Erros históricos e científicos da Bíblia*

 

Exemplos de erros histórico e científicos da Bíblia (retirados do livro A Bíblia sem mitos: uma introdução crítica, de Eduardo Arens, das páginas 216 a 217). Por favor leia também o alerta depois do final desta lista:

  • «Em Lv 11,6 e em Dt 14,7 proíbe-se comer a lebre “porque ela rumina”, quando, na realidade, ela não é um ruminante, mas um roedor. Igualmente em Lv 11,22, se cataloga o gafanhoto como “um bicho alado que anda sobre quatro pés”, quando na realidade tem seis pés.
  • Em Jó 20,16 se afirma que “a víbora mata com a língua” (literalmente), quando, de fato, é com as presas.
  • Jó 26,11;37,18: “as colunas do céu cambaleiam…” pois o céu é uma “abóbada sólida como espelho  de metal fundido”. O céu é realmente assim?
  • Certamente o grão de mostarda não é “a menor de todas as sementes que há na terra” (Mc 4,31).
  • A arqueologia evidenciou que  Jericó, Hai, e Gabaon não eram habitadas nos tempos de Canaã (Js 6-9). Igualmete Lakish e Taanak não sofreram destruição alguma e não passaram a ser cidades israelitas antes do séc. X.
  • O percurso da conquista apresentado em Juízes 1 é muito diferente do que encontramos em Josué. Além disso, foram incluídas cidades como Dor, Jerusalém, Gezer, Meguido e Taanak (Jz 1,21ss), que continuaram sendo cananeias, não israelitas, durante muito tempo depois da conquista.
  • Judite 1,1 está errado: Nabicodonosor não foi proclamado rei dos assírios nem reinou em Nínive, que havia sido destruída por seu pai em 612.
  • O famoso Baltazar, em Daniel 5, na realidade nunca foi rei. Tampouco era filho de Nabucodonosor, mas de Naboind, o último rei babilônico.
  • Contrário ao que está dito em Dn 6,1, não foi Dario, o Medo, (que nos é desconhecido) quem conquistou a Babilônia, mas Ciro.
  • Dario (persa) não foi “filho de Xerxes” (Dn 9,1), mas antes seu pai!
  • Segundo Dn 11,2, a Ciro sucederiam “três reis” antes que seu império tivesse caído, mas sucederam-lhe nove reis!
  • Mc 9,17-28 narra a cura de um menino “possuído por espírito mudo”, mas a descrição corresponde ao que hoje conhecemos como epilepsia: “atira-o por terra, lança espuma e range os dentes, e fica rígido”.
  • At 7,16 confunde Abraão com Jacó (confira Gn 23,17ss;33,19).»

* Nenhuma destas incoerências, discrepâncias, contradições e erros da Bíblia serve para fundamentar qualquer acusação de ilegitimidade da Bíblia, mas sim para fundamentar a necessidade do estudo do contexto no qual cada texto foi redigido, partindo do pressuposto de que nosso conceito de “verdade” contemporâneo implica a coerência entre o dado empírico e o que se diz dele, enquanto que no tempo em que os textos foram redigidos (depois de terem sido, em alguns casos, transmitidos oralmente), “verdade” implicava na autenticidade, ou seja, na ideia de ser “fiel, estável, merecedor de confiança”, conforme o que o autor diz na página 214 deste mesmo livro de onde copiei a lista.

Como lidar com os erros da Bíblia?

 

 

No final do capítulo 3 (Cristãos: admirável mundo novo) do seu livro Em nome de Deus, Karen Armstrong descreve o início do combate, nos EUA, entre a interpretação literal e a interpretação crítica da Bíblia, um combate que ainda se faz presente hoje em dia quando passagens do Antigo Testamento são utilizadas como fundamento para coisas desumanas como, por exemplo, a homofobia; quando críticos da religião em geral e ou do cristianismo em particular utilizam as contradições, incoerências e erros científicos (biológicos, históricos, físicos, etc.) na Bíblia para tentar invalidá-la e, por conseguinte, invalidar a religião que a adota; e quando cristãos com posições políticas divergentes entre si (grosso modo, esquerda e direita) utilizam passagens bíblicas discordantes tanto para fundamentar sua própria posição quanto para atacar a posição alheia:

