercúrio e todas as outras coisas que tem num cigarro.
Tudo isso para dizer que eu tenho medo de dizer que amo X. Por mais que eu saiba que escrever “eu te amo” não seja amar, ainda me prendo muito à relação entre falar e escrever, entre escrever e viver: me pareceria mentira escrever “eu te amo” sem nunca ter dito, e mesmo por medo de jogar o “eu te amo” na vala comum (escrever “eu te amo” não é o mesmo que amar, mas como me prendo ainda à escrita, escrever ainda está muito dependente de viver).
Eu não posso escrever o que sinto por X, porque nunca amei X. Mas também não posso dizer que não amo X, pois [leia-se: aquilo que não posso escrever]! Isso talvez signifique: não quero mentir. Mas pode significar outra coisa: toda esta divagação sobre X e o amor não tem o menor fundamento, pois não existe objeto que verifique o que escrevo (inclusiva, já me comprovaram várias vezes que nunca amei. Estamos ainda analisando as provas).
Talvez possa dizer, pelo menos em relação à amizade que temos. Mas, como vou saber se não sou uma amizade de ocasião? Amizades de ocasião podem ser muito intensas, mas são de ocasião. Sei lá se X… mas não quero desconfiar. Talvez o que me falte seja o que muita gente (na verdade, apenas uma pessoa, mas que vale por uma multidão) me disse: fale. Até Pedro Almodóvar já me disse isso, logo ele que nem me conhece. Mas como arriscar perder alguém tão… tão X, apenas para assegurar que poderei… amar? Não devo ter amado nunca mesmo.
O Lark substituía a música, claro que muito se perdia, mas o cigarro também tinha certos encantos que a música não tinha, e agora o Hollywood mentolado substitui o Lark.
Mas o que vivo – o que quer que seja que vivo – com X é, também, intenso assim como é. Talvez me falte ambição, a ambição de amar. Talvez eu me contente com pouco. Mas tenho medo de que esse pouco se perca: seja por mudança de Estado (X pode, a qualquer momento, ir morar em outro lugar), seja por mudança de estado (X pode se encantar por qualquer outra pessoa aí pela rua), seja por mudança de estado (X pode pensar que a amizade que tenho era apenas pretexto, jogo de cena para me aproximar. Como se diz para alguém: “quero tua amizade, nunca quero perdê-la; mas também quero te amar, sem perder em nada da amizade mas acrescentando algo”?). Amor fraternal, amor de amizade, tudo isso tenho por X. Mas… sei lá. Talvez faça falta o corpo. O corpo de X estou falando, porque o meu está aqui.
Mas como não se sentir uma coisa como o Quasímodo ao dizer “eu quero amar também o teu corpo?” Baixa auto-estima? Não sei se X me estima tanto quanto estimo X. O corpo é algo complicado, e não sei se X suporta meu corpo, que é o que quero oferecer – além de tudo o mais que X já tem de mim. Medo de rejeição? Mas já me rejeitaram tanto que, no que diz respeito somente à rejeição, mais uma ou menos uma não faria diferença. Somente esta que está em questão.

Mas, no fim das contas, são só palavras. Falta a música, a dança. “The Sound of Music”.

Uma canção desnaturada – Chico Buarque

Por que creceste, curuminha
Assim depressa, e estabanada
Saíste maquilada
Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Pra reviver a tempo
De poder

Te ver as pernas bambas, curuminha
Batendo com a moleira
Te emporcalhando inteira
E eu te negar meu colo
Recuperar as noites, curuminha
Que atravessei em claro
Ignorar teu choro
E cuidar só de mim

Deixar-te arder em febre, curuminha
Cinquenta graus, tossir, bater o queixo
Vestir-te com desleixo
Tratar uma ama-seca
Quebrar tua boneca, curuminha
Raspar os teus cabelos
E ir te exibindo pelos
Botequins

Tornar azeite o leite
Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído.

