Idéias

Idéias

Soltas
Perdidas entre idéias
Idéias de nada
Idéias de tudo
Idéias que entram e saem
que fazem encontros promissores
ou então se reúnem só para se divertir
Um som fragmentado – um fragmento de som
Uma cor
Uma imagem e um cheiro caracteristico
Uma cozinha com uma despensa
repleta de
idéias
sensacoes
idéias de idéias
idéias de sensacoes
senscacoes de idéias
selvagens como os cavalos que nunca pudemos montar.

O Pensamento Hetero

Às vezes é bom falar de um texto que você leu a muito tempo. Não é didático nem instrutivo, pois você não sabe o que está inventando, o que está esquecendo e o que está falando corretamente. Mas é bom para ver o que ficou do texto.

Ele se chama O Pensamento Hetero, e a autora, Monique Wittig.
O que lembro bem do texto é simples: a sociedade, a cultura em que vivemos hoje não é só sexualmente hetero, mas seu próprio pensamento é hetero, na sobrevalorização da diferença, do diferente, dos opostos que se atraem, yin e yang, essas coisas. Aí vem a homossexualidade para mostrar o valor da semelhança, da igualdade, amor entre iguais, eu sou você e você é eu, etc.
Aí vem o que é genial no texto dela – o único que encontrei em português (eu queria muito ler outro, não traduzido, chamado “one not born a woman”, como meu inglês é tosco e eu só traduzi o título em português, que é o que eu me lembro,  eu quis escrever ali entre as aspas “ninguém nasce mulher”, que foi um texto comemorativo a não sei quantos anos do Segundo Sexo, essas festinhas intelectuais que a gente vai para ver gente nova, ganhar horas no currículo e, quem sabe, achar uma palestra que preste). Enfim, o parêntesis saiu pelo ladrão, mas o que é genial no texto dela é identificar na sociedade um pensamento hetero. Não digo pela sobrevalorização da diferença (sem querer descartar esse aspecto), mas a sociedade é mesmo hetero.
A Mary Mezzari escreveu um texto cujo título era “Porto Alegre é gay”, e é mesmo, São Francisco também, muitos lugares são gays. Mas vivem dentro de um pensamento hetero, especialmente heterossexual.
Claro que a partir daí, o dia em que ela ficar famosa, se ficar, vão querer descobrir o pensamento homossexual, o pensamento homossexual masculino, o pensamento lésbico, o pensamento bissexual, o pensamento lésbico-mas-curto-um-pau-de-vez-em-quando, o pensamento sou gay mas me apaixonei pela vizinha, o pensamento bissexual predominantemente homo, e por aí vai. Haja gente para enfiar em tantas categorias. Mas enfim.
Vivemos em uma sociedade hetero. Poderia ser uma sociedade homo, ou bi. Mas vivemos em uma sociedade que não valoriza a sexualidade de preferência à orientação sexual; que não valoriza a liberdade de amar quem se quiser de preferência a amar  determinado tipo de pessoa, e isso é um pensamento hetero. O pensamento hetero precisa e muito se justificar a todo instante – por isso que é tão importante transmitir genes adoidado por aí, ou pelo menos corroborar a idéia de que a sexualidade está em função da reprodução (homens gostam de mulheres ancudas, mulheres de homens  “provedores”, essas mutilações de Darwin que inventam, quer dizer, descobrem cientificamente). Nada contra que, um dia, uma sociedade bata no peito e diga “queremos manter a espécie”, mas não vá responsabilizar os genes por isso – pobres genes, culpados por tudo, desde a beleza até a ladroagem… 
Claro, isso não é a heterossexualidade. Não necessariamente. A heterossexualidade adota esse tipo de pensamento não porque esse tipo de pensamento está no “gene heterossexual”, mas sei lá porque motivo adota e esse é o fato. Poderia adotar outro, é uma contingência que aconteceu, uma possibilidade concretizada.
Eu lembro de quando eu era, digamos, mais jovem, eu tinha esperanças de que os homossexuais revolucionassem a sexualidade de uma tal maneira que em algum tempo já não haveria mais sentido em classificações assim. Claro, o ideal seria que eu fosse homossexual ao invés de ficar esperando os outros realizarem minhas projeções. Mas o que os homossexuais fazem hoje em dia? Justificam sua sexualidade, discorrem sobre as vantagens dela, encontram “genes homossexuais”, criam produtos homossexuais. Exatamente como funciona o pensamento hetero. 
Não sei em que, exatamente, Monique Wittig pensava quando se referia ao pensamento hetero, mas eu vejo esse pensamento como essa cristalização de uma possibilidade que vemos hoje. E que se expande para a homossexualidade, a ponto de um lado corroborar o outro – não na orientação sexual, mas na absolutização da orientação. 
Claro, claro, há excessões, tanto entre heterossexuais como entre homossexuais e os bissexuais também que são sempre esquecidos, coitados. 
Mas, assim como  há um certo feminismo que é fruto e mesmo um produto masculino (resgate da feminilidade, coisas do tipo) , há também uma homossexualidade hetero. 
Só espero que, um dia, ficar com alguém não seja – e nem precise ser, como é necessário hoje –  uma bandeira, um partido.

