Festa de São Lourenço, diácono e mártir

 

«Tem, irmãos, tem o jardim do Senhor não apenas rosas dos mártires; tem também lírios das virgens, heras dos casados, violetas das viúvas. Absolutamente ninguém, irmãos, seja quem for, desespere de sua vocação; por todos morreu Cristo. Com toda a verdade, dele se escreveu: Que quer salvos todos os homens, e que cheguem ao conhecimento da verdade (1Tm 2,4).

Compreendamos, portanto, como pode o cristão seguir Cristo além do derramamento de sangue, além do perigo de morte. O Apóstolo diz, referindo-se ao Cristo Senhor: Tendo a condição divina, não julgou rapina ser igual a Deus. Que majestade! Mas aniquilou-se, tomando a condição de escravo, feito semelhante aos homens e reconhecido como homem (Fl 2,7-8). Que humildade!

Cristo humilhou-se: aí tens, cristão, a que te apegar. Cristo se humilhou: por que te enches de orgulho? Em seguida, terminada a carreira desta humilhação, lançada por terra a morte, Cristo subiu ao céu; sigamo-lo. Ouçamos o Apóstolo: Se ressuscitastes com Cristo, descobri o sabor das realidades do alto, onde Cristo está assentado à destra de Deus (Cl 3,1).»

(Sermão de S. Agostinho apresentado no ofício das leituras da festa de S. Lourenço)

São Domingos

 

 (Photo by sydney Rae on Unsplash)

A crença em uma heresia é ruim, muito ruim, pois ela distorce uma realidade cuja verdade se expressa na Igreja pela Palavra de Deus, a Tradição (que é diferente do tradicionalismo conservador atualmente em moda) e o Magistério.

Mas as heresias dariam ótimos roteiros de filmes, o que me leva a pensar que os hereges só foram hereges, afinal, porque não tinham cinema – se bem que naquele tempo teria sido possível escrever romances ao invés de heresias doutrinárias.

São Domingos surgiu como santo no combate à heresia do catarismo (que vem do grrego “katharós” e significa “puro”).

Segundo esta heresia (e é aqui que entra o roteiro, que na verdade é uma sinopse mas tudo bem porque não sou roteirista nem escritor), nós somos o resultado de um combate cósmico entre as forças do bem e do mal. 

 O deus bom, que é o do Novo Testamento, criou-nos todos anjos puros e bons, mas o deus mau engangou alguns destes anjos e aprisionou-os em corpos no maléfico mundo material criado por este deus mau.

O Antigo Testamento, um texto do deus mau, reaparece no NT (que é obra do deus bom) como João Batista, um demoníaco antagonista de Cristo, que é o protótipo da alma purificada que retorna ao mundo puro e celestial do deus bom. Há variações sobre a percepção de Cristo que, no fim, seria mau também como o deus que criou o mundo material, Elias reencarnado em João Batista e sabe-se lá quem mais. Esse Cristo mau é diferente do Cristo bom encarnado em Paulo, mas neste caso não seria um espírito decaído e posteriormente iluminado, mas sim um anjo que se deu ao trabalho de descer do paraíso para salvar-nos a nós, presos na matéria maléfica.

Mas tudo bem, porque basta pertencer ao catarismo para passar por um ritual de purificação que simboliza o desejo de reascender à pureza do mundo espiritual criado pelo deus bom. Tudo isto antagonizando a Igreja Católica que já era mal-falada muito antes de ser considerada um arcaísmo medieval. Fim. Emocionante (ou seria na pena de alguém com talento).

Este tipo de ideia, outrora combatida pela Igreja, se repete em partes, isoladamente ou recombinadas a outras ideias, mas infelizmente não em filmes ou romances e sim em visões de mundo que muitas vezes motivam as atitudes das pessoas em geral – não exclusivamente das pessoas cristãs: a dissociação da espiritualidade com o caos do dia-a-dia; a criação de grupos de pessoas autoproclamadas puras e superiores aos não-iluminados; o desprezo pelo sofrimento alheio (afinal qualquer um alheio ao grupo de iluminados é um impuro que por isto mesmo sofre); às vezes essas ideias não assumem contornos espirituais e o grupo dos puros e iluminados pode determinar-se pela riqueza, pela cor branca da pele, pela região em que nasceu, pelo emprego ou pelo grau de instrução, etc.

Por isto a importância de São Domingos (além do necessário culto aos santos no que este culto implica na presença de Deus atestada na santidade deles): enquanto Roma enviava pregadores para contraporem à heresia a doutrina correta, eles iam com a pompa principesca que, se por um lado não invalidava o que pregavam, por outro afastava a maioria das pessoas deles (pois ninguém dá muita bola para um engomadinho arrogante falando de humildade); já são Domingos decidiu adotar um estilo simples e mendicante, que deu origem à ordem dos dominicanos.