Gosto da letra desta música. Na falta de assunto, vamos comentá-la (“vamos comentá-la” é plural majestático, coisa de gente arrogante; eu devo ser arrogante, consequentemente; porque o plural majestático é coisa de gente arrogante? Eu não sei. Devo estar com sono).
A letra parece ser a de uma mãe ou pai desnaturados. Todas as maldades que eles se arrependem de não ter feito à filha. Mas parece mais um lamento, pelos rumos que a menina está tomando (essa música faz parte da Ópera do Malandro, que tem toda uma história complicada, e a Curiminha em questão – que tem um outro nome na verdade – está, pelo que entendi, afim do inimigo do pai dela). Guardadas as devidas proporções e sem entrar em questões sociais, é mais ou menos como pais de drogaditos com a vida muito complicada quando dão graças a deus que o filho morreu e dizem “pelo menos agora sei onde está”, quer dizer que acabou a preocupação. Sei lá, parece que os pais da Curuminha estão decepcionados, coisa assim.
Mas, deslocando a letra do contexto (personagens, etc), parece o lamento de muitos pais quando vêem seus filhos tomando rumos que não desejavam (não necessariamente rumos “maus”, apenas rumos diferentes daqueles que os pais esperavam que os filhos tomassem). Enfim, é o típico lamento de pais superprotetores: “Se fosse permitido/Eu revertia o tempo/Pra reviver a tempo/De poder/ … / Pelo cordão perdido/Te recolher pra sempre/À escuridão do ventre,/curuminha/De onde não deverias/Nunca ter saído.” O sonho de qualquer pessoa superprotetora.

Que comentários mais despropositados… Devo estar mesmo com MUITO sono.

Um trecho e uma citação

Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil Platôs Capitalismo e Esquizofrenia – Vol. 1.

Um livro não tem objeto nem sujeito; é feito de matérias diferentemente formadas, de datas e velocidades muito diferentes. Desde que se atribui um livro a um sujeito, negligencia-se este trabalho das matérias e a exterioridade de suas correlações. Fabrica-se um bom Deus para movimentos geológicos. Num livro, como em qualquer coisa, há linhas de articulação ou segmentaridade, estratos, territorialidades, mas também linhas de fuga, movimentos de desterritorialização e desestratificação. As velocidades comparadas de escoamento, conforme estas linhas, acarretam fenômenos de retardamento relativo, de viscosidade ou, ao contrário, de precipitação e de ruptura. Tudo isto, as linhas e as velocidades mensuráveis, constitui um agenciamento. Um livro é um tal agenciamento e, como tal, inatribuível. É uma multiplicidade — mas não se sabe ainda o que o múltiplo implica, quando ele deixa de ser atribuído, quer dizer, quando é elevado ao estado de substantivo. Um agenciamento maquínico é direcionado para os estratos que fazem dele, sem dúvida, uma espécie de organismo, ou bem uma totalidade significante, ou bem uma determinação atribuível a um sujeito, mas ele não é menos direcionado para um corpo sem órgãos, que não pára de desfazer o organismo, de fazer passar e circular partículas a-significantes, intensidades puras, e não pára de atribuir-se os sujeitos aos quais não deixa senão um nome como rastro de uma intensidade. Qual é o corpo sem órgãos de um livro? Há vários, segundo a natureza das linhas consideradas, segundo seu teor ou sua densidade própria, segundo sua possibilidade de convergência sobre “um plano de consistência” que lhe assegura a seleção. Aí, como em qualquer lugar, o essencial são as unidades de medida: “quantificar a escrita”. Não há diferença entre aquilo de que um livro fala e a maneira como é feito. Um livro tampouco tem objeto. Considerado como agenciamento, ele está somente em conexão com outros agenciamentos, em relação com outros corpos sem órgãos. Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer, significado ou significante, não se buscará nada compreender num livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua, com que corpos sem órgãos ele faz convergir o seu. Um livro existe apenas pelo fora e no fora. Assim, sendo o próprio livro uma pequena máquina, que relação, por sua vez mensurável, esta máquina literária entretém com uma máquina de guerra, uma máquina de amor, uma máquina revolucionária etc. — e com uma máquina abstrata que as arrasta. Fomos criticados por invocar muito freqüentemente literatos. Mas a única questão, quando se escreve, é saber com que outra máquina a máquina literária pode estar ligada, e deve ser ligada, para funcionar. Kleist e uma louca máquina de guerra, Kafka e uma máquina burocrática inaudita… (e se nos tornássemos animal ou vegetal por literatura, o que não quer certamente dizer literariamente? Não seria primeiramente pela voz que alguém se torna animal?) A literatura é um agenciamento, ela nada tem a ver com ideologia, e, de resto, não existe nem nunca existiu ideologia.

