O Pensamento Hetero

Às vezes é bom falar de um texto que você leu a muito tempo. Não é didático nem instrutivo, pois você não sabe o que está inventando, o que está esquecendo e o que está falando corretamente. Mas é bom para ver o que ficou do texto.

Ele se chama O Pensamento Hetero, e a autora, Monique Wittig.
O que lembro bem do texto é simples: a sociedade, a cultura em que vivemos hoje não é só sexualmente hetero, mas seu próprio pensamento é hetero, na sobrevalorização da diferença, do diferente, dos opostos que se atraem, yin e yang, essas coisas. Aí vem a homossexualidade para mostrar o valor da semelhança, da igualdade, amor entre iguais, eu sou você e você é eu, etc.
Aí vem o que é genial no texto dela – o único que encontrei em português (eu queria muito ler outro, não traduzido, chamado “one not born a woman”, como meu inglês é tosco e eu só traduzi o título em português, que é o que eu me lembro,  eu quis escrever ali entre as aspas “ninguém nasce mulher”, que foi um texto comemorativo a não sei quantos anos do Segundo Sexo, essas festinhas intelectuais que a gente vai para ver gente nova, ganhar horas no currículo e, quem sabe, achar uma palestra que preste). Enfim, o parêntesis saiu pelo ladrão, mas o que é genial no texto dela é identificar na sociedade um pensamento hetero. Não digo pela sobrevalorização da diferença (sem querer descartar esse aspecto), mas a sociedade é mesmo hetero.
A Mary Mezzari escreveu um texto cujo título era “Porto Alegre é gay”, e é mesmo, São Francisco também, muitos lugares são gays. Mas vivem dentro de um pensamento hetero, especialmente heterossexual.
Claro que a partir daí, o dia em que ela ficar famosa, se ficar, vão querer descobrir o pensamento homossexual, o pensamento homossexual masculino, o pensamento lésbico, o pensamento bissexual, o pensamento lésbico-mas-curto-um-pau-de-vez-em-quando, o pensamento sou gay mas me apaixonei pela vizinha, o pensamento bissexual predominantemente homo, e por aí vai. Haja gente para enfiar em tantas categorias. Mas enfim.
Vivemos em uma sociedade hetero. Poderia ser uma sociedade homo, ou bi. Mas vivemos em uma sociedade que não valoriza a sexualidade de preferência à orientação sexual; que não valoriza a liberdade de amar quem se quiser de preferência a amar  determinado tipo de pessoa, e isso é um pensamento hetero. O pensamento hetero precisa e muito se justificar a todo instante – por isso que é tão importante transmitir genes adoidado por aí, ou pelo menos corroborar a idéia de que a sexualidade está em função da reprodução (homens gostam de mulheres ancudas, mulheres de homens  “provedores”, essas mutilações de Darwin que inventam, quer dizer, descobrem cientificamente). Nada contra que, um dia, uma sociedade bata no peito e diga “queremos manter a espécie”, mas não vá responsabilizar os genes por isso – pobres genes, culpados por tudo, desde a beleza até a ladroagem… 
Claro, isso não é a heterossexualidade. Não necessariamente. A heterossexualidade adota esse tipo de pensamento não porque esse tipo de pensamento está no “gene heterossexual”, mas sei lá porque motivo adota e esse é o fato. Poderia adotar outro, é uma contingência que aconteceu, uma possibilidade concretizada.
Eu lembro de quando eu era, digamos, mais jovem, eu tinha esperanças de que os homossexuais revolucionassem a sexualidade de uma tal maneira que em algum tempo já não haveria mais sentido em classificações assim. Claro, o ideal seria que eu fosse homossexual ao invés de ficar esperando os outros realizarem minhas projeções. Mas o que os homossexuais fazem hoje em dia? Justificam sua sexualidade, discorrem sobre as vantagens dela, encontram “genes homossexuais”, criam produtos homossexuais. Exatamente como funciona o pensamento hetero. 
Não sei em que, exatamente, Monique Wittig pensava quando se referia ao pensamento hetero, mas eu vejo esse pensamento como essa cristalização de uma possibilidade que vemos hoje. E que se expande para a homossexualidade, a ponto de um lado corroborar o outro – não na orientação sexual, mas na absolutização da orientação. 
Claro, claro, há excessões, tanto entre heterossexuais como entre homossexuais e os bissexuais também que são sempre esquecidos, coitados. 
Mas, assim como  há um certo feminismo que é fruto e mesmo um produto masculino (resgate da feminilidade, coisas do tipo) , há também uma homossexualidade hetero. 
Só espero que, um dia, ficar com alguém não seja – e nem precise ser, como é necessário hoje –  uma bandeira, um partido.