Ah, é por isso que a foto do meu perfil é aquela mão: tem um monte de linhas, algumas delas são a linha da vida, outras linhas inúteis, outras linhas não sei do que, um monte de caminhos.
Porquê "minha geografia?"
Eu gosto das minhas dúvidas e indagações: elas só tem alguma relevância para mim (me, yo, moi).
Por exemplo: porque “minha geografia”? (isso quer dizer que ninguém vai nunca se matar, largar a faculdade, largar o emprego, matar o presidente nem nada disso com as minhas respostas – só, possivelmente, eu).
Eu poderia falar da minha história: porque eu sou assim e não assado? Porque eu gosto do que gosto e não gosto do que não gosto? Como meus pais me criaram? Qual a influência da vida conjugal deles na minha? Isso é psicologia barata, e eu gosto também de psicologia barata, mas é bom variar às vezes. “história” é história, e minha biografia interessa só a mim – aliás, eu a acho muito interessante.
Além disso, uma história tem muitos nuances: agregada à minha história, tem a história dos meus pais, das minhas irmãs, dos bichos aqui de casa, da minha casa, dos meus avós, dos meus amigos, dos meus vizinhos, da minha rua, da minha cidade, estado e país (sem contar o planeta e mais além ainda), da minha formação, muita coisa.
“Mas, claro,” você diria, “sua besta: por isso selecionamos“. Sim, sim. Mas como selecionar? Que critérios utilizar? Li um livro de Foucault, um francês-careca-gay-inteligente-filósofo-falecido (não necessariamente nesta mesma ordem). Ele falava em fazer séries de séries, e dispor estas séries segundo uma série. Eu não entendi, então isso não me ajuda muito.
Aí vem a geografia: quando você faz um mapa, você mapeia determinadas coisas. Um mapa rodoviário é um mapa das rodovias, um mapa hidrográfico aponta os rios, um mapa das pizzarias da cidade mostra (dã) as pizzarias da cidade. Mas, além do óbvio: um mapa é muito mais claramente selecionável. “Imparcialidade” é um mito, ninguém é imparcial. Até os nêutrons tem o seu lado – que não é o lado do elétron nem o do [esqueci o nome]. E qualquer história tenta ser imparcial. Eu deixo bem claro que sou parcial. E a melhor maneira de ressaltar essa parcialidade é fazer um mapa meu.
Determinados assuntos não entram aqui, outros sim, alguns mais frequentemente, outros menos. Quando me perco, vira a bagunça que está.
Eu imagino que a minha vida tem diversos caminhos concomitantes, tipo diferentes frentes de trabalho: tem a filosofia, tem minha vida em casa, minha relação com as outras pessoas (cada pessoa uma relação diferente), meus gostos, minhas opiniões, minhas experiências (quem vê pensa mesmo que é muito experiente a criatura…), essas coisas. esses caminhos todos às vezes se cruzam, se influenciam, se afastam, mas cada qual tem seu curso próprio. Minha vida em casa influencia na minha vida em relação à filosofia. Mas eu não estudo esse ou aquele livro porque hoje não tem patê para o meu pão, por exemplo. Por outro lado, às vezes leio menos porque o supermercado estava lotado e eu cansei lá.
Se eu fosse me definir, eu desistiria e iria dormir, porque não gosto de me definir – eu sempre traio as minhas definições e elas nunca são completas, de qualquer modo. Sou uma pessoa muito imprecisa. Eu sou sempre quase isso. Mas nunca é bem isso. Mas uma coisa parecida com uma dfinição é: eu me componho de diversos caminhos (não só disso, claro). “Diversos caminhos” não quer dizer que eu vou para diferentes lados ao mesmo tempo, ou que me divido em várias posições. Não quer dizer algo como “diversas tentativas” ou “não me encontrei”.
Eu quero dizer que, por exemplo, no amor eu só me dou mal, mas nos estudos, não. O que não me impede de mudar radicalmente o curso dos meus estudos e me manter nesse caminho desastroso de erros no amor (ai que romântico – auto-zoação). Eu poderia dizer que atuo em diversos campos: mas quando estou na faculdade, não estou em casa. Quando saio de noite, não estou nem em casa nem na faculdade. E não quero dizer que estes lugares estejam em mim. Uso muito, mas prefiro evitar metáforas – ainda mais uma metáfora piegas dessas, como “meu lar vive em mim” ou “eu não estou: os lugares é que estão em mim”: tosco e sem sentido.
Por isso me constituo (não exclusivamente) de caminhos. Esses caminhos formam traçados: fazem curvas, interrompem-se, pegam atalhos, voltam, dão guinadas inesperadas, formam círculos. E o desenho que se forma sou eu – que medo de dizer “sou eu”, mas vá lá… Pelo menos, é parte do que sou eu, prefiro dizer assim.
Eu, propriamente, é bom deixar claro especialmente paraa mim que às vezes tenho surtos engraçados de megalomania, não sou um caminho. Mas me constituo deles. Eu não sou a filosofia, nem constituo a filosofia, mas a filosofia tem um traçado em mim. Não sou o fracasso nem o sucesso, mas ambos têm caminhos em mim.
Os meus amores, por exemplo, deixaram um traçado em mim, e em algum ponto do meu mapa está lá, uma linha tocando a linha de outra pessoa. Ás vezes eu procuro algo no mapa. Mas não na minha história: um olhar inesperado e marcante de milésimos de segundos que eu troquei com alguém na rua não é uma história – mas o traçado do meu olhar tocou o traçado do olhar de alguém, e esse desenho está lá, no meu mapa. Imagine se eu fosse considerar a relação da minha história com os romances que li!
“O livro ‘As Aventuras de Tom Savyer’ marcou muito minha vida. Li-o e vivi aquelas histórias em minha imaginação. Quem lê, viaja”. Além de ser uma coisa chata, tooooodas as professoras falam isso para seus alunos e deve ser por isso que às vezes as crianças se revoltam (às vezes as crianças merecem minha solidariedade: imagine passar quatro horas inteira com uma pessoa dizendo “nhénhénhé”, “agora, vamos pintar a Turma da Mônica”… Ô tédio!!…). As coisas que eu li me marcaram de maneiras diversas: esse livro que disse ali em cima, por exemplo, não me influenciou em construir barcos, em desvendar mistérios, em encontrar tesouros, nada. Mas estimulou meu gosto para ler romances. Eu não teria o que falar dele se fizesse a “História da Minha Formação Literária”: o livro (que esses dias fui reler) é chato, mal-escrito, muito comunzinho. Mas foi importante para mim. Por causa da influência que teve em certos traçados da minha vida. De maneira bastante indireta (mas essencial), por exemplo, ter lido aquele livro fez com que eu não me tornasse a coisa tosca que meus parentes projetavam para mim. E isso não pelo conteúdo, ou pelo estilo, mas porque eu gostei quando li e li mais dizentos outros para ver se achava um parecido, na época. essa não éa versão completa, mas serve de exemplo.