Gosto deste trecho, acho um tanto poético. Gosto desse livro, na medida em que entendo alguma coisa. E gosto desse autor, é muito legal estudá-lo.

Cito Pica-Pau: “Eu gosto de você!

questões nada a ver

Nada de útil para escrever. … Por isso, vou falar de inutilidades.
Gosto de escrever. É estranho, mas expressar idéias por meio de palavras me atrai incrivelmente. Muitas vezes não tenho idéia alguma sobre o que escrever. Aí escrevo bobagens (como no post com a figua do T). Mas, também, escrevo para colocar para fora. Coisas cujo momento de serem faladas não é este, coisas das quais não tenho ainda certeza, coisas de que preciso me distanciar um pouco para, depois, ver se “funcionam” ou não.
A escrita, apesar do gosto que tenho por ela, é muito limitadora. Escrevendo, muita coisa se perde. Escrevi logo abaixo sobre o meu ano-novo: metade do que eu quis dizer não está exposto ali, e muito do que foi escrito pode ser interpretado de maneira diferente. Tipo, minha relação com… enfim, com X, não mudou, continua igual; eu é que fiquei contente, feliz em ver X, depois de pensar que nunca mais X me procuraria. E me procurou em um momento que pensei que X nunca me procuraria. Foi uma supresa. Logo eu, que vivo dizendo que nada mais me surpreende no mundo… Levei nos dedos, de novo.
Outra limitação da escrita é a delimitação do campo onde se aplica aquilo qe você está dizendo, ou seja, aquilo sobre o que você está falando.
Se eu escrevo sobre filosofia e enfermagem, uma pessoa poderia pensar que eu entendo muito de ambos os assuntos. Mas sobre filosofia tenho um conhecimento fragmentado, incompleto, desencontrado. E sobre enfermagem, todo o meu conhecimento vem de minhas experiências como paciente. Em ambos os casos, muitas coisas vêm da minha reflexão. Digo isso porque pode parecer que penso que a enfermagem deve algo à filosofia, ou que pode-se fazer enfermagem com filsofia. Pelo contrário, acho que a filosofia é que pode ser muito tributária da enfermagem, na medida em que a enfermagem tem com as pessoas uma relação direta e muito pragmática: diferente das outras ciências, a enfermagem parece focar-se em promover o bem-estar não a um inexistente “ser humano em geral”, ou a algum ser humano ideal, e, nem mesmo, sua preocupação é o ser humano. Sua preocupação é com aquela coisa que designamos por pessoa e que, neste momento, precisa de cuidados. A enfermagem é pouco desenvolvida, me parece. Pode ser desinformação minha, mas vejo poucas palestras vindas da enfermagem obre saúde, vejo poucas contribuições da enfermagem para além do atendimento clínico. Embora justamente isso seja um dos aspectos que eu mais gosto na enfermagem, acredito que suas contribuições fazem falta no resto do território da saúde humana. Aí, pode ser, me parece, por mais que já tenha pensado muito sobre isso ainda não pensei o bastante, que a filosofia possa servir para alguma coisa no que diz respeito à saúde. Filosofia serve para alguma coisa, aliás, muitas, e, da minha parte, parto de um princípio que li em Deleuze (meu parco conhecimento do assunto me obriga a partir dos princípios dos outros, mas este tem me servido bem até agora): Filosofia é criação de conceitos, de conceitos utilizáveis de alguma forma pelas pessoas em seu dia a dia, em seu trabalho, nas relações com outras pessoas, com outras coisas, consigo próprias, com o mundo, com o que for. Não se precisa de filosofia para refletir, compreender, criar coisas, etc; a filosofia restringe-se à criação de conceitos (idéias de Deleuze – veja agora a petulância – corroboradas por mim – viu só, que petulante?). E a teoria do conhecimento, a literatura, a física, a biologia (embora ainda tenha muito espaço ainda aí), as ciências em geral, a sociologia, etc, estão muito bem servidas pela filosofia. Mesmo a medicina é muito bem servida, com suas concepções de ser humano, suas generalizações, suas especializações. O que imagino entre filosofia e enfermagem é uma relação de trazer para a filosofia alguma coisa que eu ainda não sei bem o que é, vinda da enfermagem, que permita à filosofia servir à saúde de alguma maneira, “de alguma maneira” que não seja, é claro, a da enfermagem (porque a enfermagem já está aí para isso) nem a da medicina (que, além de já estar aí, também tem muitos aspectos pouco funcionais e até um pouco nocivos, como a maneira de relacionar-se com seus pacientes). Trata-se de fazer a filosofia depender da enfermagem para explorar, no que diz respeito à saúde, aquilo que seja possível à filosofia.
E tem também o que escrevo sobre X. Sobre isso, nem sei o que escrever. Acho que quando estou bem com X, não tenho o que escrever sobre tal letra. Que mediocridade só saber escrever sobre o amor quando se está sofrendo… Mas, por outro lado, já me disseram, e desconfio disso muitas vezes, que nunca amei (porque possuo “frieza” demais, não me desespero, ou, pelo menos, consigo controlar um pouco esse desespero que também é uma das consequências do amor). Talvez minha mediocridade no que diz respeito a escrever sobre o amor venha disso, afinal. Quem nunca amou só pode fazer literatura mediocre sobre o amor.
Se é verdade que nunca amei, não sei o que é isso que me relaciona com X. Amizade? Sim, mas amizade também é amor. E, de qualquer maneira, “Amor” é uma amizade muito especial, que somente X consegue inspirar em mim, que, decerto, está em mim, mas que está em mim direcionado a X.
Sei lá, nada a ver. Falta de assunto esse posti.