“Observando a discrepância entre a hipótese de Darwin e o primeiro capítulo do Gênesis, alguns cristãos, como Asa Gray (1810-88), amigo e colega do naturalista inglês, tentaram conciliar a seleção natural com uma leitura literal do livro bíblico. Posteriormente o projeto conhecido como Ciência da Criação se esforçaria ainda mais para conferir ao Gênesis respeitabilidade científica. Tanto empenho era inútil: como mito, a história bíblica não constitui um relato histórico das origens da vida, e sim uma reflexão mais espiritual acerca do significado profundo da existência, e sobre isso o logos científico nada tem a declarar.
Embora Darwin não tivesse tal intenção, a publicação da Origem [das Espécies] provocou uma escaramuça entre religião e ciência, porém os primeiros tiros foram disparados não pelos religiosos, e sim pelos secularistas mais agressivos. Thomas H. Huxley (1825-95) na Inglaterra e Karl Vogt (1817-95), Ludwig Buchner (1824-99) Jakob Moleschott (1822-93) e Ernst Haeckel (1834-1919) no continente europeu popularizaram a teoria darwiniana, dirigindo-se a vastas plateias para provar a incompatibilidade entre ciência e religião. Na realidade pregaram uma cruzada contra a religião.” (Não posso dar a referência de quais são as páginas onde se encontra o texto, porque li ele em uma versão eletrônica pirateada, só sei que está no final do capítulo referido acima)

Neste livro, Karen Armstrong traça as origens mais ou menos paralelas do fundamentalismo nas três grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo), demonstrando (conforme o que eu entendi) que o fundamentalismo é uma reação de defesa diante do medo causado pelas incertezas postas pela modernidade. É uma síntese muito suspeita pelo fato de que eu li apenas os capítulos referentes ao cristianismo, embora em outra oportunidade eu tenha lido o livro todo (emprestado de uma biblioteca) e ele seja bem mais abrangente do que as minhas observações sobre ele.
Segundo ela (ou pelo menos segundo o que eu entendi do livro dela), as religiões fundamentam-se em mitos, não no sentido de lendas ou folclore, mas sim (os mitos) como forma de expressar aquilo que se quer dizer acerca de questões existenciais, enquanto que a ciência fundamenta-se no logos, que é a maneira racional de investigar e compreender a realidade.
Eu não sei se mito e logos signficam estritamente isto (eu não fui consultar o dicionário), mas de maneira geral o que eu entendi foi que a religião expressa verdades usando mitos, enquanto que a ciência o faz usando logos; além disto, o objeto da ciência é diferente do objeto da religião, razão pela qual o conflito surge quando se tenta “cientificizar” a religião ou então quando se tenta o contrário, fazer das explicações científicas, explicações religiosas.
Ética, moral e religião não são propostas científicas e seus pressupostos não são cientificamente comprováveis (não existem impedimentos científicos para alguém andar nu por aí, por exemplo), bem como as descobertas científicas não são menos científicas por seu uso imoral (a imoralidade que há em qualquer chacina não impediu a bomba atômica de funcionar em Hiroshima e Nagasaki, e nem mesmo uma bomba atômica, em si, é da alçada religiosa, mas apenas o seu uso contra seres humanos).

Como alguns fundamentalistas de hoje utilizam trechos da bíblia para justificar seu conservadorismo, e seus oponentes eventualmente também utilizam outros trechos para justificar o seu próprio progressismo (como Jacques Ellul fez no seu maravilhoso livro Anarquia e Cristianismo), sem contar os argumentos antirreligiosos fundamentados nas inconsistências da Bíblia, eu resolvi copiar quatro listas que encontrei no livro A Bíblia sem Mitos, de Eduardo Arens, com diversas incoerências, contradições e erros bíblicos, que eu achei melhor copiar do que tentar resumir e explicar eu mesmo (desprovido de aptidão literária como eu sou, isto iria virar algo parecido com videocassetadas bíblicas, que não chegariam a parecer falta de respeito religioso porque não seriam nem engraçadas, já que eu também não sou humorista, mas resultaria em um texto apenas deprimente e sofrível) e vão ser publicadas ao longo dos próximos quatro dias.

O verdadeiro católico

O que faz de alguém um católico? Obedecer os mandamentos? Mas aquele jovem que disse a Cristo que obedecia a todos os mandamentos e não foi capaz de vender tudo o que possuía e entregar aos pobres não pôde permanecer junto a Cristo mesmo obedecendo a todos os mandamentos. Talvez obedecer ao catecismo, que inclui não só os dez mandamentos mas também regras para casos que estão ligados aos mandamentos, mas não parecem? Então o católico que defendia a pena de morte até o dia primeiro de agosto de 2018 deixou de ser católico no dia 2 (a menos que tenha mudado sua opinião conforme a nova redação do parágrafo 2267 do catecismo). Ou obedecer ao papa? Ou a todos os papas anteriores também?