Por isso “minha geografia”: são os caminhos – alguns dos caminhos – que me constituem.
sobre o post abaixo
Eu gosto dos meus textos. Menos por narcisismo, e mais porque eu gosto do que escrevo. Não porque fui eu quem escrevi, quero dizer. Mas tenho conexão discada. Aí resolvi parar de gastar dinheiro nas lanhouses e comecei a escrever coisas à tarde para postar depois da meia-noite. E fica uma droga. Na hora o texto ficou legal, mas reli o que escrevi depois que postei e achei tosco. Sei lá, acho que textos – os meus – tem que ser que nem pastel, xis, suco de laranja: só fica bom quando é feito na hora.
Fútil
Acho que descobri que sou uma pessoa fútil.
Tudo começou com meu travesseiro. Fazem anos que eu tenho esse travesseiro. Já viajei com ele para muitos lugares, já esqueci, encontrei, carreguei, babei e dormi muito nele. Ele já estava fino como papel de jornal. Aí eu comprei um traveseiro novo. Fiquei muito feliz com esse travesseiro novo. Ele é de tecido, azul com umas traços brancos na horizontal e na vertical, é bem gordinho e não esquenta muito. É ótimo!!
Depois veio a toalha. Onde esteve meu travesseiro, esteve minha toalha. Anos de uso, ela deve conhecer meu corpo como ninguém. Ultimamente ela tinha mais buracos do que pano, mas ainda secava muito bem. Além de células mortas do meu corpo, ela tinha também restos de tintura de cabelo, um pedaço chamuscado, uma parte encardida e não tinha mais etiqueta. Por isso, comprei uma nova, amarela-mingau, toda felpuda com muitas bolinhas em relevo, maior do que eu – acho que consigo me tapar com ela.
Por último, a maior compra que devo ter feito na minha vida (com excessão do meu certificado de filosofia, se bem que este é parcelado, enquanto que minha última compra foi à vista): um DVD. Um aparelho de DVD, e não uma fita, claro. O outro antigo, fazia “rrrrrrrr” meia hora antes de começar a tocar o DVD, trancava a fita quando bem entendia (acho que depois de tantos filmes que reproduziu, o aparelho adqiriu senso crítico e, quando não gostava de uma cena, trancava o filme em protesto), não abria a bandejinha, e nem o controle funcionava mais. Era um daqueles grandes, todo quadradão, cinza, com números digitais e cheio de coisas em inglês. Esse de agora é bem pequeno – já vi livros maiores que ele -, quase todo branco mas cheio de detalhes em diferentes tons de cinza, um monte de luzinhas (uma de minhas disfunções da infância: aparelhos eletrônicos, para mim, têm que ter luzinhas que piscam para tudo), a fita entra por cima, tipo aqueles CDs portáteis, o controle é do tamanho de uma carteira de cigarro, e ele não é todo reto, e sim cheio de voltinhas, meio arredondado, e os botões ficam na parte de cima, e não na frente. E as coisas vêm em português!! Nada mais de “loading”, “search”, “resume” e “no disc – insert a disc”: agora é só “lendo”, “abrir”, “selecione a opção…” O português não é “A” língua. Gosto muito de espanhol e de francês. E inglês eu sei que preciso aprender um dia. Mas não há nada como saber o que um aparelho está fazendo, e entender o que ele diz.
Por isso eu descobri que eu sou uma pessoa fútil, futilíssima!! Na Espanha, mais uma esposa foi morta pelo marido, e os latinoamericanos que moram lá estão em conflito com alguns xenófobos. Está acontecendo um FSM na África. O Irã está endurecendo contra a ONU, e a Europa, endurecendo contra o Irã. A América Latina está pegando fogo. A China começou a brincar de lançar mísseis espaciais. E a minha maior preocpação é se eu devo colocar meus CD-Rs do Manu Chao e da Fernanda Abreu para tocar no meu DVD.
E acho que não, pode estragar.
Um pouco de biologia amadora.
Vi um comentário em um blog do que estão ali em cima que, pode ser que eu tenha interpretado mal, mas que me parece ser um exemplo do pior tipo de coisa que a espécie humana consegue produzir. As espécies adaptam-se às necessidades surgidas no contexto em que vivem. Eu não sei que tipo de contexto faz com que desenvolvam-se seres calhordas. Você vê, por exemplo, gatos calhordas? Não. Você consegue imaginar um habitat em que o mais apto é o mais calhorda? Calhordice não é o mesmo que esperteza. Um ser calhorda é como um verme, um parasita nocivo dos seres de sua própria espécie. Uma pessoa calhorda é um ser repugnante. Você sente o cheiro da calhordice de longe (por isso eu posso ter interpretado mal, sou fumante e fumantes possuem narizes um pouco deficientes). E sente vontade de vomitar, e um dos melhores digestivos contra a ânsia que esse tipo de vermes provoca é analisar esse tipo de verme. Um santo remédio.
Primeira coisa sobre isso: “puta” pode ser ou não um xingamento (segundo motivo pelo qual eu posso ter interpretado errado). Conheço muitas putas que sentem-se elogiadas quando as chamam de putas (embora elas saibam quando dizem “puta” em forma de elogio, e quando “puta” é um xingamento). Você pode chamar alguém de puta, portanto, sem ofender. Mas, a princípio, você precisa ter uma certa intimidade com a pessoa para chamá-la de puta querendo elogiá-la (terceiro motivo pelo qual eu posso ter interpretado errado: vai que a criatura que eu estou classificando como verme é amiga de quem escreve o blog e eu estou xingando quem não devia – bom, aí o que eu escrever não se aplica à pessoa para quem eu escrevi, mas escreverei do mesmo jeito porque, no mínimo, isso se aplica a outras pessoas no mundo que, se conheço, já esqueci e espero não lembrar).