Feliz 2007!!

Pois, veja como é a vida (não que ela seja exclusivamente assim; melhor trocar a frase). Pois, veja como também é a vida:
Você se programa para passar o reveillon (me acometem as mesmas dúvidas do Gabriel, daquela musiquinha “Well, well, well, Gabriel”) só, sem mais ninguém. Você compra coisas, você programa-se para fazer um monte de coisas (que se resumem em “o que vou comer?” e “o que vou fazer na Internet?”, com muitas opções em cada qual) e, principalmente, você se prepara para passar a tal virada somente consigo, que é uma ótima companhia. Claro, você tem que mentir para toda a sua família de que vai passar o reveillon (deve ser assim que se escreve) com amigos, e tem que mentir para os amigos que vai passar o reveillon (deve ter algum acento em algum lugar da palavra) com a família, porque todas as pessoas ficam com pena, como se você fosse uma coisa largada à parte e não estivesse adorando a possibilidade de passar o reveillon sem mais ninguém.
Mas eis que chega uma criatura, se você for cristão, um composto de carbono, se a sua praia for a química, um representante da espécie humana, se você for biólogo, uma pessoa física, se você for jurista, um sujeito, se você for filósofo, um predador, se você for um mosquito, uma incógnita, se você for agnóstico, uma… enfim, uma paixão, se você for eu.
Mas nunca você esperava ver esta pessoa chegar. Você passou os últimos dias querendo muito vê-la, você andava olhando para todos os lados, você não era um corpo com olhos, mas muitos olhos com um corpo, você sentia falta, você não sabia o que fazer, até que você achou melhor pensar “antes só do que sem a sua companhia”, resignou-se a nem dar um “feliz ano-novo” à pessoa… E ela bate em sua campainha. E lhe dá happy new year. E você passa a virada com esta pessoa. E você fica com muita pena da comida que comprou e dos planos que fez, mas fica feliz, muito feliz.
Você sabe que, como as crianças, se contenta com pouco. Mas, dentro de certos contextos, certas coisas têm o tamanho do mundo.

E eu, que nunca dei bola para isto (continuo não dando), que nunca pensei que a pieguice fosse tão longe (mas foi), estou aqui desejando um Feliz Ano Novo para o mundo inteiro (e para eventuais aliens, caso existam).

Só espero que dure.