Perdas e ganhos

Cristo é explícito ao afirmar que quem quiser salvar sua vida vai perdê-la, mas quem perdê-la por causa dele (pois há outros jeitos de perder a vida) irá encontrá-la. Isto remete imediatamente aos mártires, mas seu martírio só tem sentido quando se observa algo a mais que não está explícito na afirmação de Cristo.

Se é necessário perder a vida por Cristo, é porque antes disto é necessário viver por ele. Se Cristo ressalta a necessidade de perder a vida por ele é porque se trata do que ele veio revelar, e não é óbvia, sem esta revelação, a necessidade de perder a vida por ele; mas a partir disto, se torna óbvio que, antes de morrer, é necessário viver por ele.

Os mártires não são mártires por causa da crueldade inadmissível de quem os executou, mas por encontrarem em Cristo a vida, e manterem-se junto à vida mesmo diante da crueldade definitiva dos seus executores. O objetivo, seja dos mártires, seja de Cristo, não é o martírio, e sim a vida, que é o que Cristo nos oferece, não importa o que pensemos que seja ou não a vida.

Tudo o que compreendemos como vida é uma semente, uma potência de vida que realmente é vida, mas é perecível fora do solo. Uma vez no solo, a semente não morre, embora desapareça porque se transforma em flor – assim como a vida perdida por Cristo não se perde, mas se transforma naquilo que todo o resto que compreendemos como vida promete. 

Se nos mantivermos agarrados às promesas de vida, continuaremos procurando-a sem nunca encontrar, desistindo de buscar, ou destruindo até mesmo a promessa de vida que há em tudo aquilo que Deus criou.

Mas se vivermos por Cristo, será possível realizar a promessa de vida que há em toda a criação, tanto antes quanto depois de morrer.

Transfiguração do Senhor

Explosões, tremores de terra, vidros estilhaçados e móveis revirados; nas ruas, destroços do que parece o resultado de anos de guerra – mas no começo do dia tudo estava intacto, pessoas ensanguentadas pelas ruas, hospitais já no limite graças à COVID agora lotados com os feridos das explosões que não vieram de nenhuma guerra, nenhuma queda, nenhuma bomba, é quase como se tivessem vindo de lugar algum.
Como comemorar a Transfiguração do Senhor apenas dois dias depois de uma tragédia destas? Em que pode se transformar uma  festa da Transfiguração quando os rostos, os corpos e as ruas de um lugar se tornam desfigurados por uma dor quase que gratuita?
O capítulo 17 de Mateus, que começa com o êxtase dos três apóstolos na Transfiguração, termina na aflição deles por causa do anúncio da Paixão, quando Cristo se sacrificou por nós. A Transfiguração foi, apesar  de real, apenas didática e simbólica. Na Paixão de Cristo é que fomos redimidos, e para isto Cristo, transfigurado no Tabor, desfigurou-se pelo peso dos suplícios no Calvário.
Afinal as tragédias, das quais a explosão em Beirute foi apenas a mais recente, pois convivemos com tragédias diárias, que não são filmadas, quando muito, denunciadas, mas por serem contidianas viram notas, às vezes de repúdio, e precisam ser tratadas mais ou menos do mesmo jeito que ocorrem, com o passar do tempo. Mas que a celebração da festa da Transfiguração de Cristo ocorra em meio a uma pandemia e dois dias depois das explosões no Líbano apenas reforça que até que venha a Páscoa, a Transfiguração é um momento apenas passageiro.
O sofrimento não tem a palavra final, mas é inevitável percorrer o seu caminho. Cristo nos salva, de várias formas diferentes, todos os dias, mas menos como um super-herói que evita o sofrimento, e mais como um sofredor ajudando a outro.
No fim a felicidade terá a última palavra, mas este é um lembrete que não deve ser feito neste momento.