Tempos modernos

Estou lendo, para um grupo de pesquisa, um livro chamado Modernidade Líquida. A idéia central do autor é identificar a modernidade pós-revolução industrial como uma sociedade cada vez mais “liquifeita”. O liquido serve como metáfora que representa a enorme mobilidade, a velocidade das mudanças e transformações a que nos sujeitamos, em contraposição a um passado onde as mudanças eram lentas. Mas o principal não são as grandes mudanças históricas, e sim as “micro-mudanças”, as relações interpessoais, sociais, trabalhistas, etc, todas elas pautadas pelo ritmo líquido da sociedade: o que vale para hoje pode não valer para amanhã, o que valia há duas horas atrás pode não valer agora – e se vale agora, pode não valer mais daqui a meia hora. Isso é menos o que diz o autor e mais aquilo que eu compreendo. 

Mas eu sempre vi essa flexibilidade quase infinita da sociedade como algo inevitável, e também como alguém desejável: viva o tempo em que é possível a convivência entre pessoas, seja no mesmo prédio, na mesma rua, no mesmo bairro, com costumes e valores diferentes, em que as pessoas não precisam ser todas tão iguais umas às outras para conseguirem se relacionarem – se forem iguais, tudo bem, e se forem diferentes, não se parte do princípio que é melhor nem tentar. Eu não quero fazer um elogio à diferença, mas sim à mudança. Melhor um mundo onde tudo é questionável do que um mundo onde a lei e a ordem são os pilares inabaláveis da vida – às vezes às custas da própria vida.
Por isso sempre julguei que Modernidade Líquida fosse um chororô ultrapassado pela perda dos valores antigos, algo como minha vó dizendo que no tempo dela tudo era melhor e dando como exemplo o silêncio que todos faziam à mesa enquanto o pai e a mãe dela, ou algum convidado que fosse adulto, conversavam. Claro que tudo precisa de organização, de ordem, mas a ordem deve existir em função da vida, e não a vida em função da ordem e da lei. Enfim, me pareceu um livro chato e um autor chorão.
Agora, nada a ver com a pesquisa, estou relendo alguns livros de Marion Zimmer Bradley. Ela escreveu uma coleção com uns dez livros sobre um planeta chamado Darkover, que apesar de ser classificado, com muita justiça, aliás, como ficção científica, não deixa de ser, tanto quanto ficção científica, literatura, digamos, social. Não deve existir esse termo, mas é algo do tipo os romances de Sartre ou de Anaïs Nin, que tanto são literatura quanto análises sociais. São livros de ficção científica com todo direito a esta classificação, mas estão mais para A Náusea do que para Star Wars, digamos assim.
Dentro desta série, existem três livros que formam uma pequena sub-série , uma pequena trilogia dentro da série maior, que se encaixa dentro desta, mas também tem uma certa independência e dá para ler separada: A Corrente Partida, A Casa de Thendara e A Cidade da Magia. Como é sábado e eu estou com preguiça, não vou resumir os livros, mas, bem por cima, eles falam das Amazonas Livres de Darkover que, por meio de um juramento, comprometem-se entre si e para com todas as mulheres que necessitem, a apoiarem-se mutuamente. Como diz uma das personagens do livro, é uma descrição muito incompleta do que representa o juramento e a vida das Amazonas, mas se nem a personagem consegue explicar direito, eu também não vou tentar ir além. 
Na história contada nesses três livros, uma das personagens, Magdalen Lorne, acaba sendo obrigada a fazer o juramento das Amazonas, que compromete quem jura a ser fiel às outras que fizeram o juramento e a todas as mulheres que precisem do seu suporte. Apesar de ter feito o juramento sob pressão (era jurar ou morrer), ela assume mesmo assim aquilo para com o qual se comprometeu, a ponto de ser oferecida a ela a oportunidade de desobrigar-se e ela negar essa desobrigação. Por causa desse juramento, em determinado ponto da história, ela se vê instada a ir atrás de uma das companheiras de juramento que seguiu grávida e emocionalmente abalada,  à cavalo, em direção às perigosas e escuras florestas do planeta – e que fez isso em cumprimento da palavra empenhada também, diga-se de passagem. 