Eu tenho uma definição do que é ser católico, e provavelmente você também tem uma, e isto não é um problema. Mas usar as nossas definições de “ser católico” para acusar outra pessoa de não ser católica, ou, pelo menos, para acusá-las de não serem católicas o suficiente transformam o que era somente uma definição pessoal para nortear as próprias ações, em uma regra válida para todos – como se alguns soubessem mais que os outros.

Para isto que serve ler o que São Paulo escreveu na sua primeira carta aos coríntios. Neste trecho da liturgia de hoje, ele está falando sobre outra coisa, que é restringir-se de algo que não está errado para que aqueles que não entendem isto não pensem que pode tudo. O sujeito sabe que não tem problema em comer as carnes oferecidas aos ídolos, mas um outro sujeito ainda não entendeu isso, vê o primeiro comendo as oferendas e daqui a pouco vai pensar que não tem problema fazer suas oferendas também e tudo vira uma bagunça – em um tempo onde o cristianismo ainda estava se formando. Aquele sujeito esclarecido, que entendia que a carne oferecida aos  ídolos era carne como qualquer carne e não faria mal comê-la, não entendia, porém, o quanto isto poderia escandalizar o seu irmão que não entendeu e, além disto, induzi-lo a aplicar esta liberalidade a outros aspectos para onde ela não valia. Por isto que quem “acha que conhece bem alguma coisa, ainda não sabe como deveria saber”.

Mais do que uma expressão de humildade socrática (“só sei que nada sei”), São Paulo está alertando os profundos conhecedores da Bíblia, das leis e da moral que isto não é tudo, e tudo isto pode ser mais nocivo aos outros do que se não soubesse nada. 

Mas hoje esta ideia, de que quem acha que conhece ainda não sabe, serve muito para estes fiscais do catolicismo alheio, rapidíssimos em detectar o menor traço de comportamento não católico nos outros, inclusive nos padres e nos bispos – é curioso que a prática inquisitorial cotidiana, abandonada pela hierarquia católica, tenha sido voluntariamente assumida por alguns leigos, que proibidos de usar a fogueira (inclusive pela hierarquia que criticam), queimam os outros em “apologias” que podem até estar corretas, mas são incapazes de dialogar com qualquer um fora dos seus círculos de pureza doutrinária.

As doutrinas católicas servem para ser aplicadas na própria vida, mas não é porque são corretas que devem servir de régua para medir os outros. Se alguém acha que conhece bem alguma coisa, não sabe como deveria saber porque, no fim das contas, o sabe-tudo é Deus e não o nobre apologeta do século XXI, que não consegue entender que não sabe de tudo, inclusive sobre si, e também que não sabe (mesmo que ache que sabe) se pode  condenar os outros à sua volta com sua correta  régua moral – e é com esta régua, não o catecismo da Igreja, mas esta que ele usou durante a vida, que Deus vai medi-lo, incluindo aí aquilo que Ele sabe e nós não (cf. Lc 6,38, também na liturgia de hoje).

*Na imagem, o zelador Willie dos Simpsons, um verdadeiro escocês, em referência à falácia do escocês de verdade.

Passagem

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A transitoriedade do mundo em que vivemos não nos dispensa dos cuidados que devemos ter com o planeta e com os outros, pois se nem Cristo sabe quando o mundo vai acabar (Mt 24,36), não nos cabe agir como se já estivesse tudo acabado. 

A transitoriedade do mundo é, no entanto, a causa da sensação que temos de que não pertencemos a este mundo. Se inventarmos destinos  que não sejam Cristo, perdemos este mundo e o definitivo. Mas se posicionarmos o nosso destino em Cristo precisamos lembrar que ele também é o caminho (Jo 14,6), um caminho que não é o mundo mas que está presente no mundo, e embora ele possa ser percorrido sejam quais forem as condições, se elas forem melhores, podemos evitar sofrimentos que, além de serem desnecessários, podem tomar proporções tão grandes que arriscam até mesmo nossa fé.

Desajustes

 

 

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Até hoje há quem duvide que Maria tenha ficado grávida pela ação do Espírito Santo, e sugira que isto é uma metáfora, ou que, pelo menos, a ação do Espírito Santo não excluiu a necessidade de ela e José terem tido que fazer sexo para depois disto o Espírito Santo entrar em ação.

Apesar de dois mil anos depois ser possível, agora, abordar este assunto menos apaixonadamente (embora ainda seja possível ouvir risadas diante da ideia de uma Virgem Mãe), na época de Cristo a gravidez de Maria pareceu o que parece a muitos na nossa época: uma fantasia. Mas uma passagem bíblia sugere que, no tempo de Jesus,  pelo menos os fariseus também não tenham aceitado que Maria tenha engravidado do Espírito Santo sem ter feito sexo com José. Mais do que isto, é possível que julgassem que ela tivesse traído José antes do casamento (isto é uma possível explicação para terem dito a Jesus, em Jo 8,41, que não eram filhos da fornicação). 