A seleção natural age diretamente sobre indivíduos, e somente indiretamente sobre uma espécie. Isso quer dizer que são os indivíduo que se adaptam (ou nascem melhor adaptados que outros) ao contexto em que vivem. Por isso é que eu me pergunto como a calhordice pode ser um fator de vantagem para um indivíduo na espécie humana. Posso talvez estar utilizando o termo “calhorda” de maneira errada, mas por “calhorda” quero dizer algo como “um parasita que parasita sua própria espécie de maneira nociva”.
Claro que, dessa maneira, pode ser uma vantagem evolutiva ser calhorda: um indivíduo calhorda não é nada, não tem forças para sobreviver ao ambiente em que vive, nem para sobreviver ao convívio com os outros indivíduos de sua espécie. Aí ele parasita um ou mais indivíduos para sobreviver. A seleção, como eu já disse, se foca sobre o indivíduo: é a sobrevivência do indivíduo que sempre está em jogo. Por isso, talvez, seres calhordas consigam, afinal de contas, serem sucessos genéticos: parasitando outros indivíduos, eles conseguem se reproduzir e transmitir assim seus genes calhordas. Mas isso é ruim para os indivíduos parasitados.
Eu tenho sérias desconfianças sobre esta conversa de que o que importa é a conservação da espécie. Nunca vi uma mariposa lutando pela conservação da espécie. Ursos panda não movem uma palha pela conservação da espécie, quem se preocupa com isso é o Greenpeace. Os indivíduos preocupam-se com a própria sobrevivência e “sepá” (como diz minha irmã) com a sobrevivência de alguns outros indivíduos mais próximos. Preocupar-se com a preservação da espécie não é um, digamos, imperativo biológico. Somente os padres defendem isso (porque é um bom argumento para o casamento heterossexual e para a manutenção do cristianismo, afinal, é do maior interesse da igreja preservar a humanidade para que a igreja possa destruir mais pessoas, ou para que a igreja possa conduzir mais pessoas para o reino de deus, você que escolhe ver a igreja de um ou de outro modo). Claro que um indivíduo pode decidir conservar a espécie por outros motivos: por gosto, por simpatia à espécie, por acreditar que sobreviverá em sua descendência, por nada, enfim, nada de mais. Mas isso é lá com o indivíduo. O que existe de natural nesta conversa é que indivíduos existem em um ambiente – e em todo um contexto que vai além do ambiente, um contexto que compreende também o social, o imaginario, etc – e que diferentes indivíduos têm diferentes aptidões para sobreviver neste ambiente: alguns indivíduos sobrevivem ao ambiente, e outros sucumbem a ele. Portanto, o indivíduo calhorda não se salva nem com o argumento da manutenção da espécie: pois alguém poderia dizer que, sendo parasita, o calhorda, assim como as baratas, seria um dos tipos que, em caso de catástrofe ou hecatombe*, poderia manter a existência da espécie humana, pois sobreviveria. Mas é mais provável que o indivíduo calhorda acabe com a espécie, consumindo cada indivíduo até esgotar todas as suas fontes de sobrevivência. Portanto, já que a manutenção da espécie não é nenhum imperativo, nenhuma obrigação; e caso alguém decida fazer dessa manutenção uma obrigação, terá obrigação de eliminar os indivíduos calhordas. Por isso, eliminar esses indivíduos é uma solução bem atraente. Mas tem mais desvantagens do que vantagens: o indivíduo calhorda poderia, em sua calhordice, conseguir com que fossem eliminados indivíduos não-calhordas em seu lugar; também correria-se o risco de eliminar, por outros motivos, um indivíduo nã-calhorda como se fosse um calhorda; em terceiro lugar, perderíamos um equivalente humano às baratas – mas, por mais nojentos que sejam esses bichos, é uma ofensa às baratas equivalê-las a calhordas; é melhor desconsiderar esse terceiro motivo.
Tenho vários motivos para não dizer onde foi que encontrei o ser calhorda que me levou a analisar esse tipo: não pedi autorização para quem escreve esse blog para falar dele aqui; também não sei se, de repente, o comentário não foi recebido simpaticamente (eu posso muito bem ter interpretado mal – sei bem a diferença entre “puta” e “puta”); por fim, o último motivo que tenho para não dizer onde foi que encontrei a coisa calhorda é, também, a atitude mais saudável para com esse tipo de parasita: ignorar. Tive de fazer esse texto, mas eu falo aqui da calhordice em geral, e não do clahorda em particular – que bem pode não ser calhorda, afinal de contas. Ás vezes é necessário atitudes como essa de remexer na lixeira da espécie humana, como quem utiliza veneno de cobra como vacina para o próprio veneno. Mas não vou dar audiência ao calhorda em questão (tudo o que ele quer é atenção, é uma forma de parasitar os outros) nem ao seu blog. Também não vou querer que as pessoas vão visitar algum dos meus links para ver coisas calhordas – são links muito bons e existem centenas de milheres de motivos saudáveis para visitá-los, senão não estariam ali. Mas espero que esse texto ajude no trato e na lida com indivíduos calhordas. Tipo como uma referência para não se ficar doente por causa desse tipo de parasita, sei lá, ou um manual – não exaustivo – contra certas doenças.
*eu nunca entendi bem o que é “hecatombe”, mas gosto da palavra e parece que ela tem algo a ver com desgraças ou coisas assim.
Lei
Vi no Jornal do SBT que um homem matou a mulher, e foi se entregar à polícia. Não entendi bem porque, ele não poderia ser preso – acho que por ter se entregado. Então ele foi em outra delegacia, a mesma coisa. Por último, ele foi em uma delegacia do tipo “central das delegacias”, alguma coisa assim. E, de novo, disseram que ele não poderia ser preso – a menos que ele fugisse, aí sim.
Eu não sei o que pensar, sinceramente. Acho que a pior coisa, mesmo, é que, provavelmente, se o cara tivesse atropelado uma tartaruga em uma estrada que passasse por alguma àrea de conservação, ele conseguiria ser preso. Segundo um tio meu, se você estiver em uma estrada que passe por uma área de preservação ambiental e atropelar um bichinho, vale a pena atirar no policial que for prender você, caso você queria evitar problemas maiores: se lhe prenderem por ter atropelado o bicho, você pega muitos anos de cadeia e não poderá pagar fiança, mas se lhe prenderem por ter matado o policial, você poderá pagar fiança. Não sei se isso não mudou com esse novo Código Civil. Não deve ter mudado, pois se uma pessoa mata a esposa e não pode ser preso quando vai se entregar, qualquer bizarrice penal é coisa pouca.
