Domingo

Sou daquele tipo de pessoa que causa repugnância. Mas não uma repugnância clara, sensível. Somente uma repugnância indiferente.
Gosto das diferenças, e acabo por ser diferente demais. Eu sempre estou em outro lugar, quando me pegam acabam descobrindo que não era eu, e isto, decerto, assusta as pessoas. Eu sou imapeável, ilocalizável, fluída demais para que se possa apontar.
Me transformo demais. Como um X-Man, mudo de forma quando quero e absorvo as coisas das outras pessoas. Sei como é não poder tocar ninguém, ter um toque prejudicial.
Mesmo quando não me escondo existe um véu em minha frente, em minhas costas, em torno a mim.
Sei que sou eu quem faço isso, no final das contas.
Eu, que tanto quero que já não importe dizer ou não dizer mais “eu”. Eu sei dizer “o sol nasce” como todo mundo. Mas sei demais que isso é só uma maneira de dizer as coisas.
Eu não me encontro em território algum, caminho somente entre os limites de um e de outro – estou em vários territórios, e, ao mesmo tempo, em nenhum, por causa disso. Não posso dizer que me desterritorializei, porque em algum momento estou em algum território. Mas nunca tiro meus pés daquele espaço confuso, difuso, indefinido entre vários lugares.
Eu não tenho tribo. Meu grupo não existe, talvez seja isso. Não há quem se identifique comigo. E isso é uma benção e uma maldiçao.
Eu não suportaria me confinar, mas isso é doloroso e muitas vezes eu não quero mais isso.
Eu não suportaria que me dissessem “tu és”: “tu és isso, tu és aquilo”. Mas somente é possível amar quem pode ser apontado. Discernido.
Aí eu acabo carregando toda a leveza e todo o peso desta condição.
Esta condição é o que quero. Mas certas consequências disto, às vezes, parecem ser mais do que eu consiga suportar.

O pensamento hetero

Estes discursos da heterossexualidade oprimem-nos no sentido em que nos impedem de falar a menos que falemos nos termos deles. Tudo quanto os põe em questão é imediatamente posto de parte como elementar. A nossa recusa da interpretação totalizante da psicanálise faz com que os teóricos digam que estamos a negligenciar a dimensão simbólica. Estes discursos negam-nos toda a possibilidade de criar as nossas próprias categorias. Mas a sua acção mais feroz é a implacável tirania que exercem sobre os nossos seres físicos e mentais.

Imagine que você não é heterossexual. Isso vale para qualquer sexo – apesar da linha intransponível que divide os sexos e torna-os essencialmente estranhos um ao outro – e para qualquer coisa que não seja heterossexual. Ainda assim, você se insere dentro de um contexto heterossexual. Isso refere-se, sim, ao contexto político, cultural, religioso, legal, socieal, etc, mas diz respeito, também, ao contexto linguístico onde nos inserimos.

Você não é heterossexual. No entanto, vivemos em uma sociedade heterossexual. A expressão desta sociedade é heterossexual. A linguagem é heterossexual. O imaginário simbólico desta sociedade é heterossexual. Como você se faz entender dentro desta sociedade? Você precisa expressar sua situação, a sua realidade, em termos heterossexuais – sem ser heterossexual. Isso significa que existe um tipo de incomunicabilidade – talvez maior que a incomunicabilidade entre homens e mulheres, esses dois mundos à parte um do outro – que impede que uma pessoa não-heterossexual se expresse dentro de um contexto heterossexual.

Isso é semelhante àquela situação: dado um casal homossexual, por exemplo, uma das partes é o homem, e a outra, a mulher. Podem ser dois homens ou duas mulheres, não importa. As pessoas somente conseguem compreender uma relação afetiva em que há um homem e uma mulher – mesmo que não haja um homem ou uma mulher naquela relação. Trata-se de organizar sua compreensão segundo determinado esquema, determinada organização. Algo impede que mesmo um casal mulher-homem tenha um tipo de relação homossexual? Seria incompreensível, pois todo casal é, por definição, heterossexual.

Serve só de exemplo, pois se está falando não necessariamente deste caso (que, de qualquer maneira, apenas expõe uma visão, uma interpretação heterossexual dos relacionamentos – que não poucas vezes, é compartilhada também por casais homossexuais – e não corresponde à visão de muitas outras pessoas). Se está falando de todoum sistema simbólico heterossexual, de toda uma cultura heterossexual. O dinheiro é heterossexual. Os filmes são heterossexuais (mesmo Beijando Jéssica Stein ou Brokeback Mountain). As sandalias da Via Marte são heterossexuais.