Se isto for verdade, então sabemos que Maria teve que conviver com o peso de ter sido vista como adúltera e Cristo, de ser filho do adultério, o que naquela época tinha um peso muito maior do que podemos imaginar.

Mas não precisamos fazer muito esforço imaginativo para reproduzir este peso: basta ver como pesa sobre quem tem famílias “desajustadas” o julgamento de que a causa de quaisquer problemas sejam estes desajustes, e que estes desajustes sejam responsabilidade de ambos os pais e, especialmente, das mães, tantas vezes responsabilizadas pelo fracasso de qualquer relação amorosa, incluindo o casamento.

As pessoas que não se ajustam a quaisquer expectativas, aliás, são julgadas severamente, pois os “santos” de hoje não são capazes nem de se abster de atirar a primeira pedra, ao contrário dos pecadores que, apesar de tudo, não tiveram coragem de atirá-la na mulher que Cristo salvou de um apedrejamento.

Enquanto lemos histórias de santos que tiveram experiências religiosas sublimes como conversar com Maria, com Cristo, com algum anjo ou com outro santo (sem contar as experiências religiosas não-cristãs que se oferece por aí hoje), pouco fazemos para alcançar a epifania divina que há em simplesmente não julgar quem não é como esperaríamos que deveria ser (que, aliás, certamente precedeu quaisquer outras experiências místicas dos santos que viram e ou ouviram as coisas miraculosas que suas biografias nos relatam).

As duas narrativas

 

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«Do ponto de vista da crítica bíblica, urge recordar que a primeira narrativa da criação do homem é cronologicamente posterior à segunda. A origem desta última é muito mais remota. Este texto mais antigo define-se como “javista”, porque para nomear a Deus serve-se do termo “Javé”. É difícil não se ficar impressionado com que a imagem de Deus nele apresentada encerre traços antropomórficos bastante marcados (entre outros, lemos nele que… o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida). Em confronto com esta descrição, a primeira narrativa, isto é, exatamente a considerada cronologicamente como mais recente, é muito mais amadurecida quer no que diz respeito à imagem de Deus, quer na formulação das verdades essenciais sobre o homem. Provém da tradição sacerdotal e ao mesmo tempo “eloísta”: de “Eloim”, termo por ela usado para denominar Deus.

Dado que nesta narrativa a criação do ser inteligentecomo homem e mulher, a que se refere Jesus na sua resposta segundo Mt19, está inserida no ritmo dos sete dias da criação do mundo, poder-se-lhe-ia atribuir sobretudo caráter cosmológico: o homem é criado na terra juntamente com o mundo visível. Ao mesmo tempo, porém, o Criador ordena-lhe que subjugue e domine a terra: ele é portanto colocado acima do mundo. Embora o homem esteja tão intimamente ligado ao mundo visível, a narrativa bíblica não fala todavia da sua semelhança com o resto das criaturas, mas somente com Deus (Deus criou o homem à Sua imagem, criou-o à imagem de Deus…). No ciclo dos sete dias da criação manifesta-se evidentemente uma gradualidade nítida1; o homem, pelo contrário, não é criado segundo uma sucessão natural, mas o Criador parece deter-se antes de o chamar à existência, como se tornasse a entrar em si mesmo, para tomar decisão: Façamos o homem à Nossa imagem, à Nossa semelhança

O nível daquela primeira narrativa da criação do homem, embora cronologicamente posterior, é sobretudo de caráter teológico. Indica-o principalmente a definição do homem baseada na sua relação com Deus (“à imagem de Deus o criou”), o que encerra ao mesmo tempo a afirmação da impossibilidade absoluta de reduzir o homem ao “mundo”. Já à luz das primeiras frases da Bíblia, não pode o homem ser compreendido, nem explicado até ao fundo, com as categorias deduzidas do “mundo”, isto é, do conjunto visível dos corpos. Apesar de também o homem ser corpo. Gn 1, 27 verifica que esta verdade essencial acerca do homem se refere tanto ao homem como à mulher: Deus criou o homem à sua imagem… criou-os homem e mulher. É preciso reconhecer que a primeira narrativa é concisa, livre de qualquer vestígio de subjetivismo: contém só o fato objetivo e define a realidade objetiva, quer ao falar da criação humana, do homem e da mulher, à imagem de Deus, quer ao acrescentar pouco depois as palavras da primeira bênção: Abençoando-os, Deus disse-lhes: “crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra”.»

