A arte certamente tem limites. Como exemplo, pode-se usar uma hipotética obra, digamos uma pintura, que represente um ato sexual pedófilo, que o autor entitule de “O Abuso da Inocência” e explique que serve para alertar contra o mal da pedofilia. O título e a intenção demonstrariam claramente o rechaço do autor e da sua obra ao mal da pedofilia, mas mesmo assim seria uma obra digna de censura, porque nem a liberdade da arte e nem o combate à pedofilia justificariam a exibição do ato, mesmo que apenas representado em um quadro (não que uma eventual releitura do quadro “Saturno devorando um filho”, rebatizado com o mesmo “O Abuso da Inocência” e com as mesmas nobres intenções do exemplo fora dos parêntesis, pudesse ser censurado – o exemplo.fora dos parêntesis era o de uma obra de arte digna de censura, o exemplo dentro destes parêntesis, o de uma obra idêntica àquela, sem no entanto um elemento censurável).
Um exemplo.assim tão extremo serve apenas para demonstrar, ao mesmo tempo, tanto a imensa extensão da liberdade da arte quanto a existência de limites a ela: por mais longínquos que sejam os seus limites, eles existem.
O especial de natal do Porta dos Fundos, que eu não assisti, mereceria censura há, talvez, cinco ou dez anos atrás, pelos mesmos motivos que justificam-na hoje. Mas hoje, em 2019, não cabe esta censura.
O cristianismo já foi um projeto político concretizado no tempo em que a cristandade era, para todos os efeitos, idêntica à sociedade. Depois que a sociedade abandonou o cristianismo como projeto político, a religião passou a ser um aspecto entre outros da sociedade e, embora o cristianismo realmente seja verdade e deva ser ouvido (“convertei-vos e crede no evangelho”), ainda assim a verdade não deve ser imposta – embora Deus imponha a sua vontade na sua atuação discreta e misteriosa, se ele quisesse impor a verdade proclamada pelo cristianismo, não teria instiuído o livre-arbítrio.
Apesar disto, há cinco ou dez anos atrás seria muito justo considerar a censura ao especial de natal do Porta. Porém hoje o cristianismo está sendo usado desfiguradamente por uma porção da sociedade para a promoção de candidatos.
Há uma diferença muito grande entre um candidato identificar-se com o cristianismo e um candidato identificar o cristianismo consigo mesmo. Nem o Papa identifica o cristianismo consigo mesmo, já que ele é o legítimo sucessor de Pedro, e não a Igreja em si.
Candidatos cristãos são falácias, o máximo que pode haver são cristãos candidatos. Até mesmo Judas, mais cristão do que todos nós, porque era um dos Doze Apóstolos, tomou decisões erradas – e as consequências das suas decisões provam que quanto mais alto é o cargo do cristão (pois além de Apóstolo era quem cuidava do das finanças do grupo), piores serão os seus menores erros.
Quando a política “se torna” cristã, ela expõe o cristianismo ao jogo político com todas as características do jogo político, e faz parte deste jogo político a crítica oposicionista, que pode muito bem ser feita em uma obra artística – como um filme do Porta dos Fundos.
O cristianismo tem sua própria política (basta ler a Doutrina Social da Igreja); porém quando “o cristianismo” governa um país, ele é o poder vigente, e o poder vigente é, entre outras coisas, o alvo dos humoristas.
As propostas políticas cristãs podem e devem ser implantadas na sociedade, mas devem ser implantadas de modo a contemplarem toda a sociedade, que não é toda ela cristã, infelizmente.
E este não é o caso deste governo, que evoca o cristianismo e esquece-o conforme lhe convenha, não para trabalhar em prol da implantação de valores cristãos na sociedade, mas sim para satisfazer uma base de apoio – que insiste em adaptar o cristianismo às suas próprias convicções pessoais, ao invés de adaptar as próprias convicções ao cristianismo. Se a maioria da população fosse politeísta, Bolsonaro iria se declarar enviado por Baal com a mesma convicção.
Uma vez que o cristianismo foi reduzido (e desfigurado) a um projeto político, ele se torna alvo dos ataques a que todo e qualquer projeto político está sujeito.
Isto não torna louvável nem menos ofensivo o vídeo do Porta dos Fundos, mas dá a eles o direito de desfigurar as imagens cristãs exatamente do mesmo modo que os políticos cristãos estão fazendo.
Nem todo o direito é santo (como não o é o direito que alguns países tem de executar prisioneiros, por exemplo) e este direito que o Porta dos Fundos possui também não o é – e portanto eu não defendo o direito deles de fazerem o que fizeram. Mas eles – e, diga-se de passagem, qualquer artista – adquirem automaticamente este direito quando os governantes arrogam-se o direito, que também não é santo, de fazerem política com o cristianismo.
Do mesmo modo que um comerciante cristão não comercializa o próprio cristianismo – e se o fizer reduz o cristianismo aos seus negócios, igualmente um político cristão não politiza o próprio cristianismo, pois quando o faz, reduz o cristianismo à sua própria política. Cristianizar a política é necessário, mas politizar o cristianismo é uma blasfêmia maior – e anterior – às obras de arte que usam as imagens cristãs para darem o seu recado.