Os pressupostos sobre os quais funciona o entendimento são heterossexuais. Aí você vai explicar, vai se expressar vai amar de maneira não heterossexual – uma sociedade heterossexual vai cimpreender? Vai admitir tal possibilidade? Vai ser como se, acada vez que você falasse “Hoje é dia 9”, a pessoa entendesse “quero um copo d’água”.

Se você perguntar a uma argentina chamada Bianca qual é seu sobrenome, ela vai dizer “Bibi”, e você vai pensar que ela se chama Bianca Bibi. Se ela lhe perguntar seu “qual es tu sobrenombre?”, você vai responder “Ferreira Pinto”, e ela vai achar estranho que seus amigos lhe chamem de Ferreira Pinto. Isso porque Sobrenombre, na Argentina, é como eles chamam o que aqui chamamos de apelido (o sobrenombre do Edson Arantes do Nascimento é Pelé, e não Nascimento), e Apellído é o que chamamos de sobrenome (o apellído da Xuxa é Meneghel). Mi apellído es Nascimento, mas meu apelido é Pelé. Mi sobrenombre es Xuxa, mas meu sobrenome é Meneghel.

A mesma relação se dá entre a compreensão heterossexual do mundo. Não adiante você dizer “sou mulher e amo uma mulher”. A mente heterossexual compreenderá que uma das duas pensa que é homem. Uma das duas não é mulher, uma das duas não enquadra-se na definição de mulher.

É mais ou menos isso que diz – ou que, pelo menos, eu entendi – do texto do link abaixo. Não entendo como nunca ouvi falar dessa mulher antes!! Como não se estuda ela em sociologia, em psicologia, em linguística, em direito, em comunicação, e, no meu caso, como a filosofia não estuda isso?? Por isso que filosofia, mesmo, parece ser a que ocorre fora da Academia (exceto a Nova Acrópole, que consegue ser algo mais infeliz do que a Academia). Schopenhauer estava certo.

Bom, sei lá se a mulher quis dizer isso mesmo que eu entendi mas de qualquer maneira ela é muito boa, ótima. E trabalhou com Simone de Beauvoir, de quem sou fã incondicional.

http://www.geocities.com/girl_ilga/textos/pensamentohetero.htm

Auto-flegelação

Não adianta a opinião que você tem.
Certas coisas, certos cotumes, certa cultura, são praticamente impossíveis de dobrar. E a situação torna-se muito irritante. Você é feito de idiota, fica sobrando.

Fazer um bolo é coisa simples. Bem simples, mas não quando criam você para ter tudo nas mãos. Mas, tudo bem, você vai lá, quer fazer, aprender, etc. Mas cozinha é lugar de mulher – isso não é dito, obviamente, mas é praticado com muito orgulho. Não é dito porque, culturalmente, tanto cozinha é lugar de mulher quanto dizer “cozinha é lugar de mulher” é feio. Preferiria que nada fosse dito, mas que as coisas fossem como são ditas.

É patético você ficar em uma cozinha sobrando. “Ah, mas lavar a louça é muito importante”. Sim, dar uma ajuda nas tarefas domésticas é muito importante, mas, sabemos, o ônus das tarefas domésticas são das mulheres.

Um homem que fizesse TODAS as tarefas domésticas da casa seria um deus para a maioria das mulheres, pois estaria tendo uma atitude abnegada, desviando-se do seu lugar, das suas funções, para fazer aquilo que sua mulher deveria estar fazendo. Isso, opinião de muitas mulheres (uma opinião masculina seria “é um trouxa”, ou “tá querendo comer ela”, mas não vem ao caso agora).

A questão é que quando você convive com as pessoas, se elas gostam de se auto-açoitar, assumir tarefas homéricas sozinhas – mesmo que sejam a gradáveis, como fazer um bolo, o que é bem menos homérico e mais agradável – você pode tocar um belo foda-se e ficar na sua, ou saber que isso é absurdo e ir fazer o que você tem que fazer, independente do seu sexo. Mas aí você coloca-se na patética situação de ficar como uma peça da mobília, ou fazer a única tarefa masculina na cozinha: secar a louça. Nada contra lavar e secar a louça. O que irrita é a velha reprodução de costumes idiotas.