João Paulo II, A Teologia do Corpo. 2ª catequese, 12/09/79 (Na primeira narrativa da Criação encontra-se a definição objetiva do homem), 3-4. 

Disponível no site Teologia do Corpo.

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Alegria alheia

A tristeza não pode ser tratada como uma erva daninha inconveniente que se infiltra no jardim das nossas felicidades, mas precisa ser cultivada como um dos sentimentos que, tal como os outros, é resultado da fertilidade dos nossos corações. Somente um coração anestesiado pode se livrar da tristeza, mas esta anestesia leva junto a alegria e assim o coração se torna uma pedra imóvel, indiferente e cega. 

Um coração vivo está sujeito a tudo, mas caso se apegue à alegria, ela se transforma em uma promessa de tristeza porque mais cedo ou mais tarde vai passar. O contrário deste  apego à alegria é uma fuga constante da tristeza, que assim nunca chega e, por isto, também nunca passa. 

Exceto pelos casos clínicos de depressão, que devem ser tratados pela medicina, o melhor é sentir o que está disponível no momento sem tentar nem impedir, nem obrigar o sentimento a ficar.

Mas se a alegria forçada ainda se justifica  como um palhaço que esconde suas próprias tristezas para deixar pelo menos os outros alegres, a tristeza forçada só serve para impressionar os outros, fingindo uma gravidade  que não existe. E é esta hipocrisia que os fariseus cobravam dos discípulos de Cristo.

Se a Igreja determina momentos com rituais de tristeza é para que quem está bem possa lembrar que existem sofrimentos alheios pululando à nossa volta. Mas sempre há fariseus querendo fazer da  tristeza um modo de vida, cobrando-a dos outros quando não conseguem atingir a alegria alheia que não podem suportar.

São Gregório Magno

Imagem: Wikimedia

Filho do homem, eu te coloquei como sentinela da casa de Israel (Ez 3,16). É de se notar que o Senhor chama de sentinela aquele a quem envia a pregar. A sentinela, de fato, está sempre no alto para enxergar de longe quem vem. E quem quer que seja sentinela do povo deve manter-se no alto por sua vida, para ser útil por sua providência.

Como é duro para mim isto que digo! Ao falar, firo-me a mim mesmo, pois minha língua não mantém, como seria justo, a pregação e, mesmo que consiga mantê-la, a vida não concorda com a língua.

Eu não nego ser culpado, conheço minha inércia e negligência. Talvez haja diante do juiz bondoso um pedido de perdão no reconhecimento da culpa. Na verdade, quando no mosteiro podia não só reter a língua de palavras ociosas, mas quase continuamente manter o espírito atento à oração. Mas depois que pus aos ombros do coração o cargo pastoral, meu espírito não consegue recolher-se sempre, porque está dividido entre muitas coisas.

Sou obrigado a decidir ora questões das Igrejas, ora dos mosteiros; com frequência ponderar a vida e as ações de outrem; ora auxiliar em certos negócios dos cidadãos, ora gemer sob as espadas dos bárbaros invasores e temer os lobos que rondam o rebanho sob minha guarda. Por vezes, devo encarregar-me da administração, para que não venha a faltar o necessário aos submetidos à disciplina da regra. Às vezes devo tolerar com igualdade de ânimo certos ladrões, ora opor-me a eles pelo desejo de conservar a caridade. Estando assim dispersa e dilacerada a mente, quando voltará a recolher-se toda na pregação, e não se afastar do ministério da proclamação da Palavra? Por obrigação do cargo, muitas vezes tenho de encontrar-me com seculares; por isso sempre relaxo a guarda da língua. Pois se constantemente me mantenho sob o rigor de minha censura, sei que sou evitado pelos mais fracos e nunca os atraio para onde desejo. Por esta razão, muitas vezes tenho de ouvi-los pacientemente em questões ociosas. Mas, sendo eu mesmo fraco, arrastado aos poucos pelas palavras vãs, começo a dizer sem dificuldade aquilo que a princípio tinha ouvido com má vontade; e ali onde me aborrecia cair, agrada-me permanecer.

Que, pois, ou que espécie de sentinela sou eu, que não estou de pé no monte da ação, mas ainda deitado no vale da fraqueza? Poderoso é, porém, o criador e redentor do gênero humano para conceder-me, a mim, indigno, a elevação da vida e a eficácia da palavra. Por seu amor, me consagro totalmente à sua palavra.