Migalhas de si

Houve um tempo em que cada tribo tinha os seus deuses, e as lutas entre os povos correspondiam a lutas entre estas divindades. Depois disto, os romanos começaram “acumular” divindades e redistribuí-las entre os seus povos conquistados, desde que incluíssem no seu panteão as divindades romanas junto às próprias divindades originárias.
Agora, no Evangelho, Cristo repete este aspecto tribal  da sua missão: tendo sido enviado ao seleto povo de Deus, não seria adequado desperdiçar seu amor e seu poder com os pagãos. Mas a mulher cananéia insiste que, pelo menos, “as migalhas” deste amor e deste poder possam beneficiá-la. Aí Jesus elogia a fé dela e cura sua filha.
Hoje sabemos que, embora o povo judeu seja ainda uma espécie de irmão primogênito na fé, Deus oferece o seu amor a todos os povos ou, talvez mais especificamente, a todas as pessoas independente de qual seja o seu povo.
Desatrelar a salvação da ancestralidade de alguém ou da sua filiação a alguma bandeira nacional é muito conveniente nestes tempos em que nem mesmo um indivíduo é apenas ele, e mesmo o seu povo, quaisquer que sejam os critérios que determinem este povo, não se limita a apenas um e, mesmo assim, ninguém mais é obrigado a assumir compromissos com povo algum.
Isto não significa que possamos dissociar o amor a Deus do amor aos outros, nem a própria salvação da salvação coletiva, que são associações imprescindíveis porque Deus não salva ninguém com exclusividade.
Mas significa que estamos tão fragmentados que, se apenas uma pessoa já é uma comunidade inteira que ainda por cima possui inúmeros conflitos internos, a(s) coletividade(s) na(s) qual(is) o indivíduo se insere ou (é inserido) não pode ter limites claros nem observáveis.
Esta fragmentação sempre corre o risco de ser tomada por um golpe e ser sujeitada a algum tipo de totalitarismo – tanto capitalista, que nunca deixa de aprofundar um pouco mais a sua opressão, quanto comunista, este espectro que ronda não só mais a Europa mas o mundo todo apesar de ter virado moda vê-lo já concretizado para instigar o combate ao que não existe. Além destes (não únicos) totalitarismos coletivos, algum fragmento do indivíduo também pode dar um golpe e assumir o poder como um déspota interno, criando as ilusões de “eu sou”, que só Deus pode dizer de verdade e sem se tornar um tirano com isto.
Apesar destes perigos, é com estas fragmentações que temos que lidar, as migalhas fragmentadas de si que nos compõem, que só Deus pode reunir sem fazê-lo à base da opressão.

Cura d’Ars

São João Batista Maria Vianney queria ser padre desde pequeno, mas só pôde estudar na adolescência, por dois anos, quando aprendeu o francês (pois sua família falava em um dialeto regional), teve a oposição do pai, dos jacobinos e dos homens de Napoleão, que queriam soldados e não padres.
Apesar disto, conseguiu entrar no seminário – mas não encerrou sua saga repleta de obstáculos: lá ele era considerado um camponês rude incapaz de aprender teologia e filosofia, portanto aprendeu apenas história, geografia e aritmética; foi reprovado nos exames e só foi ordenado graças à intervenção do seu mentor, mas mesmo assim, impedido de ouvir confissões, uma atribuição que julgaram acima das capacidades dele.
Depois da morte do seu mentor, permitiram que o padre pudesse passar a ouvir confissões, e se tornou um ouvinte de confissões tão brilhante que se formavam filas e mais filas de gente querendo se confessar com ele, a ponto de se tornar necessária a criação de um sistema de transporte entre Ars, sua cidade, e Lyon, para comportar o deslocamento das massas que seu brilho como confessor criara.
A falta de estudos, a oposição do pai, a perseguição napoleônica, a falta de reconhecimento dos educadores, o insucesso nos exames, o impedimento dos superiores, nada disto impediu que o santo Cura d’Ars (o apelido de Vianney) se tornasse quem ele quis ser: um padre e confessor.
Isto prova que, na vida, só não vence quem não quer, quem não corre atrás, quem não se dedica àquilo em que acredita, e que a força de vontade só pode ser impedida por quem a possui, mesmo que culpe os outros.
Só que não é bem assim.
Responsabilizar a pessoa que fracassou pelos seus fracassos (cuja culminância é culpar a vítima, já que ambas as coisas dão no mesmo, apenas em proporções diferentes) é uma técnica muito eficiente para iludir as pessoas com a solução que algum iluminado (seja por Deus ou por quaisquer forças mais ou menos místicas) apresenta logo após convencer seu interlocutor que a culpa é deste. Esta falsa atribuição de culpa joga com meias-verdades, pois quem fracassou realmente cometeu algum erro, mas não se fala dos erros cometidos no caminho ao sucesso (não erros de competência, mas as coisas erradas que podem levar ao sucesso); realmente quem quer vai atrás, mas para muitas pessoas faltam o equivalente a pernas para ir, desde infraestrutura material, como dinheiro ou acesso aos locais onde está o que é necessário, até estrutura emocional – sem contar quem é preterido pelas estruturas sociais, veladamente ou não; realmente quem quer consegue, mas quem não deseja pagar o preço da maldade, a quem deveríamos exaltar, torna-se exemplo de fracasso.
Eu também tenho a solução, pois se todos podem apresentar os seus pulos do gato, eu também posso, e já adianto que a resposta é Deus (para quem eventualmente não acredite não perder o seu tempo com argumentos cuja premissa é algo que, apesar de real, não acredite).
Mas também não é uma receita (para quem eventualmente queira uma resposta fácil também não perder o seu tempo). E também não é nenhuma novidade (pois só o cristianismo já conta mais de dois mil anos, e antes disto já se acreditava em Deus).
O fato é que o Cura d’Ars pôs seus desejos em paralelo aos desejos de Deus, e embora seja sutil, a diferença disto para pôr os desejos de Deus em paralelo com os nossos é enorme, e o resultado são todos estes messianismos que não ousam dizer o nome. Não adianta desejar dissociadamente dos desejos de Deus, porque os resultados serão sempre frustrantes, mas quase sempre estas frustrações são postas de lado em nome da possibilidade de ir além – o que resulta na falta de limites cujo melhor exemplo é o da ganância de quem tem muito dinheiro e se esforça por acumular ainda mais e mais, mas vale também pra tudo: comida, prazer, sexo, conhecimento, fama, poder, até mesmo para santidade.
Pôr os próprios desejos em paralelo aos de Deus é o único caminho para qualquer coisa que buscamos em todos os outros caminhos, mas implica em um comprometimento do desejo que facilmente parece ser indesejável.