Essa história, ou essa parte da história me fez entender, mais ou menos, a reclamação do autor do outro livro, Modernidade Líquida. Tudo, nessa modernidade líquida, se desfaz rapidamente, inclusive compromissos que seriam, a princípio, de longo prazo. “Longo prazo” para nós, hoje em dia, são dez anos. Ninguém mais garante a manutenção de nada por uma vida inteira, ou às custas do sacrifício de algum interesse posterior. O futuro é sempre desconhecido, e as pessoas, sem saber se no futuro virão fatores mais interessantes do que os atuais, comprometem-se, mas somente enquanto o ambiente for favorável à mantenção do compromisso. Se entrarem em cena coisas que tornem o compromisso inconveniente, o compromisso será o primeiro a ser sacrificado, como os peões no jogo de xadrez.
Eu não quero pregar um retorno aos casamentos até que a morte os separe e nem o fim da possibilidade de se revogar compromissos em geral. Mas, por exemplo, se antes um casamento nunca poderia ser dissolvido, hoje em dia ele já nasce dissolvido, quaisquer dez anos de namoro são comemorados como se valessem cinco vezes mais. Não quero que as pessoas parem de se separarem – especialmente porque isso foi um direito conquistado a duras penas – ou rebaixar coisas que durem cinco ou dez anos como coisinhas de nada. Mas se antes as pessoas eram obrigadas a se sacrificarem pela manutenção obrigatória do compromisso, hoje são obrigadas a se sacrificarem pela obrigação da mudança. Pulou-se de um extremo ao outro, da rigidez do compromisso ao total descomprometimento com tudo. Ou quase tudo, pois apenas os compromissos financeiros são devidamente respeitados, cobrados e exigidos. Então eu me corrijo: trocou-se a obrigação de respeitar qualquer compromisso pela obrigação de respeitar a eoconomia – tanto é assim que tudo bem se você jogar lixo no chão, vão lhe olhar de cara feia mas nada mais do que isso, mas se você experimentar atrasar uma parcela que seja daquilo que você comprou à prazo, foi para o SPC e adeus crédito. O crédito que predomina é o financeiro.
O meu problema não é com a economia ou com o dinheiro, mas sim com a falsidade da perspectiva de que vivemos mesmo em uma sociedade líquida (e acho que o autor de modernidade líquida vai dizer o mesmo, mas ainda não sei) . Não vivemos em uma era de mudanças rápidas e velozes, não vivemos em uma era de transformações e coisas assim coisa nenhuma! vivemos em uma era onde, como sempre foi, as pessoas continuam se sacrificando, literalmente se matando em prol de algum valor que não seja a vida, ou mesmo uma pessoa de quem se goste. Uma época era por Deus, depois pela honra e pelos costumes, depois a família, sei lá, mas hoje em dia é pela economia. Se antigamente chegava-se ao absurdo de uma mulher espancada pelo marido não ter o direito de se separar pela honra do compromisso, hoje em dia os netos dela precisam trabalhar 10 ou 12 horas por dia (sim, porque mesmo que você trabalhe 8 horas, tem uma hora de intervalo para o almoço, mais o tempo que você leva se deslocando entre sua casa e o trabalho, mais o tempo em que precisa dormir para ter condições de trabalhar no dia seguinte, etc), muitas vezes 6 dias por semana, somente para pagar contas.
Fundamentalismo por fundamentalismo, não estamos em condições melhores na modernidade do que nos primórdios do capitalismo e nem mesmo do que no período pré-capitalista.