(Das Homilias sobre Ezequiel, de São Gregório Magno, papa)

A verdade vos libertará

 

«De muitas pessoas também saíam demônios, gritando: “Tu és o Filho de Deus”. Jesus os ameaçava e não os deixava falar, porque sabiam que ele era o Messias.» (Lc 4,41)

Quem pode nos libertar com a verdade é Deus. Não somos suficientemente livres para nos libertarmos, nem conhecemos o suficiente para conhecer a verdade. Nem sempre parcialidade significa ser tendencioso: às  vezes, como neste caso, somos parciais na medida em que conhecemos a verdade parcialmente. A existência de Deus é uma verdade, por exemplo, mas não é toda a verdade, e aí podemos  avançar até a Trindade, a divindade-humanidade de Cristo que é a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade e, daí, percorrer toda a doutrina da Igreja que é, toda ela, verdade, mas não é, ela, toda a verdade.

Não é um princípio que deva servir para encontrar  as verdades  extra-doutrinais, pois Deus não deixou cacos de uma verdade despedaçada distribuídos aleatoriamente pelo mundo, mas é um princípio que serve para termos cuidado com a verdade.

Mentir é um pecado e não mentir é  ter cuidado com a verdade, e portanto, é óbvio (além de repetitivo), falar  a verdade também é ter cuidado com a verdade.

Eu li aqui uma boa explicação de porque Jesus impedia os demônios de falarem que  ele é o messias: os judeus da época esperavam um messias político, mais ou menos como o que os eleitores do Bolsonaro esperam dele, o salvador dos  valores judaico-cristãos, ou algo parecido; mas Cristo, que realmente era o messias e nisto os  demônios estavam falando a verdade, não oferece uma salvação política, e definitivamente não é militante de nenhum partido, e nisto a verdade que os  demônios falvam confundia mais do que esclarecia.

Por mais que a verdade não deva ser escondida, e sim pelo contrário, deva ser proclamada, é necessário verificar bem porque certas verdades são ditas. Denunciar o pecado, por exemplo, é necessário, mas quais pecados estão sendo denunciados em detrimento de quais outros? Um pecado homossexual é pior do que uma fornicação heterossexual? Os pecados sexuais desqualificam as virtudes dos pecadores? E o pecado da ganância pode ser mais tolerável que os sexuais desde que o ganancioso pague o dízimo regularmente, seja em prol da construção de um santuário ou da alimentação dos pobres? 

Eu também não sei. Mas sei que a verdade realmente liberta, como a luz que ilumina o caminho. Quando ela é proclamada como uma lança para machucar o outro, porém, apesar de ela não deixar de ser verdade (assim como Cristo não deixou de ser o Messias dependendo de quem o proclamasse), ao invés de iluminar, fere. E quando fere, se torna apenas um instrumento de dor. É  verdade que Deus nos ensina, às vezes. pela dor, mas isto porque ele é Deus e sabe curar a ferida para uma condição melhor ainda do que a anterior. Algum de nós tem autorização de Deus para fazer o outro sofrer por algum motivo nobre? 

Toda verdade jogada na cara com um tapa serve, provavelmente, apenas para satisfazer os  desejos medonhos de quem a jogou, mas se Deus pode transformar até essa  dor em salvação, isto não significa que quem a jogou tenha feito isto em nome de Deus. Significa apenas que transformou a verdade, iluminada e bela, em mesquinhas mini-certezas (vamos pedir piedade).

Espiritualidade

 

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A realidade espiritual é muito diferente de espasmos espirituais, que até podem inserir alguém na realidade espiritual, mas no fim são experiências físicas, psíquicas e emocionais. 

A realidade espiritual não existe sem estar em paralelo com a realidade natural. Estes espasmos espirituais são saltos que não sustentam um vôo, e sempre se retorna à terra. Agora, vivida em paralelo com a realidade mais natural que – já – conhecemos, a realidade espiritual ganha corpo, talvez até asas, e certamente pernas. Ficar aqui é insuficiente, mas fugir daqui não leva a nenhum lugar, seja espiritual, seja natural (físico, emocional, psíquico).

Apesar deste paralelismo, a natureza não compreende o que é espiritual, e por isto só é possível falar da espiritualidade até certo ponto, a partir do qual só a experiência espiritual é posśível. Mesmo assim, esta experiência espiritual será uma fuga se não estiver em paralelo com a vida e o mundo cotidiano, mas é esta rota de fuga (da matéria e da alma) que seitas e aproveitadores deste tipo aproveitam para oferecer a título de espiritualidade.

A vida “funciona” sem espiritualidade nenhuma, mas tudo o que a sustenta tende a se tornar maior do que a vida, e acaba se degenerando na ganância de um crescimento ilimitado, não da vida, mas do que a sustenta. 

E para que a vida vá além de uma função de vida, e para que a espiritualidade não  se torne uma rota de fuga, é necessário que a vida e a espiritualidade aconteçam em Cristo, dentro de uma realidade renovada mas inserida dentro da realidade comum que conhecemos bem.