Tenho mesmo vontade é de mandar tudo à puta-que-pariu, deixar se foder, “quer viver como escrava, como minha escrava, como empregada? Então viva!” Posso muito bem controlar o meu sentimento de que a situação é injusta, de que me colocam em uma posição de “rei do pedaço” que sei que é opressora e falsa, ignoro isso e deixo se foder. Cansa isso, cansa. Irrita. “Ai, isso é típico de homem”, “ai, isso é assunto de mulher”, “os homens trazem as bebidas, as mulheres a comida” (sim, é muito mais fácil e menos trabalhoso ir no supermercado e comprar as bebidas do que ir no supermercado, comprar todos os ingredientes, preparar a comida e guardar na geladeira e ainda ficar se preocupando se gostaram ou não). Algumas mulheres precisam libertarem-se de si, de seu pensamento machista, antes de alguém vir lhes dizer “pare de beijar o chão que um homem pisa somente porque ele tem um pau de duas bolas no meio das pernas”. E não adianta eu agir com pena – EU não liberto ninguém, você se liberta, e eu convivo com você, porra!!

E eu estou cansando disso. Querem me colocar em um trono e me fazer de deus, de ser superior para ter o prazr (sim pois deve existir algum prazer nisso) de ficar murmurando “me oprimem”? Então coloquem.

Eu vou desistir logo logo de repetir “se te oprimem é porque, em primeiro lugar, VOCÊ é quem se oprime”. Se você não se oprime e tentam lhe oprimir de fora você esperneia, grita, luta, berra. Se você se oprime, vai murmurar pelos cantos “me oprimem” com ar de choro, mas vai bonitinho fazer o que te mandam.

Cansei. Se querem uma grande, reluzente e intransponível linha divisória entre mundo feminino e masculino, de preferência sendo primeiro subserviente ao segundo, tudo bem. Eu não me meto mais em assunto que não é da minha conta. É degradante, deprimente, opressivo e mais adjetivos desse tipo que não me ocorrem agora. Mas, para mim, pelo menos é mais fácil.

My Girl

De repente, não quero mais. Claro, não foi “de repente” que eu não quis mais. Foi aos poucos. A cada dia. Até que em algum dia, aquilo que se insinuava sem ainda ser acontecimento, aquilo que ensaiava sem ainda ter se apresentado, aquilo que calava sem, no entanto, silenciar, falou, aconteceu, apareceu.

Não se perde o que não se tem, mas o que será o amor para que se possa dizer que isso ou aquilo deva necessariamente ter acontecido para que também o amor aconteça?
É perigoso pensar assim, pois um estuprador também pode pensar assim: o que fiz foi por amor.
Mas não. Não é assim. Algo não precisa ter acontecido entre duas pessoas para que seja amor, mas sim tem que ter acontecido com uma das pessoas para que seja amor, e se o estuprador não foi capaz de amar sem cogitar a possibilidade – e aceitar caso fosse o fato – de ser correspondido não como queria, mas como quem amava desejava corresponder, então não amou. Se te amo, amo teus desejos como se fossem meus. Inclusive o desejo de não me amar (dito em outras palavras, pode-se chamar isso de respeito, mas a palavra parece estar um pouco gasta).

Agora que sei que não ofereço justificativas ao estuprador, posso voltar a defender o meu amor. Sim, eu te amo. “Senhora, eu te amo tanto, que até por seu marido eu sinto algum quebranto”. Eu desejo o que desejo, e desejo também o que desejas. Desejo também para ti, não somente para mim.

Pode-se desejar para o outro aquilo que se deseja para si. É o princípio da ditadura. Pode-se desejar para o outro aquilo que o outro deseja para si. É o princípio da amizade. Mas quando se deseja para o outro aquilo que se deseja para si, sendo ainda capaz de aceitar que o outro não compartilhe desse desejo; e quando se deseja para o outro aquilo que o outro deseja para si, sem esquecer-se de que é o desejo do outro, e isso porque se sabe o que se deseja para si é o desejo do outro, se ama. Amar é tanto desejar que tu me desejes quanto os desejos que tens para ti. É amar teu desejo – desejar teu desejo.

Desejo teu desejo, e desejo para ti o que desejas para ti – tenho também desejos meus para ti. Mas sei que não tenho o teu desejo. Apenas desejo para ti o que desejas para ti.