Hillary ou Palin? Pallin ou Hilary?

Segundo um site cujo nome agora não me lembro, mas é um periódico feminista em espanhol, o debate atual entre as feministas norte-americanas é: apoiamos Sarah Palin?
O dilema é o seguinte: o feminismo foi construído em cima de determinados valores, que são, de maneira geral, a melhoria das condições de vida femininas, e, de maneira particular, a defesa do direito ao aborto, à homossexualidade sem preconceitos e com proteção do Estado e etc, e a valorização social e proteção estatal a coisas exclusivamete feminas, quase todas relacionadas à gravidez (além do próprio direito ao aborto, condições dignas de gravidez e de parto, de concepção, de proteção contra a grevidez, e também coisas relativas à saúde , etc), e também tooooda a complexa questão social, como emprego, salários, cuidados com a casa, enfim, essa não é uma lista exaustiva das exigências do feminismo e nem um resumo do mesmo. Mas já serve para diferenciar do que representa Palin: uma dona de casa conservadora – anti-aborto mesmo em caso de estupro, provavelmente contra homossexualidade e todas essas coisas. Então, para deixar claro o dilema: serve enfiar qualquer mulher na Casa Branca, ou é melhor esperar mais um pouco e o quanto for necessário para colocar lá uma representante das reivindicações feministas?
Eu pensava que isto já tinha sido decidido com o episódio da Hillary Clinton: na maior oportunidade que houve até hoje de os EUA serem presididos por uma mulher, muitas feministas disseram que como representante das mulheres ela não serve – muito machona, brigona, parece até um homem, portanto, ela representa mais valores masculinos do que femininos.
Claro que o feminismo tem muitas vozes: tem desde a Margarita Pisano defendendo um recuo tático das mulheres para elas decidirem, só elas, o que elas querem fazer e quem são, até mulheres dizendo que o cristianismo é o maior movimento feminista do mundo e que feminismo é viver na luz de Cristo (com todo respeito ao cristianismo, é o pior tipo de feminismo que há, na minha opinião – aliás, com todo respeito ao feminismo também porque, a rigor, eu não posso opinar sobre o feminismo porque é uma responsabilidade exclusivamente feminina a luta feminista, mas de qualquer jeito eu sempre acabo dando opinião igual).
De todo modo, a única observação que eu queria fazer é: o feminismo tem, na minha opinião, muito trabalho pela frente no mundo, (não só) porque quando aparece uma mulher que não parece a Dona Florinda, todas as pessoas sentem-se no direito de questionar a sua feminilidade, e quando aparece a Sarah Palin, que governa um estado com a mesma eficiência com que governa o lar, questiona-se tudo, menos ela ser mulher. Digo isso por duas coisas.
Uma: a feminilidade é uma coisa criada pelos homens. Por mais que digam que não, são as mulheres que decidiram que delicadeza é coisa feminina e deixa a “diamantice não-lapidada” para os homens (ou decidiram, ou é da natureza feminina…), nada me convence que um modo de ser tão generalizado e inquestionável é um retrocesso, acho maldoso ouvir coisas como, por exemplo, que a Cássia Eller podia ser tudo, menos mulher (porque ela cuspia no chão, coçava “o saco”, etc) – não acho que uma machorra seja menos mulher do que a Penélope Charmosa.
Duas: eu gosto muito do feminismo, simpatizo com o feminismo, defendo o feminismo na medida do possível, se me convidarem eu vou lá junto queimar os sutiãs que eu não uso mas tamos aí para dar apoio (é só força de expressão, é claro que se alguma louca me fizesse mesmo esse convite eu não ia) – mas se a tarefa do feminismo é formatar as mulheres e recriar os modelos obrigatórios de “isso é coisa de mulher”, “isso não é coisa de mulher”, aí, pela primeira vez, eu teria de ser anti-feminismo.
(nós próximos posts, voltaremos aos meus dramas emocionais na nossa programação normal)

Adeus

Suponho que “adeus” tenha surgido da seguinte forma: duas pessoas vão se despedir, e entregam a outra a Deus. Se for assim, então talvez a idéia completa fosse “te entrego a Deus”. Mais ou menos como um “fique com Deus” ou “vai com Deus” (minha vó diria “que Deus te proteja”, mas ela costuma se contentar com um “te cuida” – minha vó merece um post uma hora dessas).

Eu sempre considero um adeus como um tchau definitivo. Quando alguém morre, por exemplo. Adeus,  nunca mais nos veremos. Claro que uma das duas ou as duas pessoas podem acreditar em vida após a morte – mas pelo menos não se verão aqui na terra.
Quando duas pessoas não têm nenhuma perspectiva de encontrarem-se tão cedo, novamente. Uma delas vai viajar, por exemplo, ou vai morar em outro lugar.
Mas é sempre a mesma lógica : não nos veremos mais.
Um tchau é diferente: nele está implícito algum prazo, mesmo que indefinido, de reencontro: tchau, até amanhã; tchau, até mais. O adeus não tem prazo. Nunca mais nos veremos, ou, pelo menos, não esperamos nos reencontrar tão cedo.
Pode ser que as pessoas não esperem se reencontrar por motivos apenas óbvios: vamos ficar muito distantes e não frequentaremos mais os mesmos lugares, e também é muito longe (quer dizer, caro ou demorado ou ambos) para ir visitar. 
Mas agora, com e-mail, MSN e Internet em geral, ficou mais estranho dizer adeus por causa da distância. Porquê dizer adeus se poderemos trocar e-mails todos os dias e falar no MSN? Claro que mandar um abraço ou um beijo não é abraçar ou beijar. Mas mandar um beijo ou um abraço é legal tanto de mandar quanto de receber, mesmo pela internet. Enfim, não é um adeus.
Acho que o adeus restringiu-se a duas pessoas não esperarem se reencontrar tão cedo por falta de interesse de se reencontrarem. Não é bem falta de interesse, mas sim intenção. Adeus, é só uma hipótese, quer dizer “não quero mais te encontrar”. 