Mais filosofia e enfermagem

tem um texto de Thomas Khun (ou “Kuhn”) chamado “Consolando o especialista”. Neste aritgo, muito legal, ele descreve o especialista pegando como exemplo um bando de assalto a banco: assim com na ciência (Oh! Glória!), um bando de assaltantes de banco também conta com diferentes especialistas que formam uma equipe capaz de executar uma determinada tarefa. E, tanto em um quanto em outro caso, a equipe não trabalha pelo amor à ciência, pela busca da verdade ou pelo desejo de conhecer mais a fundo os bancos, mas sim por dinheiro. Ou porque outro motivo existiriam pesquisas sobre coisas absurdas (agora, quando mais preciso, não me ocorre nenhum exemplo, mas são aqueles tipos depesquisas que são apresentadas, por exemplo, pelo Jô Soares no seu programa ou, por outro exemplo, pesquisas como “quem tem mais neurônios, homens ou mulheres” – esse tipo de pesquisa, em particular, acho tosca, porque trata-se de mera estatística; estatísticas ´procedem por amostragem, quer dizer, de cem pessoas, pegamos dez e esperamos que esse grupo de dez reproduza todas as diferenças, semelhanças e relações que existem no grupo de 100 pessoas, é uma questão de confiança, de fé que o grande grupo se comporte de maneira semelhante à amostra, pois a impressão que fazem passar é que necessariamente o grande grupo se comportará como o grupo menor, o que é apenas uma possibilidade; como diz um amigo meu, se eu e você sentamos em uma mesa, e eu comer um frango e você nada, estatisticamente somos duas pessoas bem alimentadas, pois cada qual comeu meio frango).
Mas, voltando aos especialistas. A medicina é uma ciência de especialidades. Um médico é especialista em pernas, joelhos, rins, etc. A enfermagem é mais (não gosto dessa palavra, mas me rendo) holística. Eu nem sei direito o que quer dizer “holístico”, mas me soa algo como “global”. Sem querer defender coisas sistêmicas, nem me colocar contra, a enfermagem, tão desvalorizada, ainda assim consegue ser mais… sei lá. A questão é que a enfermagem é quem faz aquilo que atribui-se à medicina, que é cuidar de pessoas. À medicina interessam, é claro, as pessoas. Mas ela somente lida indiretamente com elas. A medicina investiga coisas relacionadas a pessoas, e não pessoas. É como a física, ou a química: no fim das contas, seus estudos acabam convergindo para as pessoas, mas o território delas é outro. A enfermagem, por seu lado, é muito mais antropólogica, digamos assim, do que a medicina (e talvez, mais do que a própria antropologia). Claro, ninguém tem a obrigação de estudar pessoas. A geologia é muito feliz estudando… coisas geo (não quis dizer “estudando pedras” porque acho que isso talvez não resuma a geologia). Mas o estatus que atribui-se à medicina pertence, de fato, à enfermagem. E a enfermagem nem precisa desse estatus, pois seu trabalho vai mais além, me parece.
Está muito interessante escrever isso, mas tenho que tomar banho para ir comprar cigarros, senão fico sem até dia 2.

Momento sem assunto

A piada pode ser até meio sem graça, mas, sei lá, é criativo… Tá, tá, não muito, mas…

Só para não ficar apenas na piadinha cretina:
Por muitos e muitos anos, eu ouvi a música “Tédio com um ‘T’ bem grande pra você”, da Legião Urbana (que dizem que foi uma banda emo – precursora, na verdade -, mas de mim também já me disseram que sou emo. Por um lado, já disseram tanta coisa de mim que rótulo a mais, rótulo a menos, só coleciono – eu pareço uma mala de viagens, cheia daqueles adesivos dos lugares por onde ela passou; fica como lembraça dos lugares que visitei [ai que poético], mas esclareço que não sou mala, apesar da metáfora -; por outro lado, deixa o povo falar: pouca gente sabe que a minha tribo não existe). E eu sempre me impliquei com o “T bem grande pra você”. Até que um dia fez-se a luz: “claro, ‘T’ quer dizer ‘tesão’!”. Genial. Mas, tá! e daí? o que tem a ver tédio com tesão? Seguiram-se mais alguns anos, e, desta vez, não fez-se a luz, mas o sr. Óbvio bateu em minha porta ( e eu abri, mas ele não disse “sras. e srs, pulem num pé só; sra. e srs, ponham a mão no chão, sras. e srs, dêem uma rodadinha, e vá pro olho da rua!”) e me disse “Eu!”, (quer dizer, “Óbvio!”, afinal, ele era o óbvio) “tédio com um T bem grande pra você quer dizer tédio com T maiúsculo, ou seja, muito tédio”.