Me pergunto: “será que ainda vou amar (outro) alguém?”. Deixo prá lá. Por mais que a palavra “amor” seja a mesma que eu, você e todas as pessoas utilizam, o amor por cada pessoa sempre será um diferente e novo amor. Acho que não se deveria falar o amor. Deveria sim existir, para cada diferente pessoa amada, uma palavra exclusiva, que somente eu e ela saberíamos que significa o amor. Como se o mesmo amor fosse – e de fato me parece ser – diferente para cada pessoa amada. Único e incomparável.

Regras

Toda a sociedade baseia-se em regras. Regras legais, regras morais, regras científicas, regras de educação, regras de trânsito, regras de redação.
Aqui vai, então, minha contribuições ao que diga respeito às nossas regras.

Toda regra tem excessões. Não existem regras absolutas, sem possibilidades de transgressão.
Mas, se for assim mesmo, então esta regra (que diz “toda regra tem excessões”) está errada, pois ela diz que toda regra necessita de uma excessão, e ela própria não tem excessões. Esta regra “regulamenta” todas as outras regras, mas quando tentamos aplicá-la a si própria, ela se torna falsa, errada: “não existem excessões à regra que diz que toda regra tem excessões; o simples fato de enunciar tal regra invalida-a”. Para que ela se torne válida, teríamos que encontrar uma regra sem esxcessões, absoluta: tal regra seria a confirmação daquela regra que diz que toda regra tem excessões.
Assim, teríamos que encontrar um Deus e uma Igreja que fale em nome dele para nos dizer regras absolutas; ou uma Ciência e um cientista que fale em nome da Ciência para nos dar regras sem excessões; ou mesmo um psicanalista para nos dizer que tudo é culpa do complexo de édipo, sem excessões. Qual será a regra de ouro?
Mas, espere um momento! “Toda regra tem excessões”, e realmente, quando se verifica que esta regra está correta, ela torna-se errada. Como ela torna-se errada? Não sendo válida para si própria. Mas, se ela não vale para si própria, então ela é uma excessão: ela é sua própria excessão e confirma-se a si mesma ao contradizer-se.
Esta regra é muito estranha: ela somente vale portanto, ao contradizer-se. Somente quando ela própria, quando sua própria existência lhe trai, ela funciona.
Mas, assim, podemos deixar de procurar regras absolutas, pois já a encontramos. “Toda regra tem excessões. Se isto é verdade, esta própria regra está errada; mas, se está regra está errada quando acerta, ela é verdadeira”.

Não sei se isso pode servir de alguma coisa. Mas é a única regra que conheço que diz algo como “não existe nada absoluto; viva a sua vida e deixe a dos outros em paz, pois você não tem condições de impor nada a ninguém.”

a vida dos outros

Certos assuntos não deveriam ser problema, não deveriam chamar a atenção, não deveriam merecer campanhas, mais de dois segundos de atenção, não deveriam ser objeto de políticas públicas, de valorização, de nada. Deveriam ser assuntos corriqueiros, deveriam ser objeto de falta de assunto, ou de comentários assim, sem maiores preocupações.
Assuntos como homossexualidade, racismo, inserção de mulheres no mercado de trabalho, casamento gay, eu tinha mais 150 assuntos na cabeça, mas foram todos embora, não tiveram paciência para esperar que eu escrevesse o parágrafo acima, decerto.
Essas coisas deveriam ser triviais. Dia desses duas meninas passaram de mãos dadas em uma rua movimentada próxima a minha casa. As pessoas pararam para olhar. Se elas estivessem peladas chamariam menos a atenção. Até aí, infelizmente é de se esperar. Mas um pouco mais adiante um senhor e duas senhoras conversavam:

– Viu só que falta de vergonha?
– É mesmo o fim da picada.
– Com tanto homem por aí, vão ficar com mulher.