Overman
Eu sou fã do Overman. Ele é um super-herói com capa, uniforme, identidade secreta e tudo o que tem direito. Mas é engraçado. Ele divide um beliche com Ésquilo, que tem muito mais inteligência do que o super-herói.
Essa tirinha é muito idiota, mas desde a primeira vez que eu li ela no jornal – só muito tempo depois eu fui encontrar na internet, no site do autor, eu acho – eu sempre acho graça. Sei lá, deve ser algum tipo de reflexo condicionado. Eu acho que gosto de coisas retardadas às vezes. Eu queria muito escrever alguma coisa inteligente sobre isso, mas eu só consigo achar graça mesmo.
Era isso
Resoluções de ano novo
Vou me dedicar, daqui para a frente, a escrever sobre coisas menos angustiantes que opressão, coisas políticas, coisas sexuais, coisas feministas, coisas assim. Preciso de uma vida mais leve, é verão, preciso ser mais low prolife. Mais “flores na cabeça, nossos pés descalço-ô-ô-ôs, nossa vida toda-a-a-a, de paz e amor” e menos “não sei o que é direito, só vejo preconceito, e a sua roupa nova, é só uma roupa nova, você não tem idéias, prá acompanhar a moda, tratando as meninas, como se fossem lixo, ou então espécie rara, que só a você pertence, ou então espécie rara que você não respeita…” etc.
Vantagnes em ser pobre
É Simples – Você não perde o seu precioso tempo com grandes sonhos e se contenta com um sonho da padaria no almoço e um Sonho de Valsa no jantar.
É Saudável – Você tem uma vida de atleta, correndo pra alcançar o ônibus, malhando pra conseguir um lugar pra sentar e se alongando pra passar por baixo da catraca.
É Anti-Estressante – Nenhum vendedor te liga pra empurrar alguma bugiganga porque, além da sua conta estar negativa, você não tem telefone!
É Aliviante – Com a sua fama de pé-rapado, nenhum amigo te pede dinheiro emprestado e, dependendo do seu grau de pobreza, eles nem serão mais seus amigos.
É Emocionante – Você nunca sabe se o dinheiro vai chegar até o final do mês e, assim, tem uma rotina muito menos previsível!
É Invejável – Enquanto os seus vizinhos farofeiros viajam, pegam trânsito no feriado e sofrem com as praias lotadas, você descansa na comodidade do seu barraco.
É Útil – Você tem de trabalhar aos domingos pra fazer hora-extra e, assim, não precisa assistir aos programas que são campeões de audiência de encheção de saco.
É Seguro – Você não precisa levar a carteira para todos lugares que for, pois ela está sempre vazia. Assim, os trombadinhas vão passar longe de você!
É Gratificante – Sem dinheiro pra acessar a Internet, você nunca vai ler textos cretinos como esse.
Os maus, muito maus
Hoje eu vi um pedaço de um filme japonês antigo de lutinha (só faltou um “Querido Diário,” no início dessa frase). Apesar de japonês, é estrelado por negros – mas “filme japonês antigo de lutinha” é um gênero, e será “filme japonês antigo de lutinha” mesmo que seja estrlado por Chuck Norris, Edi Murphy ou Angelina Jolie. Não conheço muito este tipo de filme. Sei que vêem na esteira de Bruce Lee, e que ficam muito engraçados com Jackie Chan. Só reconheço mais ou menos, a estética do filme, que tem aqueles quimonos parecidos com terninhos, uma escola de luta, a vaorização da honra ou qualquer valor cultivado por antigos (quaisquer que sejam os antigos, que vão desde lendários samurais até o sr. Miaggi – não sei se se escreve assim, talvez eu esteja confundindo com Maggi, ou miojo), e um grupo mau, muito mau, que oprime um grupo bom, muito bom.
O grupo mau, muito mau vai a extremos: ou se veste com roupas muito legais, ou muito debilóides. O grupo mau, muito mau do filme que eu vi era uma mistura de carnaval carioca com Mortal Kombat: penachos nas cabeças, estampas de oncinhas e coletes cheios de cortes diferentes. Sendo um grupo mau, muito mau, eles são realmente maus: humilham as pessoas mais fracas e aproveitam-se da nobreza dos nobres – que no fim do filme perdem a paciência, descem do salto e brigam.
O grupo bom, muito bom é bonzinho. Trabalham de dia e aprendem a lutar à noite. Encaram a luta como arte. Fazem daquilo um aprendizado para elevar seus espíritos aos mais altos patamares que um espírito iluminado pode alcançar sem sair do corpo nem virar Buda. Controlam suas reações, já que são verdadeiras máquinas de guerra que podem matar alguém com sua força e conhecimento (mais ou menos como a Liga da Justiça que passa no SBT atualmente). São bonzinhos.
Mas eu queria falar mesmo era dos maus, muito maus. Os maus, muito maus são muito inocentes, às vezes. O líder dos maus, muito maus adora ser adulado (“O” líder é sempre um homem – mas o líder dos bonzinhos também é). E os seguidores do líder são discípulos fervorosos, fiéis e obedientes. Amam seu líder. São inocentezinhos.
Acho isso engraçado porque, não tanto os filmes, mas esses dois grupos (os maus, muito maus e os bons, muito bons) fizeram parte da minha, sei lá, formação de vida.
Tenho diversos motivos para me indispor com coisas como igreja e exército. Mas os motivos iniciais que tive foram a identificação com esse amor fervoroso que os maus, muito maus têm pelo seu líder. O líder dos maus, muito maus é inquestionável, todo-poderoso, brabo, grita, sabe de tudo e tem necessidade de ser constantemente louvado. E eu odeio isso. Não consegui, é verdade, me identificar nunca com os bons, muito bons: eles são muito chatos. É uma vida muito tacanha ser parte dos bons, muito bons. Não estou fazendo apologia à loucuragem, à porralouquice, etc. Mas as pessoas sentem coisas, dizem “puta que o pariu” e são um pouquinho más, às vezes. Nada do tipo ir quebrar o restaurante japonês do inimigo, quero dizer. Mas levar uma vida de bom, muito bom é chato. Eu sei porque eu já tentei e tudo o que aprendi foi que existe o tédio, o Tédio, o TÉdio, o TÉDio, o TÉDIo e o TÉDIO, e mesmo o TÉDIO não é o maior nível. A vida dos maus, muito maus, também é chata, porque também é parecida com a vida na igreja ou no exército: uniformidade, uma pessoa como ideal de vida, obediência, e ilusão de ser “fodão”. O máximo que um fodão consegue é ser um “fofão” – trocadilho forçado, mas eu tenho essa mania besta. Desculpem, fico até sem jeito.