Vésperas de segunda-feira na segunda semana do saltério (décima oitava semana do tempo comum)

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Garantia de felicidade absoluta ou o seu dinheiro de volta!

A misericórdia de Deus é insuperável – as maldades, os pecados, as desconfianças e as descrenças, nada disto supera a sua misericóridia. E os outros atributos de Deus também superam qualquer um dos nossos, exceto a nossa liberdade – não porque Deus não seja maior do que ela, e sim porque lhe dá tanto valor que não nos obriga a nada, quando poderia muito bem fazê-lo.
E se é verdade que não é a nossa liberdade que nos salva, também é verdade que ela é uma condição para sermos salvos por Deus, que não quer ninguém aceitando-o contra a própria vontade. Isto comporta uma imensa beleza quanto, igualmente, um terror: quem não quiser Deus não salva. Perdoa, dá chance, instrui, etc., mas (e isto é a minha opinião) quem não quiser, não será salvo apenas por não querer, ou melhor, apenas pelo respeito que Deus tem pela liberdade de quem quer e de quem não quer sua salvação.
Isto é diferente das propostas de redenção contemporâneas, que põem a responsabilidade pela obtenção de sucesso nas costas de quem não o tem. Por mais que a nossa participação na obra divina seja imprescindível, a responsabilidade pela nossa salvação é de Deus. Cabe a nós trabalharmos interior e exteriormente para, no fim das contas, podermos dizer sim a Deus com a liberdade que ele deseja, mas este trabalho é indispensável por outras razões, pois quem nos salva é Deus e não nossos esforços (reforçando que em outros aspectos são indispensáveis),
Além disto, estas redenções contemporâneas oferecem a felicidade o fazem em nome de si mesmas, até mesmo quando terceirizam a relização da felicidade, ou dizem prometê-la em nome de Deus – que convida para a felicidade, mas não dá garantias a ninguém. As garantias que Deus nos dá são daquilo que está nas mãos dele: o perdão, a misericórdia, a redenção, a vida eterna, etc. Mas ninguém na terra tem a salvação garantida. Aliás, nem o sucesso, que é outra coisa, mas também é oferecido como o fazia Ananias com a felicidade, e era justamente  disto que Jeremias falava no versículo 10.
Deus nos diz com clareza o que quer e nos oferece os meios para o fazermos, mas não promete nada que não possa assegurar, e a nossa liberdade Deus não impede; ele a orienta, ensina, fomenta as decisões certas, mas não impede que sejamos livre, porque é isto, sermos livres que ele nos oferece, ao invés das receitas de sucesso que podemos ver por aí.

Acabando com a instrumentalização política do paradigma da identidade – Jeune Afrique