Eu fui adiante. Me intrometo demais nas coisas e fazer barraco na rua é legal só em novela. Mas me espanta que as pessoas consigam ser piores que eu. Vê lá se alguém tem que se intrometer dessa maneira na vida dos outros! E ainda mais no namoro dos outros. Se é minha amiga e vem me pedir ajuda tudo bem, mas estranhos são estranhos, e a gente chama assim justamente porque são pessoas que não deram a menor liberdade para a gente dar palpite, quanto mais repreender pelo que quer que seja. Respeito a liberdade do trio de bestas de ter a sua opinião. Se não gostam, tudo bem, ninguém tem que gostar de nada. Se ficaram chocados, guardem seu choque para a intimidade das quatro paredes da casa deles. Eu é que me choco com essas reações.
Reagir é atitude típica de quem não tem capacidade para agir. Para você reagir, alguma coisa precisa agir em você. As meninas se conheceram, ficaram afim uma da outra e resolveram passear no centro (eu gosto de falar coisas óbvias), coisa que bilhares de pessoas fazem todos os dias, inclusive aqueles três patetas. As meninas agiram, fizeram alguma coisa da vida delas. Os três, entretanto, só tiveram capacidade de reagir. Porque eles não podem fazer nada. As meninas não se deram ao trabalho de desgrudar as mãos, eu imagino. Não reagiram. Continuaram na ação delas. Se você precisa reagir, geralmente isso significa impotência. Incapacidade de ação. Significa que você vive dependurado nas outras pessoas como um parasita vive dependurado num boi. Você não tem vida própria. Depende da vida, e da ação dos outros para ter vida. Pessoas assim são verdadeiros parasitas. Não digo isso, necessariamente de pessoas que achem horrível a homossexualidade dos outros. Digo isso de quem se importa com isso. É a mesma lógica da inveja: a homossexualidade, não, nem era a homossexualidade, porque eu nunca vi as duas meninas transando na minha vida e, a rigor, não posso afirmar que eram namoradas, as mãos dadas das meninas eram delas, e uma pessoa faz o que bem quiser com suas mãos; mesmo assim, os idiotas precisaram, tiveram muita necessidade de comentar isso. Mas já perdi muito tempo falando deles.
A questão é que olha eu aqui, falando da vida dos outros. Esse é que é o problema. Ontem eu devo ter passado por muitas pessoas de olhos verdes. Isso incomoda alguém? Alguém reclamou que é o fim da picada aqueles olhos verdes? Com tanto olho castanho por aí? Não. Devem ter passado por mim, também, dezenas de pessoas usando sapatos amarelos (há gosto para tudo nessa vida). Alguém reinou? Isso virou problema para alguém? Alguém se deu ao trabalho de juntar um pequeno grupo e ficar falando dos sapatos amarelos de outra pessoa? Não, porque os pés são daquela pessoa, e o mau gosto também, não são da conta nem do interesse de ninguém. Se eu vendesse sapatos, seria remotamente do meu interesse, porque eu iria comprar mais sapatos amarelos para minha loja se visse que as pessoas estariam usando isso.
Por isso que eu espero que esse tipo de assunto deixe de virar assunto.
Os jornais do mundo inteiro fizeram o maior estardalhaço porque uma mulher é presidente da câmara alta (ou algo assim) dos EUA. Meu Deus!! Isso ainda é notícia? A Yeda Crusius foi eleita governadora no RS. A primeira governadora e daí? Só quem nunca teve chefe mulher para se espantar, decerto, e a primeira chefe que tive foi uma mulher (uma ex-professora minha) e não vi nada de mais. Ela era às vezes tão cachorra e às vezes tão brilhante quanto qualquer outro chefe que eu tive. E, convenhamos, tanto pior para o RS que elegeu a Yeda, diag-se de passagem.
Enquanto as pessoas votarem nos pênis ou nas vaginas das pessoas, eu vou continuar me sentindo em 1960/70, mas sem as músicas disco, que são legais. A menos, é claro, que me provem que o que você tem no meio das pernas é decisivo na hora de tomar decisões governamentais: imagino o presidente conversando com seu pênis, ou a governadora conversando com sua vagina, antes de propor um pacote econômico (“-O que você acha?” “-Ah, sei lá, nem a luz do sol eu vejo há tempos, como eu vou lhe falar sobre economia?). Rídiculo.
Não sei, mas outras coisas deveriam ser mais espantosas e merecer notícia, merecer a atenção das pessoas. Outras coisas é que deveriam ser incríveis. Ou ser motivo de indignação popular. Esses dias passei pelo vice-prefeito pela rua e não se formou nenhum bolinho para ficar falando mal da situação do hospital da cidade. Cadê aquele trio numa hora dessas? Ou quando os deputados quiseram aumentar o salário deles para R$ 24.000? Ou quando a minha faculdade aumentou a mensalidade e me obrigou a fazer três cadeiras por semestre sem me perguntar se eu podia pagar? Ou quando fecharam a maioria das livrarias por aqui para abrir, no lugar, farmácias ou igrejas universais?? O velho deveria estar em casa se masturbando vendo filme pornô, provavelmente com muitas lésbicas.
O problema, eu acho, não é uma pessoa ter preconceito. o problema é uma pessoa se achar no direito de se meter desse jeito na vida dos outros. E nem é o problema de se meter na vida dos outros: se me atropelaram eu vou dar graças a deus que uma enfermeira venha se meter na minha vida para me socorrer. O problema é as pessoas quererem que os outros tenham os mesmos valores que elas, obrigatoriamente.
O problema é não conseguir conviver com gente que valoriza outras coisas. É pensar que todo mundo tem que pensar como eu penso, agir como eu ajo, de preferência se vestir como eu me visto, gostar do que eu gosto e, enfim!, todos seremos um. Entre isso aí e uma ditadura eu não vejo diferenças. Às vezes eu tenho medo de que, quando um ditador morre, seus germes ditatoriasi se espalhem pelo mundo e contaminem mais e mais pessoas, um bando de mini-ditadorezinhos por aí, indignados pelo mundo não ser como eles são.
Por isso que certas coisas, certos assuntos, enfim, a vida dos outros não deveria ser coisa interessante.