Mas os maus, muito maus – voltando a eles – são a coisa mais dvertidas desses filmes, hoje em dia, para mim. Porque são patéticos. Os bonzinhos são voluntariamente patéticos. Mas os maus são descolados, são super, são “fodões”. E tudo o que conseguem realmente ser é patéticos.
Pode ser que pensar assim seja uma auto-crítica, ou algum tipo de vingança contra pessoas do meu passado (se você tiver uma abordagem psicanalítica do que eu disse, guarde-a para si, detesto psicanálise). Mas que eu me divirto, eu me divirto.
Aí eu penso: “mas esse filme está muito tosco”, e troco de canal. Paro na novela O Profeta, quando uma cabeça (sim, somente a cabeça) conversa com a personagem principal (uma loirinha que apanha do marido) e diz a ela que ela deve cuidar muito bem da criança, porque esta criança vai trazer luz ao mundo, enquanto que ela, a personagem, está sentada, acariciando a barriga em um misto de congestão e felicidade, e os efeitos especiais toscos da Globo colocam um brilho saindo da barriga dela – o mesmo brilho, aliás, que circunda a cabeça falante. Em primeiro lugar, essa conversa de “filho que vai trazer luz ao mundo” tem, no mpinimo, dois mil anos de idade, e eu não acredito que ainda não tenham enjoado desse roteiro – ou será que esta novela é uma forma moderna de contar a vida de Jesus, o Profeta? Em segundo lugar, nada do que uma cabeça flutuante me fale eu vou acreditar. Imagine: eu estou em casa, e aparece uma cabeça falando comigo!! Ou eu corro, ou eu tenho um acesso de riso. Ou eu cumprimento: “E aí Cabeção!!”.
Prefiro voltar ao filme de lutinha, onde o cara mau, muito mau, agora lança raios… Quem dera eu lançasse raios, para usar meus superpoderes nessas redes de TV chatas e sem criatividade e graça nenhuma.
Borges
“Jorge Luís Borges armou um hábil jogo intelectual com a idéia do original e da cópia. No conto ‘Pierre Menard, autor do Quixote’, o narrador copia um trecho do romance de Cervantes. Trata-se do mesmo texto, sendo outro, porque o leitor do século XVII não é o leitor do séxulo XX.”
Eu nunca pude falar desse texto (Jorge Menard, autor do Quixote) antes por um motivo muito simples, muito bobo, tão besta e tão bobo que até parece uma coisa muito complexa: eu não conseguia explicar o texto, sem citar praticamente o texto todo. Não é que eu não tenha entendido, é que eu nunca consegi explicar esse texto.
E é uma idéia, ela também, tão simples, que parece difícil – e foi por isso que eu copiei o trecho acima de uma revista. Pierre Menard copia um trecho do Quixote e quer apresentar o que escreveu como sendo de sua autoria. Além da referência que o autor do artigo faz à diferença entre os leitores do século XVII e os do século XX, o narrador do conto, Pierre Menard, mostra outra diferença: imagine que ele, Pierre, escreveu no século XX um texto típico do século XVII. Ele não copiou D. Quixote, ele reescreveu. Mas reescreveu mantendo cada palavra, cada letra como estava no original – certamente um texto muito diferente dos textos atuais. Utilizou um espanhol antigo, já em desuso, um estilo antigo, cenas e costumes passados. Nem Cervantes escreveu uma obra assim, já que, quando escreveu D. Quixote, o espanhol que usou, as cenas e costumes que descreveu, o estilo que desenvolveu, eram contemporâneos.
Esse conto de Borges vale, para mim, antes de mais nada pela genialidade muito simples. Pelo menos para mim: eu, se tivesse tido essa idéia, diria em duas linhas que um romance antigo copiado e publicado hoje, seria diferente porque está inserido em outra época, em outro contexto. Sou uma pessoa simplória, no fim das contas.
Mas J.L. Borges teve uma idéia genial e escreveu o texto de maneira genial também.
Além disso, é um texto que funciona muito bem nos dias de hoje, em que se fala muito em direitos autorais: até que ponto um texto é inédito? Um dia li um texto do Luís Fernando Veríssimo (por quem tenho certas reservas, mas me divirto lendo) em que ele fala de escritores que citam algum trecho de algum livro na introdução: ele (LFV) se perguntava porque ele não poderia citar, por exemplo, todo o Dom Casmurro na introdução, e escrever depois uma história com dois parágrafos? Reneé Magrite tem um quadro que se chama (ou eu acho que se chama) Ce nes’t pas a pipe (“Isto não é um cachimbo”, e não confie na minha grafia em francês), que consiste no desenho de um cachimbo e, abaixo do desenho lê-se “isto não é um cachimbo” (escrito em francês); outro quadro de Magritte é o mesmo desenho, mas dentro de um quadro apoiado em um tripé e, acima do quadro, um cachimbo enorme. E se eu (em um excepcional rompante de artista, porque não sei pintar) pintasse um quadro que representasse o quadro de Magritte na sala da minha casa (um quadro muito ficcional, portanto, pois não tem nenhum quadro de Magritte na sala da minha casa)? E se outra pessoa pintasse outro quadro que representasse o meu quadro na sala da casa dela? E mais outra representasse o quadro anterior ao lado de uma garrafa de Coca-cola?
Na Wikipedia discute-se muito se deve-se adotar ou não o fair-use. Todo conteúdo cedido à Wikipédia deve ser, necessariamente, livre de direitos autorais. Mas se eu copio algo de outra pessoa sem permissão, estou infringindo seus direitos autorais, portanto, não se enquadra na licença da Wikipédia. Porém, quem defende o fair-use defende que os direitos autorais são direitos menores diante do direito à educação e à informação, e que, portanto, vale a pena copiar material alheio e colocar na Wikipedia. Eu até seria a favor disso, se a licença da wikipedia não liberasse o uso do seu material, também, para fins comerciais. Sou completamente a favor do copyleft e essas coisas todas, mas desconfio muito quando alguém vem querer ganhar dinheiro em cima do trabalho dos outros – coisa que eu faria se eu tivesse oportunidade, pelo menos enquanto eu não acertar uma Mega Sena acumulada. O problema nem é ganhar dinheiro em cima do trabalho dos outros – se meu trabalho pudesse render dinheiro também a outras pessoas, bom para elas. O problema é que se você, por exemplo, copia um texto protegido com copyright para a Wikipedia, arrisca a vir alguém e ganhar dinheiro com seu texto, enquanto que você não ganha.