Tradução da notícia do link acima pelo tradutor do Google:
[Tribune] Acabando com a instrumentalização política do paradigma da identidade – Jeune Afrique
 7-8 minutos
 Como gerenciar a diversidade em nossos países?  Muitas potências africanas exploraram o mapa étnico para fins políticos, causando tragédias das quais o genocídio contra os tutsis em Ruanda foi o clímax.
 Neste mês de julho de 2020, a comunidade internacional lembrou duas grandes tragédias.  O massacre de Srebrenica, qualificado como genocídio pela justiça internacional, que completou 25 anos em 11 de julho.  Cerca de 8.000 muçulmanos bósnios foram executados pelas forças militares do general Ratko Mladić no espaço de uma semana.  Alguns dias antes, em 4 de julho, Ruanda comemorou o 26º aniversário da libertação do país e o fim do genocídio contra os tutsis.
     Na Bósnia, como em Ruanda, a identidade como base de projetos políticos levou à morte
 Essas duas comemorações nos lembram o perigo de uma política de identidade.  Para Radovan Karadžić, o ex-líder nacionalista sérvio da Bósnia, as comunidades sérvia, croata e muçulmana eram como “cães e gatos”.  Eles foram reduzidos a suas diferenças, apresentadas como irredutíveis.  Da mesma forma, o governo do ex-presidente ruandês Juvénal Habyarimana transformou efetivamente os tutsis – mais tarde designados como “inimigos” e condenados ao extermínio – em cidadãos de segunda classe.  Na Bósnia, como em Ruanda, a identidade como base de projetos políticos levou à morte.
 De certa forma, essas duas tragédias foram contra o grão da história.  Em 1992, O Fim da História e o Último Homem, do cientista político americano Francis Fukuyama, anunciou o triunfo da ordem liberal em escala mundial.  Fukuyama não estava totalmente errado: os anos 2000 viram uma expansão sem precedentes do mercado, do comércio, da “democracia”, “dos valores liberais”.  Tribalismos, que haviam produzido tanta tragédia nos anos 90, estavam em retirada.  Multiculturalismo, tolerância, relativismo cultural foram o novo credo.
 O mito da “unidade nacional”
 Mas as crises da globalização (crises financeiras, crescentes desigualdades, crise de refugiados, empobrecimento da classe média ocidental) despertaram a fera.  Dos Estados Unidos à Itália, via Hungria e Polônia, as forças do nacionalismo, muitas vezes renomeadas como “populismo”, estão novamente em ascensão no Ocidente.
 A tendência vai além do mundo ocidental: na Rússia, onde Vladimir Putin nunca perde a oportunidade de lembrar que seu país é antes de tudo uma “civilização”;  na Índia, onde Narendra Modi é apóstolo de um nacionalismo hindu que prova pouco das delícias do multiculturalismo ocidental;  em uma China que exalta incessantemente seu excepcionalismo ou em uma nostalgia da Turquia pelo Império Otomano, o projeto é o de restaurar a grandeza de culturas particulares (civilizações).
     Com algumas exceções, os países africanos nunca deixaram o paradigma de identidade
 De certa forma, com algumas exceções, os países africanos nunca deixaram o paradigma de identidade.  O regime de partido único às vezes usa retórica “nacional”, mas a impressão de coesão social deve-se sobretudo ao uso liberal do bastão.  No entanto, já em 1967, a guerra de Biafran expôs ao mundo as falhas do mito da “unidade nacional” em vários de nossos países.
 Desde então, e especialmente desde o advento do sistema multipartidário no início dos anos 90, muitas potências africanas exploraram continuamente o mapa étnico para fins políticos.  Na necessidade de visão, ambição e conquista, esses governantes muitas vezes serviram o ópio da identidade para seus povos e colheram os dividendos da divisão.
 A bandeira da identidade
 Deste ponto de vista, o genocídio contra os tutsis de Ruanda terá sido o paroxismo, o ponto final de múltiplas tragédias que marcaram a vida do continente.  Ainda hoje, muitos países africanos são atormentados por profundas divisões sobre a gestão da “diversidade étnica”.
 Mas a novidade de nosso tempo é que o padrão de identidade é cada vez mais reivindicado pelos próprios povos, em uma aliança objetiva e muitas vezes antinatural com governos que não se importam com seus interesses.
 Em sua última revisão da situação econômica na África Subsaariana, o FMI prevê, devido à pandemia de coronavírus, uma redução de 5,4% no PIB per capita em 2020, o que nos levaria dez anos para trás.  Sem surpresa, espera-se que a pobreza, já grande, aumente;  bem como desigualdades.  Em um cenário de má governança crônica, e à medida que vários países se dirigem para as eleições presidenciais, é necessário temer convulsões políticas.
 As tensões políticas no Mali, na Etiópia e em outras partes do continente, que não estão relacionadas ao coronavírus, provavelmente prenunciam o clima político do continente nos próximos anos.  Sob essas condições, será tentador para os poderes explorar o mapa étnico para enfraquecer ou desencorajar coalizões da oposição.  Num contexto em que a mobilização cidadã é cada vez mais baseada em identidades, o terreno fértil será favorável.
 Federalismo ou fusão de identidades
 A questão básica permanece a seguinte: como gerenciar a diversidade étnica em nossos países?  Por um lado, o federalismo étnico etíope, que reconhece, institucionaliza e promove grupos étnicos, parece particularmente instável.
 No outro extremo, Ruanda, marcado por sua história, propõe fundir identidades particulares, especialmente étnicas, em uma identidade nacional.  O projeto ruandês é ambicioso, mas a história mostra que o caminho para esse ideal é longo e requer coerção.
     Cingapura ou Índia tentaram abordagens intermediárias interessantes
 Vários países, como Cingapura ou Índia (antes de Narendra Modi), cujo perfil demográfico é semelhante ao de muitos países africanos, tentaram abordagens intermediárias, que são interessantes.  Em graus variados, eles combinaram o imperativo de criar um senso de pertencimento comum e, portanto, de transcender a identidade, com a aceitação de uma realidade plural.
 Com muita frequência, a tendência na África é destacar e explorar as diferenças.  A experiência da Bósnia e Ruanda nos lembra que, sem negar essas diferenças, devemos ter a coragem e a ambição de construir a verdadeira unidade.