Sei lá, eu devo ter acordado de mau humor.

Vontade

Um amigo uma vez me perguntou o que seria pior, nada de vontade ou vontade de nada? Em outras palavras, é pior estar sem vontade, ou ter vontade de não ter vontade?
Isso tinha a ver com dois filósofos que ele estuda, e que faz muito bem, por sinal.
Mas eu não sei.
Estar sem vontade é algo comum, com preguiça não estar afim. Não significa que acabou a vontade, é mais uma pausa técnica.
Vontade de nada é é querer nada. É desejar o nada, desejar não querer. É quando ter vontade ter desejo, torna-se um empecilho, um incômodo.

Hoje, pela primeira vez em meses, acordei sem dor de cabeça. Sou uma pessoa somática: se me incomodo, me estresso, essas coisas, isso acaba me dando dor de cabeça (dor de barriga, insônia também, mas dor de cabeça é o top 10). E fico com dor de cabeça por preocupação, porque ontem foi um dia ruim, porque hoje tenho ansiedade.

Mas hoje a ansiedade parece ter ido embora (provavelmente com a chuva). Nada de ansiedade. X não apareceu, espero que apareça, mas não vou procurar. Não para evitar a dor de cabeça. Mas porque não tenho vontade. Não é que tenha perdido a graça, ou eu tenha desistido. Mas pareço ter ficado indiferente. Não a X, mas a não estar com X. Dificilmente X virá aqui em um sábado. Já veio várias vezes, mas X tem mais gente com quem conviver, com quem aproveitar seu sábado, eu imagino.
É como se, de repente, eu retomasse o controle da situação. Desapareceu a necessidade. Acho que é isso. Não indiferença, ou retomada de controle. Desapareceu a necessidade. Tudo está calmo. Os sons todos estão baixos, ou, pelo menos, o barulho do rádio e da TV não incomodam mais tanto. A luz do sol não está muito forte, e quando as nuvens destapam o sol, ele brilha de maneira menos violenta. Não que X tenha se tornado desnecessária. Mas não tem mais pressão, eu não tenho mais pressão (nada a ver com a pressão do sangue eu espero).

As pessoas falam em equilíbrio. Deve ser isso. Meu coração vai sorrir se X aparecer. E se não aparecer, vou dormir. Acordar. Depois eu vejo o que faço: tirar um filme, ler um livro, caminhar um pouco. Parece fim de filme, daqueles filmes com muitas explosões, tiros, helicópteros barulhantos, correria, pulos, aí corta para uma loira alta de maiô, uma camisa masculina aberta por cima, e um chapéu, caminhando sem pressa na praia, sem preocupação, é manhça bem cedo e não tem mais ninguém por ali. Calma. Sem dor de cabeça. Será que alcancei a maturidade? Que coisa idiota de se pensar.

Agora, estou sem vontade, ou com vontade de nada? Vontade de nada é querer o nada, deixar de querer. Sempre ouvi que o problema todo da vida é desejar. Mas desejar sempre foi, para mim, o mais divertido. Estar correndo atrás de algo, sempre alerta, os ouvidos em alerta, em pé. Querer. Andar longas distâncias a pé, passar muito tempo dentro de ônibus, ir adiante e não se deter porque é longe, difícil ou improvável. Sempre desejando. Sempre muito emocionante, mesmo que não desse para notar.