Claro que isso é uma enorme hipocrisia social: é justamente isso que acontece com quem trabalha em chão de fábrica, por exemplo. A pessoa que monta os tênis que serão vendidos não é a autora daqueles pares de tênis que montou? Ou, no mínimo, co-autora, junto com a pessoa que projetou? O estivador não é o autor do carregamento da carga que carregou no navio? A secretária que redigiu a ata de umareunião não é a autora do texto que reproduz o que foi dito na reunião? Essas pessoas não recebem direitos autorais pelo que fazem, e sim um salário que permite abrir um crediário e parcelar a conta do telefone quando vem alta. Eu iria gostar de receber direitos autorais pelos memorandos e relatórios que faço: alguns são, modéstia à parte, pequenas pérolas.
Mas tudo isso foi só para falar daquele texto do Luís Borges, que é muito bom. A coisa boa em descobrir estes textos ótimos tardiamente – se eu me interessasse, poderia ter lido tudo isso quando era adolescente e ficava rateando na rua – é justamente descobrir estes textos hoje em dia. É muito bom achar novidades assim para ler.
Mais Monique Wittig
Eu ia dormir e chegar no trabalho na hora. Mas desisti.
O que quer dizer o texto da Monique Wittig (eu só posso falar desse texto porque só existem livros dessa autora em francês, e eu até me viro com um “bonjour” ou “je ne se pa”, mas ler um livro não funciona)?
Coisas óbvias: compreendemos o mundo a partir de determinadas categorias. Isso Kant já disse, é teoria do conhecimento. Que Kant tenha fundado tudo em um modelo pré-fabricado baseado na Física, Hegel já disse – e Hegel é mau, apesar disso.
Compreender o mundo a partir de determinadas categorias é você dividir o cinema em, por exemplo, Hollywood e o resto. Você consegue isolar produções holywodianas de todas as outras, mas terá de ignorar que cinema brasileiro é muito diferente do iraniano, e, se levasse isso em conta, já seria outra categorização, e não mais Hollywood X o resto. Ou você poderia dividir sua compreensão do cinema entre documentários, filmes de ação, romances água-com-açucar, comédia, etc. Ou de qualquer outra maneira. Mas são compreensões diferentes do cinema. Se alguém dividisse o cinema em “Hollywood X o resto”, iria dizer que “Acossado” está no mesmo solo que “Deus e o diabo na terra do sol”, e podem até estar, mas não completamente. Mas, para essa pessoa, os dois seriam filmes igualmente chatos, e seria difícil conversar sobre cinema com alguém que pensasse assim. Isso porque sua categoria de “o resto” é uma mesma coisa, e eu teria que explicar as diferenças, e quando pensássemos em um exemplo de filme com boa fotografia, esta pessoa pensaria em Matrix, e eu, em cinema iraniano. Explicação complicada…
Outras categorias: isso se encontra em Deleuze, mas ele transforma tudo em rizomas, quer dizer, em vez de uma rede bem-delineada, com caminhos desenhados, até talvez tortos, mas objetivos; ligações esperadas, ligações inesperadas, caminhos que se cruzam de maneira surpreendente, surpreendentes não-ligações, como as raízes de gramas. Ou seja, tudo bem, há categorias, mas por mais que determinadas categorias sejam sobrevalorizadas, consideradas “corretas”, ainda assim surgem outras categorias – por isso é que, por exemplo, uma pessoa pode “pensar homossexualmente” em uma sociedade de “pensamento heterossexual”.
Mas qual a categoria predominante na maneira como se pensa a sociedade? “Uma mulher”, por exemplo, forma uma categoria em que entra muita gente portadora de determinadas características. E, socialmente, “uma mulher” “casa” com “um homem”. “Uma mulher”, “casar” e “um homem” são categorias “feitas umas para as outras”, na nossa sociedade.
Por isso que a autora diz, no fim do texto, que uma lésbica não é uma mulher. Tudo bem que, hoje em dia, mesmo a criatura mais preconceituosa sabe que a Cássia Eller é uma mulher (aliás, era). Mas esse “uma lésbica não é uma mulher” significa que “mulher mesmo é assim”, e “mulher mesmo”, hoje em dia, para a maioria das pessoas, é quem cuida da casa, dos filhos, do marido, do emprego fora de casa, e ainda tem tempo de se embelezar, faz regime, faz escova de chocolate etc. Imagine que horror uma mulher que não queira ter filhos. Aceita-se uma lésbica porque ela quer casar – mas aí se inventam teorias aos montes sobre “porque ela quer casar com uma mulher?”, quando ninguém se preocupa com os motivos que levem uma mulher a casar com um homem, a não ser que isso, indiretamente, ajude a descobrir porque certas mulheres querem casar com mulheres. Isso é uma categoria, e por mais que a categoria “mulher” seja a coisa que mais muda no mundo e na história, ainda assim uma mulher precisa portar-se como mulher.
Um outro exemplo, espero que mais claro: porque professores ganham mal? Porque o magistério é uma profissão feminina, e toda mulher tem um homem que a sustenta. Simples assim. E, ainda por cima, a maioria das pedagogas ainda ajuda a manter esse estado de coisas…
São categorias findamentais: por mais que a categoria mude, ainda assim as pessoas obrigam-se a enquadrarem-se nelas.
O que a autora aponta, particularmente, é que uma lésbica não é uma mulher porque mulher se casa com homem. Mas isso é no tempo dela – certo, muita gente hoje pensa assim, mas a situação é bem diferente de 1980. De maneira mais geral, porém, ela aponta que não importa o que você seja, você será ou dentro do grupo “mulher” ou do grupo “homem”, e toda a sociedade é pensada a partir disto. Qualquer coisa que se faça, se faz com base nesse filtro.
Fala-se em literatura feminina, em moda masculina, em profissões femininas… E é esta categorização, é esta divisão entre homens e mulheres que está na base de qualquer opressão – machista, homofóbica, racial, o que quer que seja. Mesmo coisas unissex são fruto desta divisão. “Tênis” é um calçado unissex. Mas vá na prateleira e não será difícil diferenciar os tênis masculinos e os femininos – se for difícil, peça um tênis rosinha-meigo tamanho 42, ou um daqueles cheios de parafernálias e cores berrantes que piscam e sei-lá-mais-o-quê tamanho 35.