Delírio

Há tempos atrás, meu sentimento de bem-estar somente acontecia quando reconhecia o teu bem-estar. Minha alegria era a tua alegria e o teu sorriso me deixava feliz não porque era belo, mas porque por ele eu supunha a tua felicidade. Aprendi mais tarde a ser feliz com outras coisas – inclusive minhas – além de ser feliz apenas com a tua felicidade.

Em todo esse tempo, todas as minhas idéias e todos os meus atos somente tinham sentido se fossem para o teu bem. Quando isso revelou-se uma prisão, decidi não deixar de procurar a tua felicidade, mas também a minha. Não deixar de me prender a ti, mas a me soltar em mim – e descobri assim que te sentia dentro de mim.
Descobrir que tua felicidade não dependia de mim não me machucou, pelo contrário, me libertou. Você há de concordar que é uma responsabilidade muito grande ser responsável pela felicidade de aguém. Seria arrogância se eu não aceitasse que tua felicidade não dependia de mim, mas quando descobri aceitei, e pude ser responsável apenas pela minha felicidade e pelo desejo de que fosses feliz. Pois onde eu não pudesse te fazer feliz, darias um jeito, e por isso eu fiquei duas vezes feliz (uma por mim, outra por ti).
Decidi apenas te acompanhar: se estivesses feliz, eu também estaria, se não estivesses, eu ficaria um pouco mais triste, mas sempre queria estar ao teu lado, para comemorar, para lamentar, ou apenas para ficar sem fazer nada. 
Não esperava que a minha felicidade fosse para ti o mesmo que a tua felicidade era para mim. Eu já não era mais responsável pela tua felicidade – aliás nunca fui – e só podia desejar a tua e ser responsável pela minha. Nem mesmo esperava que a minha felicidade te deixasse feliz. Isso estaria muito bem assim.
Mas nunca pensei que a minha infelicidade fosse para ti tão pouca coisa. Quer dizer, a minha tristeza era melhor mesmo que não fosse também a tua – mesmo que a tua fosse também a minha. Mas pensei que fosse mais difícil para ti não causar minha tristeza. Não que eu imaginasse de ti que fosses fazer um grande sacrifício para que não causasses minha tristeza, mas não imaginava que causar minha tristeza fosse tão indiferente para ti quanto causar qualquer outra coisa que fosse. Entenda: não queria que desejasses minha felicidade, nem que trabalhasses por ela, nem que me salvasse da tristeza e nem que nunca a causasse; mas imaginei que evitar ser a causa da minha tristeza, mesmo que não fosse uma prioridade tua, merecesse alguma atenção da tua parte. 
Essa indiferença a mim – e à minha felicidade – não é a causa de eu decidir deixar-te de lado. Essa indiferença apenas significa que não existo para ti, e que, portanto, tanto faz onde te deixo: de lado, à frente, ao meu lado, tanto faz. Se para ti não existo, não posso querer te converter à crença na minha existência, assim como não poderia te convencer que existem unicórnios, caso eu desejasse que acreditasses. Se para ti eu não existo, suponho que esteja feliz – e tua felicidade ainda me faz feliz – e se não estás feliz, só posso fazer, como fazia antes, desejar que sejas feliz, sem que eu possa fazer nada por isso.
Portanto, tudo o que posso te desejar é que seja feliz, que encontre a felicidade e todas estas coisas parecidas que suponho que procuras, e que nunca corras o risco de acreditar, tarde demais, que existia alguém do teu lado.

Movimento

Eu gosto da mobilidade, do movimento. A principal imagem que me vem à mente são placas tectônicas deslizando umas sobre as outras. Talvez porque seja um movimento ininterrupto, mas que preserva alguma coisa. No caso, o formato da terra.

Esse movimento somente é possível dentro de um limite, mas não importa tanto que a esfera do planeta seja um limite, e sim que seja, ao mesmo tempo, uma das condições desse movimento. As placas tectônicas – se eu entendi bem essa história toda – deslizam umas sobre as outras sempre em direção ao centro da Terra, como tudo no planeta, aliás (menos as coisas mais leves do que o ar). Por isso, há sempre um movimento contínuo, a Terra nunca fica deitada eternamente em berço esplêndido, porque ela é, ao mesmo tempo, o berço e aquilo que ocupa o berço – quer dizer, ela se move sobre ela mesma, e claro que temos que dividi-la em partes para dizer que há movimento. Mas é um movimento sobre si, e, desconsiderando as partes, pode-se dizer que a Terra move-se ao mesmo tempo em que não se move. Ela se move, modifica-se sempre dentro de um limite, que é ela própria.
Eu não sei bem o que me fascina no movimento, ou neste tipo de movimento da Terra, sobre si. Não a translação em torno do sol, ou o movimento conjunto com a lua, mas sim a Terra que desloca-se sobre a Terra. Algo permanece igual e este mesmo algo, ao mesmo tempo, muda – pois a Terra continua sendo a Terra, mas há movimento. Há uma semelhança e uma diferença, como uma brincadeira de roda em torno de um núcleo em chamas, que funde tudo que o alcança, e relança de volta à Terra, a si, ao restante do conjunto. Nem vou levar em conta a grande poça de água que há sobre a maior parte das placas tectônicas, nem da vida que habita esse mar, e nem da vida que se desenvolve na pequena porção seca das placas.
É desse tipo de movimento que falo quando digo que gosto: não um ir até lá, mas mover-se sobre, não uma caminhada infinita, mas mas um ir e vir que, na volta, encontra tudo diferente, ainda que o lugar seja o mesmo.