Não sei, mas parece que isso é bom, logo eu que sempre tive medo de não querer mais nada. De me acomodar. “Desdesejo” eu nunca tinha conhecido. É diferente, acho que eu já disse, de desistir. Não se trata de ter desistido, se trata de isso não ser mais um incômodo. “Incômodo” não. Se trata de não ter mais pólvora para me tirar do lugar, para não me deixar dormir, para estar sempre por conseguir algo, por ir em algum lugar, para voltar depois, ou voltar mas querer sair logo, para me movimentar. Agora, essa calma sem vontade. Sem o temor de estar perdendo algo.

Posso estar me precipitando, e acordar a mesma pessoa de sempre, novamente.

Mas estar assim, flutuando em nada, é realmente estranho.

Oz

Oz é um seriadinho que passava no SBT há muito tempo, e que, sei lá eu desde quando, voltou a ser exibido.
A história dele não é nada promissora: a vida em uma prisão masculina de segurança máxima.
Lá, os detentos se dividem em diferentes facções: os “chicanos”, os negros, os arianos (nazistas), os muçulmanos, e os italianos (acho que todos mafiosos). Tem também os desgarrados, que não estão em grupo algum, mas se ligam, às vezes, a tal ou tal grupo dependendo de seus interesses. Além dos detentos, os guardas a administração e um grupo que funciona como equipe de apoio (a irmã Peter-marie, o padre que eu não sei o nome, e a drª. Susan Neithan). A história é narrada por um preso cujo nome eu não lembro, mas é um ator negro de quem eu gosto muito porque seu rosto lembra uma amiga minha (mas ela não sabe disso).
Eu lembro que, um pouco antes de iniciar o seriado, o SBT colocava chamadas do tipo “se você tem nervos de aço, assista OZ” ou “se você tem problemas cardíacos, não assista OZ”, coisas assim. E é bem violentinho, com cenas do tipo dois guardas segurando o chefe dos chicanos, na solitária, enquanto um terceiro cortava os tendões de aquiles do preso, porque este havia feito o mesmo naquele guarda em algum momento, e isso impediu o guarda de subir de posto; ou então um preso, um dos desgarrados, muito valentão e seguro de si, que reencontra um cara por quem ele se apaixona (parece que já er apaixonado antes de ser preso) e estupra-o, e o detalhe é você fica no suspense, porque, na rua, ele matava os caras que comia porque ninguém podia saber que ele gostava de homens (mas esse ele não matou, na prisão). Muitos gritos e sangue. Socos, pontapés, presos que estão se recuperando até que vem alguém e mata a mãe ou o irmão do cara e ele se vinga e se perde na recuperação, coisas assim. É bastante tenso o programinha.
O que é mais interessante são as relações que os presos estabelecem. Uma hora, os italianos e os chicanos se unem contra os nazistas e matam um deles, aí vem uma resposta dos nazistas, que matam um dos negros (alguns presos são amigos de todos), aí os negros e os muçulmanos se aliam aos chicanos e italianos e ocorre uma guerra de proporç~es enormes no presídio. Semanas depois, os nazistas se aliam aos chicanos para controlar o tráfico de heroína no presídio, até que um preso põe um grupo contra o outro e fica ele no controle do tráfico, e daqui a pouco os guardas resolvem dar pau em todo mundo porque tá muito baginçado.
Todos eles estão condenados a penas longas, ou estão a tempos esperando marcarem a data da sua execução (que demora a vir porque têm muitos recursos, e os protestos dos ativistas anti-pena de morte), assim, a maioria são velhos conhecidos, gente que um dia quase se matou, e no outro viraram amigos íntimos, depois se afastaram sem maiores problemas, etc.
É, me parece, uma mini-reprodução da sociedade ali: as relações que se estabelecem, as amizades que se formam, as injustiças que acontecem: os nazistas, por exemplo, sempre escolhem alguém para ser a “mulher” do chefe do grupo; às vezes, pegam alguém que já era travesti mesmo, mas sempre são violentos com a criatura; que no mais das vezes são simpáticas. Os presos estabelecem relações também com os funcionários, ou fazem coisas como o líder dos muçulmanos estava tentanto fazer: abrir uma gráfica dentro de OZ, para poder publicar o livro do falecido Augustus Hill (é esse o cara que narra, ele já morreu na série mas ainda é o narrador). As relações ali dentro estão em constante mudança. quem assiste o seriado sabe quem é cachorro e quem é de confiança, mas às vezes se surpreende com o que os personagens fazem.
é legal enfim.