George Orwell
Os big brothers masculinos (tenho um certo prazer em falar deles como animais, tipo uma arara macho ou um pintassilgo fêmea, mas eu também assisito o programa) tiveram de se vestir de mulheres e fazer um desfile para as big brothers fêmeas. Esse foi o castigo que a produção deu a eles, depois que um dos big brothers masculinos disse que até tinha um amigo viado, mas que se a viadagem começasse a se aproximar dele, ele dava porrada.
Primeiro: você ter um amigo homossexual (uma amiga lésbica, um amigo “viado”) não é atestado de pessoa-politicamente-correta (sim, porque se você tem que invocar suas amizades com homossexuais para dizer que não tem problema com a homossexualidade dos outros, é porque, provavelmente, você tem sim problema com a homossexualdade dos outros e só quer ser uma pessoa politicamente correta). É sinal de que você suporta aquela pessoa apesar da homossexualidade dela. Eu tenho muitos amigos que fazem direito, o que não atenua meu preconceito contra pessoas que fazem direito, por exemplo. Se você tem que dizer “olha, eu não tenho nada contra, mas…” é porque tem sim. Quem dá muita explicação sobre alguma coisa é porque tem culpa no cartório, e eu sou um dos maiores exemplos disso.
Segundo: a coisa mais idiota que a globo poderia ter feito era esse desfile com esse povo. Eu posso estar dizendo besteira, mas ninguém quer que as pessoas se vistam de mulher ou virem todas homossexuais. Se uma pessoa tem algum tipo de homofobia, problema dela, merece ser espancada se bater em alguém, merece o meu desprezo se levar a sério essa homofobia mas duvido que alguém deseje que uma pessoa assim vire homossexual. Porque? Bom, homossexualidade não é castig. Se vestir como mulher não é castigo. Imagine a pena de um tribunal: “você foi condenado a dois dias de relações sexuais homossexuais, em regime semi-aberto”!!! E se vestir de mulher foi castigo da globo para aquele povo. Se quisesse castigar o cara que disse aquilo, bastava bater nele, pronto. Isso sim é uma coisa nociva, e não se vestir de mulher. Além do mais, se “puniram” as declarações homofóbicas do cara, reforçaram o status de inferioridade feminina: eles só tiveram que ser mulher por algumas horas – imagine as pobres coitadas que tem que ser mulher o tempo todo. Devem ter sido pessoas muito más na outra encarnação.
Uma das coisas mais nojentas que eu já vi foi um grupo de homens em um bar, um dia, todos vestidos de mulher, juntamente com suas esposas (também elas vestidas de mulher), fazendo a maior algazarra, caricaturizando mulheres e travestis. Isso é parecido com algo como “dia do contrário”, que nem no desenho do Corcunda de Notre-Dame. Só que uma travesti, e o povo LGBTERFDSA em geral, não é constituído de Quasímodos. Não são aberrações, falhas da natureza. Não um arquivo X para a Scully e o Mulder resolverem. Aqueles caras do bar ficaram somente um dia vestidos de mulher, e só para zoar – pobre dessa gente que tem um pau no meio das pernas (ouoperou) e passa o dia inteiro vestido de mulher. Vamos zoar essa gente também, porque pessoas normais vestem-se segundo seu sexo.
Não me preocupo com a mensagem que a globo possa ter passado, mas com a mentalidade, com as idéias implícitas na reação da produção do Big Brther: homossexualidade é um estado de excessão. Sim todo mundo sabe que a socieade vê as coisas assim mesmo. Mas assusta perceber o quão difundida essa mentalidade ainda está. Assusta incomoda muito ter certeza de que o problema é maior ainda, do tamanho que eu pensava que era.
Monique Wittig
Por outro, não podemos viver sem ele. Todas as pessoas sabem que ao som do tiro segue-se uma bala. Todas as pessoas sabem que açucar da diabetes. Todas as pessoas sabem que se pular do décimo oitavo andar, morre. Isso é sabido até mesmo por quem nunca levou um tiro, teve diabetes ou pulou do décimo oitavo. E dificilmente alguém vai arriscar-se a provar se isso é verdade ou não. Isto também são preconceitos.
Trata-se, então, de saber quais são os preconceitos opressivos, “injustos”, nocivos. Em geral, são os preconceitos que depreciam as pessoas. Nego é de pouca confiança. Lésbica é depravada, gay, além disso, é aidético e pedófilo. Alemão é nazista. Novela da Globo é boa, livro do Paulo Coelho é “edificante”.
Como se faz este processo?: você cria categorias, e características que caracterizam elementos desta categoria. A partir daí, você passa a colocar dentro desta categoria qualquer elemento que possua uma ou duas características próprias daquela categoria. Lésbica é depravada “Ai, imagine, ela lambe a buceta da outra” diz uma mulher que possivelmente não tem sua buceta labida pelo seu garanhão, apesar de isso ser tudo o que ela queria. “Ui, aquele nego é fedido”, diz uma pessoa branca que sustenta a Rexona e a Avon. Uma mulher que lamba a buceta da outra, uma pessoa cujo fedor é pressentido mais do que sentido, são pessoas fora do que se espera de pessoas “de bem”.
Mas estes são exempos até meio infantis – ainda que muito disseminados.
A questão é que categorizamos. Até aí, tudo bem. O problema é levar a sério estas categorias. Categorias são uma ficção, um modo de pensar. Se podemos ou não fugir da categorização é outro problema. O problema é naturalizar o que é cultural, convencionado, criação.
“Negro” é uma pessoa com grandes quantidades de melanina na pele. Uma pessoa bronzeada pelo sol teria direito a ser Miss Negra 2007? Pais brancos descendentes de negros que gerem uma criança negra são uma família de que cor? Um branco, descendente tanto de alemães quanto de negros, tem o direito de celebrar Zumbi dos Palmares como quem celebra alguém de sua própria raça? Faz diferença a cor da minha pele? E a cor dos meus olhos? E a cor dos meus cabelos pintados? Só porque a Daniela Cicarelli é idiota eu vou deduzir que todas as pessoas que têm seis dedos nos pés vão, algum dia, tentar me impedir de usar o You Tube?
Mas é de se imaginar que exista alguma categorização “primordial” na sociedade. Qual será?