Da Imitação de Cristo

 

 

Ouve, filho, minhas palavras suavíssimas, que superam toda a ciência dos filósofos e sábios deste mundo. Minhas palavras são espírito e vida (cf. Jo 6,63), não ponderáveis por humanas inteligências.  

Não devem ser puxadas para a vã complacência, mas escutadas em silêncio, acolhidas com total humildade e afeição íntima.  

Eu disse: Feliz a quem instruis, Senhor, e lhe ensinas tua lei para que o alivies nos dias maus (Sl 93,12-13) e para que não se sinta abandonado na terra.  

Eu, diz o Senhor, ensinei no início aos profetas e até hoje não cesso de falar a todos. Porém muitos, à minha voz, são surdos e endurecidos.  

Muitos se comprazem em atender ao mundo mais que a Deus; com maior facilidade seguem os apetites de sua carne do que a vontade de Deus.  

O mundo promete coisas temporárias e pequeninas e é servido com imensas cobiças. Eu prometo bens sublimes e eternos e se entorpecem os corações dos mortais.  

Quem me serve e obedece com tanto empenho em todas as coisas, quanto se serve ao mundo e aos seus senhores?  

Cora de vergonha, servo preguiçoso e descontente, porque aqueles estão mais prontos para se perderem do que tu para viveres.  

Mais se alegram aqueles com a vaidade do que tu com a verdade.  

E, no entanto, por vezes se frustra sua esperança,ao passo que jamais falha a alguém minha promessa, nem sai de mãos vazias quem em mim confia.  

O que prometi, darei; o que falei, cumprirei.  

Sou eu o remunerador dos bons e inabalável acolhedor de todos os fiéis.  

Escreve minhas palavras em teu coração e rumina-as com cuidado; serão muito necessárias no tempo da tentação.  

O que não entendes ao ler, entenderás quando te visitar.  

Costumo visitar de dois modos meus eleitos: pela tentação e pela consolação.  

E lhes leio diariamente duas lições: uma, arguindo seus vícios; outra, exortando a progredir na virtude.  

Quem tem minhas palavras e delas faz pouco caso, terá quem o julgue no último dia (cf. Jo 12,48). 

(Texto da segunda leitura do Ofício das Leituras, retirado de A Imitação de Cristo, e copiado daqui)

Não tenhas medo

 

Photo by Miguel Bruna on Unsplash

Quando Deus pede a Jeremias que não  tenha medo, ele pede, antes disto, que ele tenha coragem (“põe a roupa e o cinto, levanta-te e comunica-lhes tudo o que eu te mandar dizer”). Os teólogos costumam identificar determinadas palavras ou expressões que possuem um significado que não está explícito naquela palavra ou expressão – como no caso de “conhecer”, que pode significar aquilo que entendemos por conhecer, mas também pode  significar “sexo”. Esta identificação entre “põe a roupa e o cinto…” e “coragem” que eu estou fazendo é resultado exclusivamente da minha especulação e, mais  precisamente, uma interpretação direcionada ao que eu quero dizer – ou seja, eu não estou interpretando a Bíblia, mas tentando explicar uma ideia. 

Muito ardiloso.

Mas a questão é que o pedido para que o profeta tenha coragem está separado do pedido para que não tenha medo. Afinal, ter coragem e não ter medo são duas coisas bem diferentes.

É necessário ter coragem para anunciar a Palavra de Deus, em primeiro lugar, porque é a Palavra de Deus, e no Antigo Testamento temer a Deus era um argumento muito mas funcional do que qualquer outro (não que hoje não seja, mas somos uma geração mais ousada em relação a Deus, tanto para bem quanto para mal). Ainda hoje é necessário coragem para anunciar a Palavra de Deus e pelo mesmo motivo do temor, mas hoje sabemos que este temor precisa ser consequência do amor a Deus e não da falsa impressão de que estamos lidando com um psicopata divino que às vezes o AT pode passar. Além disto, não é muito confortável confrontar o mundo com a Palavra de Deus. Existem outros motivos mas eu não tenho tempo agora.

Mas não ter medo, neste caso, está separado da frase de encorajamento porque Deus está se colocando como a defesa do profeta. O medo é um mecanismo de defesa que faz alguém sair correndo ou sair na porrada diante de uma ameaça, por exemplo, e é muito recomendável – especialmente sair correndo – de modo geral. Mas o enfrentamento da ameaça, que pode parecer  coragem, no fundo é medo. E Deus não está pedindo para o profeta enfrentar as ameaças, nem sair correndo delas.