Verdades ditas ao mentir

Logo na primeira estrofe da Balada da Arrasada, de Ângela Ro Ro, descobrimos que a arrasada desconhecia que o destino diz verdades ao mentir. quando se ofereceu inteira e dócil ao fácil seduzir.
E acredito que o que Ângela Ro Ro revela sobre o destino, Jeremias diz do coração – este sem a voz e a poesia daquela, é claro.
O coração, segundo Jeremias (que o diz em nome de Deus), é enganador e isto é incurável. E o que engana no coração não é o que ele diz, mas sua incapacidade de distinguir realidade e ilusão, verdade e mentira, aquilo que é ele próprio e aquilo que é o outro. Por isto que ele é enganador (porque não reconhece nada além daquilo que manifesta), por isto que é incurável (porque ele não tem a obrigação de reconhecer nada além daquilo que ele manifesta) e por isto que, como o destino na letra da Balada, diz verdades ao mentir (pois o coração nunca mente, só que o seu ponto de referência pode ser uma ilusão tomada por uma realidade, ou, ainda, uma realidade tomada por uma ilusão).
Isto deixa o coração confuso: é necessário confiar nele, e desconfiar também. Aquilo que ele manifesta é real, mas a causa da manifestação pode ser e pode não ser – possivelmente até ao mesmo tempo, para o desespero de Aristóteles (sob certos aspectos, diga-se).
Não que o coração reconheça esta confusão, mas quem tem o coração é que sabe dela.
No versículo imediatamente posterior, Jeremias ainda diz que Deus esquadrinha o coração e sabe o que se passa lá. E é somente esta ação de Deus em nossos corações que nos leva, e aos nossos corações, a ser origem do bem e do amor, que nos fim das contas era o que nossos corações queriam desde o começo, inclusive o da arrasada da balada.

Santo Inácio de Loyola

A democracia só é o melhor sistema de governo que temos na medida em que prezamos a liberdade. Perde-se muito com com este sistema (como eficiência, agilidade, coerência, etc.), e tudo o que se perde com ele não vale a liberdade que o fundamenta, o que faz da democracia até hoje e provavelmente por todo o futuro, a única opção aceitável de governo.
O maior risco na democracia é a parte do “demo” (que é “povo” em grego, nada a ver com a Bíblia aqui), pois a vontade soberana do povo sempre pode ser o pior que poderia haver entre as opções disponíveis, sem contar que é o próprio povo quem aceita e, de certo modo, cria estas opções. A voz do povo é soberana, mas não é a voz de Deus.
Um governo de especialistas, que se não me engano era o que Platão sugeria em algum livro cujo nome eu não me lembro, não seria melhor do que a democracia, e é o que vemos pelo resultado das últimas eleições, os escolhidos pelo povo prometendo especialistas governando o país para salvá-lo do PT, do comunismo, do Lula, etc., etc.
Nestas eleições a voz do povo não foi considerada apenas a voz de Deus: a voz do povo elegeu o próprio Deus nos representantes que passaram a representar ao mesmo tempo o povo e Deus – pelo menos no que diz respeito à imagem que o governo Bolsonaro vende de si próprio.
Isto por si só não abala a democracia, mas o “viés” totalitarista deste governo abala a democracia e também abala Deus, ou melhor, as nossas relações com Ele. Afinal, Deus não é como Bolsonaro “profetiza”, mas o presidente tem, sim, uma voz poderosa que confunde até quem se esforça para ouvir a Deus apesar da barulheira governamental (“apesar da” e não “na” barulheira governamental).
Isto não é novidade, e Jeremias – este sim um profeta e a voz de Deus – foi preso pelo povo, o mesmo povo a quem Deus se dirigia por meio do profeta. O mesmo povo que elegeu Bolsonaro. Se politicamente o povo é soberano, religiosamente não o é. Assim como também não o são os especialistas, que no texto da primeira leitura de hoje, são os sacerdotes e os profetas. Assim como no governo Bolsonaro o povo e os especialistas erraram, do mesmo jeito o povo errou prendendo Jeremias.
São todos santos, santos demais: os profetas, os sacerdotes, o povo, o governo Bolsonaro, os pastores fenômenos-de-popularidade que o apoiam (ou “apóiam”? – agora eu entendo os idosos que ainda não se acostumaram a ler “farmácia” sem o “ph”), até padres e quem sabe quais bispos não deram este apoio à eleição dele – todos santos, todos muito santos.
É por isto que Santo Inácio de Loiola deixou escrito (nos seus Exercícios Espirituais que eu nunca li, pois peguei a citação no Wiquiquote) que «Muita sabedoria unida a uma santidade moderada é preferível a muita santidade com pouca sabedoria.» Certamente não foram critérios santos nem sábios que levaram à eleição deste governo, mas talvez um excesso de santidade que, sem sabedoria, é nefasta, e a situação do país comprova o ensinamento de Santo Inácio.
Talvez a eleição de Bolsonaro faça parte do projeto de Deus, como a minha mãe uma vez me deixou encostar no ferro de passar quente só para eu aprender a não tocar mais nele (e, como brinde, hoje ainda tenho uma ótima desculpa para não gostar de passar roupa); talvez (quem sabe?) o presidente fosse mesmo o eleito de Deus mas meteu os pés pelas mãos (pois Deus dá corda prá todo mundo, e não tem culpa que alguns a usem para se enforcar ao invés de usá-la para ajudar a salvar os outros); eu particularmente acredito que Deus aguenta este tipo de burrice porque, sendo Deus, sabe tirar o bem até do mal – as famosas linhas tortas da escrita certa de Deus.
Mas com uma santidade moderada e um pouco mais de sabedoria, talvez  não precisácemos entortar tanto estas linhas, o que talvez dê um pouco mais de trabalho para Deus, mas no que nos diz respeito, estas linhas que nós entortamos acabam arriscando as nossas vidas, como vemos diariamente acontecer diante desta pandemia.