Boas notícas copiadas de outros lugares

Poesia é arma para combater ‘gerundismo’

Valor Econômico – 3/1/2007 – por André Borges e Talita Moreira
“Através de um longo caminho, quem viveu um dia viu. Do papiro ao pergaminho, a comunicação então surgiu.” A primeira estrofe animou Evandro Grenzi, 25 anos. Sentindo-se inspirado, o coordenador de atendimento da TMS Call Center deixou o telefone de lado para se debruçar sobre as palavras. Buscava uma poesia para participar do concurso literário organizado pela empresa. Venceu. Em 20 de outubro, data tida como o Dia Nacional do Poeta, o jovem Grenzi, fã de Clarice Lispector, recebeu como prêmio um vale-brinde da Livrarias Saraiva, alguns livros de poesia e materiais de escritório. O concurso realizado pela TMS é apenas uma das atividades que a empresa adotou para minimizar o chamado “gerundismo” e de outros atentados cometidos contra a língua portuguesa. (copiado daqui: http://www.verdestrigos.org/agora/2006_12_31_archive.asp#116795324509647896)
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Vou estar ficando feliz se esta mania estiver pegando. Tomara que esteja vingando.

Esperança

“Espera” tem o som de “expéra”. Poderia ser uma ex-pêra – uma pêra que tenha virado, talvez, uma maçã? A palavra, assim, parece contrariar aquilo que significa: ex-pera; “ex”, aquilo que não é mais (ex-presidente, ex-chefe), com o sentido de externo (por isso “ex”clusão, “ex”terno, “ex”odo), sempre para fora; péra, contração vulgar de “pára”, “péra aí”, pára aí, pare, stop. Ex-péra: fora de parar, exclusão de parar, fora de parada, externação de parar, colocar-se fora do estado parado. Mas estar fora desse estado parado é não estar em estado parado, é movimentar-se.

Será que, de alguma maneira, movimenta-se quando espera-se? Esperar será um movimento?

Talvez. Eu poderia não esperar. Desistir. A desistência é a verdadeira parada. Imóvel. Imoblidade. Movimentar-se, talvez, para outros lugares. Mas parar aquele lugar. Fechar aquela porta. Ai não haverá mais movimento. Talvez a espera seja como a parada que o braço de quem arremessa algo faz: o braço vem todo para trás e, antes de retornar para a frente, para lançar o objeto, precisar parar para trocar o sentido do movimento. A espera também compõe o movimento, afinal.

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Eu te vi. Tu disseste “mais tarde eu apareço”. Eu fiz “o_O” mas confiei. Espero. Não posso ir onde tu estás – já nem sei se está onde disseste que irias, e se me quisesses lá, teria dito. De fato, não estás aqui (embora eu não saiba explicar como podes estar mais presente do que todas as pessoas que estão comigo nesta casa). Eu estou aqui, esperando. Te esperando. Poderia estar te procurando. De plantão em frente a tua casa, apertando no botão que tem o número do teu apartamento. Mas posso estar sendo demais – já me ouviste dizer, duas vezes, que odiaria ficar sobrando, e que me dissesses se fosse esse o caso: eu desapareceria antes que percebesses, sem dramas. Mas nunca disseste. Por isso não faço este movimento. Faço outro movimento (dentre tantos que poderia). Faço o movimento de espera. Te espero. Não chegas, mas te espero. São 23:30, mas te espero. Tenho nojo de baratas, mas estou aqui, assistindo Joe e as Baratas, te esperando. Não paro. Espero. Sei que não vens. Mas espero.

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Um horóscopo (agora fico com a mania de dividir as palavras e inventar um significado: hóros-copo. O que significará? Será algo semelhante a es-copo? Mas eu também não sei o que é escopo) que eu li dizia que a parte mais emocionante de um… bem, um relacionamento, era a espera, a indefinição: será que vou te ver hoje? (existem, certamente, outros tipos de espera: esperar chegar do trabalho, esperar acordar, esperar dormir) Bom, já me conformei a não te ver mais por hoje. Será que vou te ver amanhã?

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Passatempo enquanto se espera

e s p e r a
s p e r a e
p e r a e s
e r a e s p
r a e s p e
a e s p e r

Lista de mim

Uma pessoa que não sabe amar.

Uma pessoa intrometida.

Uma pessoa que delira a realidade ao mesmo tempo em que vive nela, sem desprender-se dela.

Uma pessoa estranha (item importante, não sai em hipótese alguma).

Aceita-se contribuições afim de aumentar a lista. Adoro listas.
Faço lista de supermercado. Lista de tarefas a cumprir.
Lista de livros lidos. Porquê não uma lista de mim?