As coisas que vem depois do X e os prefixos

O problema não são as mulheres ou os homens, nem os homo ou os heterossexuais.

São as pessoas.
Veja bem: hoje em dia são necessárias cotas públicas, medidas de incentivo e leis especiais dirigidas especialmente à proteção das mulheres. É um absurdo – não que se tome essas atitudes, mas que elas sejam necessárias. É um sintoma de um fracasso coletivo. Nenhum fracasso é eterno, mas por enquanto é um fracasso remediado. E aí quem é responsável por isso? Os homens, machistas e violentos? Ou as mulheres, que querem tomar o lugar dos homens no mundo? Mas se os homens são machistas e violentos, pode ter certeza de que em 99% dos casos tinha uma mãe que, se não ensinou seu filhinho a ser assim, pelo menos permitiu que ele se desenvolvesse assim. E se as mulheres querem tomar o lugar dos homens no mundo, não é porque este lugar seja dos homens, e sim porque é um lugar de direito a qualquer pessoa. Tanto o machismo quanto um feminismo raso que nem merece o nome de feminismo (seria melhor chamá-lo de anti-feminismo*, na minha opinião) são coisas que se alimentam mutuamente: a força de um dá força ao outro, que reforça por sua vez o primeiro e daí por diante. Porque afinal de contas são farinha do mesmo saco.
Aí vem a homossexualidade verdadeira. “Eu sou homossexual!” funciona como uma declaração cultural, nacionalista, o chauvinismo do machismo transferindo-se para a homossexualidade. “Verdadeira” porque transformaram a sexualidade em certidão com firma registrada em cartório. Lésbica que é lésbica tem que mostrar que gosta de mulher, bicha que é bicha tem a obrigação de gostar de dar o cú. São dois exemplos pífios, eu sei: é claro que lésbica gosta de mulher e gay de dar. O problema não é esse porque nem toda lésbica tem que mostrar que gosta de mulher e nem todo gay tem obrigação de dar, mas a questão está aí! A heterossexualidade possui uma cultura heterossexual (por exemplo, basta entrar num site de  horóscopo para ver se o seu signo combina com o de quem você está a fim, e está lá, “clique neste lado no signo do homem e do outro lado no signo da mulher em questão” ou algo assim. Se eu estivesse a fim de um cara, clicava onde na outra coluna?), e a homossexualidade decidiu que também tem que ter uma cultura própria, modos próprios: e assim assume a condição de gueto imposta por quem? Pela cultura heterossexual, que tem que deixar claro que é hetero. Uma escritora francesa escreveu que existe um pensamento hetero, que consiste na sobrevalorização da diferença: os opostos se atraem, coisas assim. E a homossexualidade consegue ser hetero porque faz de tudo para ser diferente, para afirmar sua sexualidade. Mas ontem mesmo não se dizia que um dos problemas do machismo era a necessidade dos machos de afirmarem sua virilidade? Seria mais útil afirmar o amor, os direitos das pessoas, o direito de comer e sobrar para amanhã e ter dinheiro para comprar mais depois, a liberdade de orientação sexual, religiosa, etc, etc! Sim, num primeiro momento é comprensível que você descubra algo muito importante e bonito sobre si e ai queira afirmar para todo mundo “me achei, eu sou isso, está explicado, afinal de contas!”, mas se essa é uma descoberta fundamental não é tudo o que há para descobrir, e só porque é fundamental não quer dizer que seja a mais importante . “Ah, mas temos que nos afirmar diante da sociedade malvada”, mas a sociedade é malvada com as pessoas heterossexuais também, o que se tem que afirmar é o direito de a pessoa ficar com quem ela bem entender, e não ser considerada uma união