postagem de quinta, 30/07

Eu lembro que há anos atrás a reciclagem de materiais era assunto ou de quem estava sem dinheiro para comprar uma coisa nova e improvisava com o que tinha e economizar dinheiro com isto, seja para comprar a versão industrializada do que improvisou, seja para ficar com o improvisado e gastar o dinheiro com outra coisa.
Tempos depois, a reciclagem se transformou em um ato de consciência ecológica, para reduzir o disperdício de materiais cuja fonte não é renovável, para não produzir lixo que não se decompõe na natureza, ou pelo menos para  fugir do consumismo que, de modo geral, contribui significativamente para a degradação do meio ambiente, tanto por causa do lixo quanto por causa da exploração nociva dos recursos naturais.
E embora hoje essa preocupação esteja em evidência nos debates, objetivos e programas das organizações oficiais e das organizações coletivas, ainda fazemos pouco pela reutilização e reciclagem das coisas que usamos, mesmo que já o façamos muito mais do que antigamente.
Mas esta preocupação revela também uma perversidade, que não está na preocupação ecológica em si, e nem na reciclagem, mas na incapacidade que nós temos de fazer o mesmo com as pessoas, que descartamos muito mais facilmente do que qualquer pote de margarina usado depois que ela acabou.
As empresas normalmente demitem funcionários sem a menor consideração, mesmo quando respeitam todas as leis trabalhistas que, depois das reformas nos governos Temer e Bolsonaro, legalizaram a desvalorização dos trabalhadores. As pessoas, nas suas relações particulares, também descartam umas às outras com menos dó do que a uma roupa velha. Existem exceções, e muitas, mas elas apenas confirmam a regra.
A maior expressão desta atitude são os presídios, que formalmente servem para a reinserção de pessoas na sociedade, mas que hoje são o mais próximo que podemos chegar a uma pena de morte que, felizmente ainda proibida pelas leis, acaba sendo executada nas prisões. Não que todos morram dentro dos presídios, mas lá dentro já não são mais tratados com a dignidade devida às pessoas que ainda são. Na maioria das vezes eles não estão presos para pagarem pelos seus crimes, e sim para ficar a vida inteira marcados por eles, quer saiam da vida criminosa, quer não.
Esta poderia ser a atitude de Deus, que não é obrigado por nada nem por ninguém a nos aguentar (tomando por base eu mesmo, com quem Deus tem a mais infinita paciência, mais até do que a paciência que eu tenho comigo mesmo), e não só aguenta como quer “reciclar”, que nem o oleiro de Jeremias, ao preferir refazer o vaso a jogar tudo fora.
Deus nos moldou e nós nos deixamos deteriorar (uma deterioração que se manifesta especialmente na degradação das relações entre as pessoas), mas Deus se prontifica, gratuitamente, a nos remoldar e, mais do que isto, em vez de remoldar-nos ao “projeto original”, remoldar-nos a uma condição inimaginavelmente plena – que se por um lado não tem como concretizar-se aqui neste mundo e nesta vida, por outro lado, também não tem como realizar-se se não começar a acontecer hoje.