Pois as categrias se interpolam, se misturam demais. Entre homo e heterossexuais, existem bissexuais e transexuais. Entre brancos e negros, existe uma enorme gama de cores – e mais ainda o bronzeamento, o bronzeamento artificial e o pó-de-arroz. Entre os bons e os maus, existem os desesperados e os cínicos. De certa maneira, por mais que ainda existam pessoas que creiam ferrenhamente no mundo categoricamente ordenado, não há como sustentar estas categorias. Só os EUA ainda vêem todo árabe como um terrorista em potencial – mas isso é paranóia debilóide, antes eram os comunistas, antes ainda eram os negros, há pouco tempo eram os “chicanos”… (um rápido comentário deslocado: esta paranóia é a principal arma nas mãos do Bin Laden: é mais do que óbvio que, estimulando o paranoicismo norte-americano e voltando-o contra os árabes, boa parte do mundo antipatizaria com os EUA). Com excessão do governo norte-americano, portanto, é difícil alguém levar realmente a sério as categorias. Mesmo as pessoas mais preconceituosas não conseguem mais, hoje em dia, serem livremente preconceituosas (isso não minimiza, é claro, a situação: por mais que vivamos em uma sociedade menos preconceituosa, ainda assim homossexuais são espancados, humilhados, ridicularizados ou, simplesmente, são vistos como extraterrestres, o que torna aquele “menos” quase insignificante).
Sobre qual categoria fundam-se todas as categorizações sociais? Ou, perguntando de outra maneira, qual categoria resiste, como de fosse de adamantium (nota para quem não assiste ou lê X-Man: adamantium é o que reveste o corpo de Wolwerine, e é o metal mais resistente de que se tem notícia, sendo, mesmo, indestrutível – e não se diga que “ah, x-man é ficção pura”: o enredo todo gura em torno do preconceito e da intolerância, coisas tão reais quanto o vidrinho para onde você olha agora*)? Qual categoria ainda não deixou de ser, e que pauta mesmo as transformações sociais que aconteceram ou estão em curso? A categoria “sexo” ou “gênero”: a diferença entre homem/mulher.
Não se trata de defender que liberou geral, todo mundo pelado agora, êêêê!!! Mas sim que esta ainda é a mão que mais oprime – e que só é sentida por minorias, negros, mulheres, lésbicas, pobres, etc (“pobre”, como se sabe, não é uma minoria, mas é oprimida como tal). Isso, essa diferenciação, essa categoria, esta convenção naturalizada, está na base de – isso é uma hipótese – todos os preconceitos, de toda a opressão que ainda resiste.
Pequenas provas indiretas disto: bissexuais são discriminados inclusive por homossexuais (não todos, preciso dizer isso mesmo?). Travestis são discriminados inclusive por gays (“por causa deles é que pensam que a gente quer ser mulher”). Pessoas andróginas são discriminadas por tutti quanti. Porquê? Bissexuais ficam tanto com homens quanto com mulheres – não “escolhem” um sexo de sua preferência, passam por cima disso. Travestis nascem homens e querem tornar-se mulheres – “escolhem” um sexo de sua preferência, mas passam por cima da barreira interssexual. Pessoas andróginas não querem ser do sexo oposto, apenas não apresentam-se como sendo de qualquer um dos dois – passam por cima, também, do “menino ou menina?”.
Claaaro que devem existir bissexuais que tenham alguma preferência por algum sexo. Muitos travestis consideram-se uma espécie de “terceiro sexo”. E só conheço pessoas andróginas de ouvir falar – e, também, o David Bowie numa de suas fases – portanto, sei lá qual é que é. Mas esse povo são exemplos deminorias dentro de minorias – o que quer dizer que mesmo minorias ainda dão tiros no próprio pé, alimentando o pensamento hetero.
“Pensamento hetero” não significa “agora todos devemos ser homossexuais”. Significa naturalizar a diferença entre os sexos. “Meu mundo pode ruir, todas as diferenças acabarem, todos os conceitos se transformarem, mas um homem será sempre um homem, e uma mulher, uma mulher”. Dito em termos filosóficos (filosofia metafísica, mais precisamente): “pensamento hetero” significa ontologizar a dicotomia entre os sexos. Não se trata de dizer que o fato de uma pessoa gostar de ter um relacionamento heterossexual é um horror e por isso que a coisa está ruim do jeito que está. Se trata de dizer que esta classificação sexista é nociva. Pressupor algo a partir do que uma pessoa tem no meio de suas pernas é nocivo. Gostar do que uma pessoa tem no meio de suas pernas é diferente, e uma pessoa pode gostar de qualquer coisa, e não gostar de qualquer coisa, e, ainda por cima, gostar de certas coisas em certas situações e não gostar em outras, e mais outras tantas possibilidades. Gosto é gosto e, por mais que eu ache que se discute, o fato de eu gostar disso ou daquilo não signifca que você tem que gostar também (é muito interessante discutir o gosto, independente de concordar com o gosto alheio ou não, mas eu estou figundo do assunto).
Pensamento hetero é a categoria mais estanque de que dispomos atualmente. Você pode questionar tudo, dizer que a ciência é resultado de uma moral (Nietzsche), dizer que não existem raças, que não existem verdades, que deus morreu, que o papa é pop, virar o Andy Wharrol (não se escreve assim), beijar meninas e meninos, não beijar ninguém, largar o último semestre de medicina e virar hippie, o que for. Mas que homem é homem, mulher é mulher e são duas coisas muuuuito, completamente, (o pior) intrinsecamente diferentes, não interpoláveis, que “mulheres são de marte, homens são de vênus”, que cperebros femininos funcionam diferente de cérebros masculinos, que mulheres são maternais e homens são mais ativos, isso, esssas coisas, nunca podem ser postas em questão.
Por isso, por essa recusa de colocar esta diferenciação em questão, lésbicas continuarão a serem aceitas mais como fetiches masculinos do que como uma coisa qualquer como qualquer outra coisa, gays continuarão a apanhar na rua (lésbicas só não apanham porque “em mulher não se bate nem com uma flor”, mas homens estão autorizados a mostrar para elas que o problema delas é falta de homem), cor de pele continuará sendo uma insignifcância determinante, mulheres prosseguirão sendo pessoas que tem a obrigação de cuidar da casa e homens pessoas que tem a obrigação de serem “H”omens, e por aí vai.
*duvido que alguém o faça, mas se você imprimir este texto, substitua ” o vidrinho” por “a folinha de papel”