de segunda categoria, “anti-natural” só porque não é hetero. Parada gay deveria ser um grito de “consideramos justa toda a forma de amor!” e não de “vocês vão ter que me engolir!” – porque as pessoas heterossexuais não têm que aceitar a homossexualidade alheia, e sim têm que deixar de delirar pensando que é a forma de amor correta. E é esse é o mesmo mal que aflige a homossexualidade, ou pelo menos o que eu vejo com mais força: troca-se hetero por homo, mas ninguém – heterossexual ou homossexual – abre mão de dizer “eu vivo a verdadeira sexualidade!”… Pressupõe-se que quem nasceu heterossexual morrerá heterossexual, e que quem nasceu homossexual morrerá heterossexual. Aí vem alguém e diz “ah, é um gene”: vá se catar! Não é questão de escolha, mas nem por isso vira mandato divino. Só o preconceito – e preconceito de todas as sexualidades prefixadas – consegue determinar tão categoricamente que se você me vir rolando no chão com alguém cuja sexualidade não seja a mesma que a minha, separa que é briga (troque “alguém cuja sexualidade não seja a mesma que a minha” pelo sexo com o qual você nunca mais transará na vida). Aí inventam a bissexualidade, como se a sexualidade fosse um carro totalflex que aceita gasolina e álcool. Ninguém é bissexual – mas há pessoas que se permitem gostar de pessoas com genitália, e não de genitálias com pessoas. Pau e buceta não são caráter, são hábitos que não fazem o monge.
Eu disse no começo que o problema são as pessoas. E são mesmo. Por isso é que só as pessoas problemáticas – incluindo a mim – é que podem resolver isso. Não são as leis (não estou dizendo que não é importante aprovar a parceria civil registrada no Congresso), Deus ou a Paz Universal. 
Somente as pessoas é que podem admitir um dia que as pessoas não estão na cor da pele, na ascendência familiar, no que têm no meio das pernas ou na religião. As pessoas estão nas pessoas! Eu sei que é redundante mas é porque eu não sei afirmar “pessoas são isso!”. Quem sou eu para pré-determinar, para pré-formatar as pessoas como se fôssemos disquetes. “Pessoa” é como o bom-senso para Descartes: todo mundo é ou tem plenamente. E as pessoas têm características que formam uma rede de diferenças e semelhanças que vai muito além do que eu ou você temos no meio das pernas, ou ouvimos no rádio ou pensamos da vida. E os mais diferentes às vezes podem estar mais próximos do que imaginam (eu acho tão nojento um macho que é macho dizer que só gosta de buceta quanto uma lésbica dizer o mesmo- que foi mais ou menos o que eu ouvi e que me levou a escrever tudo isso – , e isso vale também para a pênislatria – como em “idolatria” – de gays e de mulheres heterossexuais).
É por isso que eu nunca vou – agora partimos para os problemas pessoais, pode parar de ler. É por isso que eu nunca vou conseguir namorar, ou pelo menos manter um relacionamento que dure mais do que o tesão inicial. Porque eu gosto do que gosto e sei do que gosto, mas aquilo de que gosto não define todo o resto sobre mim, e nem me obriga a gostar sempre da mesma coisa. Eu não sou obrigado a ser assim ou assado por gostar disto ou daquilo. Não tenho que ouvir que sou incongruente porque tal ou tal coisa não são coisa apropriada para o meu sexo. Eva vê a vovó e Ivo vê a uva só na cartilha, porque na vida real todo mundo vê mais coisas que isso. Menos quando a vida real precisa adequar-se desesperadamente à cartilha. 
*aquele “feminismo” de hello kity que fala coisas do tipo “ah, mas isso é que dá colocar homem para fazer tarefa de mulher”, por exemplo. Em tempo : nada contra a hello kity.