Egito prende cinco mulheres influentes por postagens em Tiktok

(Reportagem traduzida no tradutor do Google, do original disponível em https://allafrica.com/stories/202007280954.html )
 Por Menna A. Farouk
 4-5 minutos
 As mulheres foram acusadas de administrar contas online que violavam os valores e princípios do Egito
 Um tribunal egípcio condenou cinco influenciadores das redes sociais a dois anos cada uma na prisão na segunda-feira, depois de considerá-las culpadas de promover a imoralidade e o tráfico de pessoas, incentivando as mulheres a ganhar dinheiro construindo seguidores nas mídias sociais.
 As mulheres, que também foram multadas em 300.000 libras egípcias (US $ 19.000), foram acusadas de administrar contas online que violavam os valores e princípios do Egito, uma nação muçulmana conservadora.
 Haneen Hossam, 20, uma estudante da Universidade do Cairo, foi acusada de incentivar mulheres jovens a conhecer homens através de um aplicativo de vídeo e a fazer amizades com elas, recebendo uma taxa de acordo com o número de seguidores que assistem a esses chats.
 Mawada al-Adham, uma influenciadora do TikTok e do Instagram com pelo menos 2 milhões de seguidores, foi acusada de publicar fotos e vídeos indecentes nas mídias sociais.
 As três outras mulheres foram acusadas de ajudar Hossam e Al-Adham a gerenciar suas contas de mídia social, de acordo com a promotoria pública.
 O advogado de Al-Adham, Ahmed el-Bahkeri, confirmou as sentenças e disse que apelariam do veredicto.
 Várias mulheres no Egito já haviam sido acusadas de “incitar deboche” por desafiar as normas sociais conservadoras do país, mas essa batalha mudou on-line à medida que o uso da mídia social por jovens egípcios aumenta.
 No mês passado, o Tribunal Econômico de Contravenções do Cairo prendeu a dançarina do ventre egípcia Sama El-Masry por três anos por incitar devassidão e imoralidade como parte de uma repressão às mídias sociais.
 Hossam, que tem cerca de um milhão de seguidores no TikTok e no Instagram, foi preso em abril depois de publicar um videoclipe descrito pelo Ministério Público como “indecente”.
 Em um vídeo agora expirado no Instagram, ela explicou como as mulheres poderiam trabalhar com ela para ganhar até US $ 3.000, transmitindo vídeos em troca de dinheiro usando a plataforma de criação de vídeos de Singapura Likee, de propriedade da chinesa Joyy Inc ..
 Sua mensagem foi interpretada pelas autoridades como uma promoção para as mulheres jovens venderem sexo on-line, com o promotor público dizendo que suas ações se aproveitaram do fraco estado financeiro das mulheres e menores.
 Um tribunal a libertou sob fiança em junho, mas ela foi presa novamente depois que a promotoria encontrou novas evidências.
 Al-Adham foi preso em maio por vídeos postados no TikTok e Instagram.
 Ativistas de direitos humanos e usuários de mídias sociais lançaram uma campanha digital este mês exigindo que as autoridades egípcias libertem as mulheres, chamando as prisões de “violação da liberdade de opinião e expressão”.
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 Enquanto isso, parlamentares egípcios exigiram que o governo suspendesse o aplicativo TikTok de compartilhamento de vídeo no Egito, dizendo que promoveu nudez e imoralidade.
 Nehad Abu El Komsan, chefe do Centro Egípcio dos Direitos da Mulher, disse que tem reservas quanto à frase “violando os valores e princípios da família”, mas vê o tráfico de seres humanos e a exploração de meninas por dinheiro como um “crime horrível”.
 “Temos que diferenciar entre liberdade de expressão e o uso de menores para gerar dinheiro”, disse ela à Thomson Reuters Foundation.
 “Dessa forma, é chamado tráfico de seres humanos e prostituição, que são proibidos pela lei egípcia”.
 De acordo com a lei de crimes cibernéticos do Egito, emitida em 2018, qualquer pessoa que crie e administre uma conta na Internet para cometer um crime enfrenta pelo menos dois anos de prisão e uma multa de até 300.000 libras egípcias.
 ($ 1 = 15,9200 libras egípcias)
 (Reportagem de Menna A. Farouk; Edição de Belinda Goldsmith e Claire Cozens. Credite à Thomson Reuters Foundation, o braço de caridade da Thomson Reuters, que cobre a vida de pessoas em todo o mundo que lutam para viver de maneira livre ou justa.  //news.trust.org)