“O quadro inicial da fome no livro de Rute começa dirigindo-se a uma família de Belém (bêth lehem = casa do pão). Essa família foge da crise migrando para os campos de Moab onde estes viverão por mais de dez anos. Logo morre o chefe da família, e, embora casados com mulheres moabitas, os dois rapazes também morrem sem deixar descendentes, ficando três mulheres, viúvas e sem filhos (Rt 1, 1-4). Essa emigração é consequência do individualismo provocado pelos altos tributos cobrados pelo império, que obrigavam o povo a trabalhar dobrado para pagá-lo e mesmo com todo esforço a miséria toma conta das famílias. Diante da fome a família de Elimeleque busca alternativas. Noemi retorna a Belém com uma das noras, Rute, e lá sobrevivem das sobras da colheita de um parente próximo, que posteriormente se casa com a jovem viúva, moabita, e também compra a terra do falecido parente judeu. Segundo Lopes (1997) a fome é consequência dos projetos de reconstrução promovidos por Esdras e Neemias, pois acentuaram os conflitos existentes em Jerusalém. A imagem do mal no livro de Rute pode ser identificada pelo quadro de crise e fome na terra.
É uma história de libertação precisamente porque descreve claramente os elementos básicos de uma história libertadora (Gn 12,10-20; 20,1-17; 26,1-17; Ex 1-3), como opressão, situação de risco de vida, de fome, viuvez, migração, sem-terra e sem comida, escravidão, cena de fome força a migração. Apresenta protesto em dois extremos: crise (o grito amargo de Noemi- Rt 1,20) e sua resolução (Rt 4,14-17). Rao (2009) diz que a história mostra o motivo de uso de artifícios, por Rute e Noemi, para sobrevivência.
A história de Rute não é inocente, mas é uma crítica velada à estrutura iníqua que gera fome, morte, migração, viuvez, marginalização da mulher etc. Apela para uma lei do tempo dos juízes, a lei da respiga, como superação da fome. Marianno (2010) diz que “para sobreviver em tempos de fome, a viúva mais velha colocou a serviço das duas a sua experiência de mulher vivida, de ler o caráter das pessoas com os olhos que o tempo lhe permitia ter” (MARIANNO, 2010, p. 121). A autora destaca que Noemi buscava justiça, trazendo à memória a história de seus ancestrais, como o caso de um sogro que largou sua nora no esquecimento e essa precisou usar artifícios comprometedores para que ele cumprisse com suas obrigações sociais (Gn 38). Essa era uma lei humanitária que permitia aos pobres rebuscar a área depois que os trabalhadores fizessem a colheita (Lv 19,9-10; Dt24,19). Rute pede a Noemi permissão para “respigar” em alguma lavoura cujo proprietário ou funcionários a recebessem, pois estavam no início da colheita da cevada, e Rute entra em ação para superar o mal daquele momento (FERREIRA, 2014). Embora pareça como mendicância, essa prática era não só aceita como garantida por direito ao estrangeiro, órfão e viúva (CARRASCO, 2002).”
Gláucia Loureiro de Paula. O livro de Rute como proposta de superação do mal estrutural.
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