Retificação

Acho que vou retificar um pouco o que disse abaixo.

No fim das contas, quis dizer que eu não tenho inimigos. Pois eu não me preocupo em atacar ou revidar, e sim em neutralizar quaisquer ataques, fazer com que as ações dessas pessoas não toquem em mim, ou pelo menos não causem efeitos em mim. Enfim que não me prejudiquem.
Mas eu tenho que começar a considerar certas pessoas como inimigas. Não que eu comece a revidar ou a atacar essas pessoas. Mas tenho que começar a tratar essas pessoas como inimigas: preciso deixar claro a elas que, no que diz respeito a mim, são estorvos, e apenas isso, na minha vida; são apenas peso inútil, colesterol ruim, pessoas nocivas mesmo.

Coisas aleatórias

Existem aquelas pessoas que eu amo. São pessoas que por algum motivo me fazem bem emocionalmente, que aumentam o prazer que eu tenho de viver.

Existem aquelas que eu detesto. São pessoas desagradáveis, que mesmo sem tocar em mim, fazem com que o meu corpo sinta-se como se estivesse doente.
A melhor coisa que eu posso fazer pelas pessoas que eu amo é amá-las – e amar alguém sempre depende da pessoa que se ama, pois não é o mesmo amor para uma e para outra pessoa (“não é o mesmo amor” não significa que seja mais ou menos amor para uma ou outra pessoa).
As pessoas desagradáveis não merecem, por sua vez, meu ódio ou a minha oposição. Eu reajo na mesma medida a alguém por quem me agrado. Mas evito, a menos que seja necessário, reagir às pessoas desagradáveis. Com elas, eu exercito minha capacidade de desprezo, de indiferença. Não merecem que eu me desgaste em dedicar algo, mesmo que seja meu ódio, contra elas. Odiar alguém dá trabalho – e que consideração seria, da minha parte, me desgastar tanto assim por alguém. Amar também dá trabalho, mas é que nem trabalhar em algo que você gosta. Odiar é trabalhar em algo ruim, sujo, que cheira mal; às vezes é necessário, mas mesmo assim só por pouco tempo, caso seja. Prefiro ignorar, como quem ignora qualquer coisa que seja irrelevante. Ignora-se coisas que não acrescentam em nada se damos atenção a elas, e que prejudicam, se recebem essa atenção. São coisas como o tempo que leva a gravidez dos unicórnios, ou as medidas e proporções exatas dos itens da bandeira – a menos que você escreva livros ou faça bandeiras, são coisas que não interessam, irrelevantes (eu gosto de unicórnios e da bandeira, só não me interesso pela gravidez do primeiro, e pelas medidas e proporções do segundo).
É só uma questão de aprender a neutralizar o desconforto que tais pessoas produzem, como um campo de força emocional,  algo que gaste o mínimo de energia mas que mantenha a desagrabilidade que causam longe.

Anaïs Nin

A minha primeira visão da terra foi através da água. Pertenço à raça de homens e mulheres que olham todas as coisas através desta cortina de mar e os meus olhos são a cor da água.

Olhava com olhos de camaleão a Face mutável do mundo e considerava anonimamente o meu ser incompleto.

Lembro o meu primeiro nascimento na água. À minha volta a transparência sulfurosa e os meus ossos moviam-se como se fossem de borracha. Oscilo e flutuo nas pontas sem ossos dos meus pés atenta aos sons distantes, sons para além do alcance de ouvidos humanos, vejo coisas que são para além do alcance dos olhos. Nasço cheia das memórias dos sinos da Atlântida. Sempre à espera de sons perdidos e à procura de perdidas cores, permanecendo para sempre no limiar como alguém perturbado por recordações, corto o ar a passo largo com largos golpes de barbatana e nado através de quartos sem paredes.

Expulsadas de um paraíso de ausência de som, catedrais ondulam à passagem de um corpo, como música sem som.

Esta Atlântida só podia ser novamente encontrada à noite pelo caminho do sonho. Logo que o sono cobria a rígida cidade nova e a rigidez do novo mundo, abriam-se os portais mais pesados deslizando em gonzos oleados e entrava-se na ausência de voz que pertence ao sonho. Era o terror e a alegria de homicídios conseguidos em silêncio, um silêncio de calhas e de escovas. O lençol de água cobrindo tudo e abafando a voz. E um monstro trouxe-me, por acaso, à superfície.

Perdida dentro das cores da Atlântida, cores que vão dar a outras e se misturam sem fronteiras. Peixes feitos de veludo, de organdi com dentes de rendas, feitos de tafetá, recamados de lantejoulas, peixes de seda e penas e plumas, com flancos laçados e olhos de cristal de rocha, peixes de couro curtido com olhos de groselha, olhos como o branco de um ovo. Flores palpitando-lhes nas hastes como corações de mar. Nenhum deles sentindo o seu próprio peso, o cavalo-marinho movendo-se como uma pena…

Era como um longo bocejo. Eu amava a facilidade e a cegueira e as mansas viagens na água transportando-nos através de obstáculos. A água estava ali para nos transportar como um abraço gigante; havia sempre a água para nos repousar, e que nos transmitia as vidas e os amores, as palavras e os pensamentos.

Eu dormia muito abaixo do nível das tempestades. Movia-me dentro da cor e da música como dentro de um diamante-mar. Não havia correntes de pensamentos, apenas a carícia-fluxo-desejo misturando-se, tocando, afastando, vagueando – no abismo infinito da água.

Não me lembro de ali estar frio, nem calor. Nenhuma dor provocada pelo frio ou pelo calor. A temperatura do sono, sem febre e sem arrepio. Não me lembro de ter tido fome. Era-se alimentado através de poros invisíveis. Não me lembro de ter chorado.

Sentia apenas a carícia de mover-me – de passar para um outro corpo – absorvida e perdida dentro da carne de outrem, embalada pelo ritmo da água, pela lenta palpitação dos sentidos, pelo deslizar de seda.

Amando sem consciência, movendo-me sem esforço, numa corrente branda de água e de desejo, respirando num êxtase de dissolução.

Acordei de madrugada, atirada para uma rocha, esqueleto de um barco sufocado nas suas próprias velas.


(trecho do livro A Casa do Incesto)