Nos tempos paranóicos em que vivemos, onde uma pessoa não precisa ser clinicamente paranóica para embarcar nas paranóias coletivas como a invasão extraterrestre ou o fantasma comunista, entre muitas outras, é necessário não ter medo neste sentido. Ainda mais no que diz respeito à religião, em que facilmente o medo pode levar alguém a sair correndo (como o jovem nu que sai correndo no Evangelho de Marcos) ou, então, a enfrentar na porrada as ameaças anti-cristãs que alguém identifique por aí.

Isto não é sobre as desgraças, sejam as maiores (a morte, a fome, etc.) ou as menores (perder o ônibus, o celular ou a hora, etc.), que Deus eventualmente impede ou permite na vida das pessoas. É sobre não se colocar nem como a muralha de Deus nem como a espada de Deus. Se Deus se compromete a defender o profeta, ele não está sugerindo que ele não leve um guarda-chuva num dia nublado ou vá para o centro sem nenhum trocado no bolso para garantir, quer dizer, não está sugerindo que o profeta seja imprudente, e nem o assunto é sobre prudência; mas seu compromisso em defender o profeta é para que ele não saia correndo diante das ameaças (reais ou imaginárias) que houverem por estar comunicando o que Deus está mandando, bem como não saia atacando seus antagonistas “reis de Judá e seus príncipes, os sacerdotes e o povo da terra”.

Não adianta os cristãos tentarem atacar nem se defender dos seus inimigos, sejam eles  reais ou imaginários, sejam eles pessoas ou conceitos. Para isto que serve o “não tenhas medo” de Deus ao profeta: para que o cristianismo não seja reduzido a um instrumento de guerra, seja como arma ou como escudo, como tão facilmente se transforma ao longo de toda a história.

Guerra santa

 

Imagem: foto de Jeff Widener, e propriedade da Associeted Press.

Qualquer guerra é uma guerra contra Deus, se do outro lado está outra pessoa  que o próprio Deus criou. Portanto nada justifica combater nem mesmo quem se considere inimigos de Deus. Os erros, as injustiças, os pecados, as violências, tudo isto precisa, é claro, ser combatido, mas não as pessoas que operam estas maldades.

No fim, o guerreiro vai sempre  se apegar a guerra, e se não encontrar inimigos, vai criar algum, apenas pelo prazer do combate, e quando Deus reprimir as guerras, quebrar arcos, lanças, escudos e armas, o que o guerreiro vai fazer? Aceitar andar por aí desprotegido daquilo em que confiava, ou vai lutar, mesmo sem querer, contra Deus e a favor da guerra?

É claro que há guerras acontecendo à nossa volta: guerras sangrentas no estrangeiro, guerras nos morros entre os traficantes, guerras “culturais” contra as minorias (que não sangram menos por isto) que depois se transformam em violência dos mais variados modos contra elas… Mas não lutar não significa fugir  da guerra, e sim promover, mesmo em meio ao conflito, a paz, a justiça e o amor.

Santa Mônica de Hipona

 

Santa Mônica é famosa não apenas por ser a mãe de Santo Agostinho, mas por ter lutado incansavelmente pela conversão do filho. Embora falasse, tentasse convencê-lo e até brigasse com ele – quando ele se converteu ao maniqueísmo – sua luta consistiu, basicamente, na oração. Afinal quem nos converte é Deus.

Ela poderia ser apresentada como uma espécie de apoio sobre o qual Agostinho pôde encontrar a Deus, como se ela fosse um altar – e não estaria longe disto, basta ver seus sacrifícios maternos.

Mas ela está mais para uma gigante, pois não foi uma escadaria inerte sobre a qual Agostinho percorreu o caminho para o céu, mas sim um guindaste sempre preso a ele sem limitar seus movimentos, pronto a guindá-lo até as alturas, onde ela já se encontrava, quando ele estivesse preparado.

Seu filho deixou obras incríveis, sua teologia marca o pensamento da Igreja até hoje, e suas ideias em geral também não perderam por completo a validade, a ponto de ter sido declarado doutro da Igreja. Enquanto isto, ela não deixou nenhuma obra escrita, nenhuma marca teológica, sem genialidades nenhumas para habitarem as prateleiras das bibliotecas.

É verdade que o tempo em que ela viveu provavelmente não permitiria que ela avançasse sobre o conhecimento monopolízado pelos homens, mas não se sabe também se isto era do interesse dela.

O que sabemos é que os fundamentos de toda a sabedoria e inteligência de Santo Agostinho estão na sabedoria e na inteligência de sua mãe, que podemos ver refletidas na obra do filho, que precisou apenas desenvolver – magistralmente, é verdade – aquilo que, no fim das contas, recebeu de Santa Mônica.