O dogma da virgindade de Maria costuma levar a atenção para a intimidade dela, e particularmente ao estado do seu hímen (“será que ficou intacto na hora do parto?”, “mas como uma criança pode ser concebida sem fazer sexo?” ou “bom, mas depois que Cristo nasceu ela e José…”), fazendo do nascimento de Cristo um enredo de ficção científica: “há muito tempo atrás, em uma galáxia muito distante, as mulheres eram fecundadas por inseminação artificial e pariam em cesáreas, numa sociedade repleta de virgens-mães guerreiras em uma batalha contra o mal…”; sem contar que, se o hímen intacto for mesmo o assunto principal do milagre, finalmente teremos a replicação dos milagres bíblicos em laboratório e a partir daí as portas ficam abertas para inventarem, Deus nos livre disso!, uma religião científica.
Mas dá para tirar alguma coisa mais interessante daí (ou menos desinteressante, porque eu não sou nenhum gênio também) do que o hímen de Maria ou uma sinopse meio plagiada de Guerra nas Estrelas.
No salmo 76/77 (versículos 12 a 20), Deus faz maravilhas, faz as águas tremerem e os abismos se agitarem só de se aproximar deles, a chuva cai e na tempestade se ouve a sua voz entre os trovões, e ainda por cima Deus abre o seu caminho em meio ao mar, uma estrada pelas águas mais profundas, e faz tudo isso sem deixar o menor rastro dos seus passos. Os relatos dos milagres de Deus costumam ser muito exuberantes, como os relatos de super-heróis fazendo coisas incríveis em um filme campeão de bilheteria para combater os inimigos, mas Deus não é um arrasa-quarteirão.
Já no Novo Testamento os milagres de Cristo, apesar de serem impactantes, são mais discretos (a cura de uma hemorragia aqui, de uma mão seca ali, um passeio sobre as águas para um público muito pequeno, quarenta dias de jejum, etc.), exceto talvez no caso de Lázaro. Estes milagres não eram para ser provas de credibilidade (como os dos milagreiros de hoje em dia), mas o cumprimento das promessas de libertação, que Deus improvisa quando não tem jeito, mas que acontece contidianamente nas coisas mais corriqueiras às quais ninguém dá bola por serem corriqueiras.
Essa discrição da ação de Deus serve, primeiro, para ninguém basear sua fé em milagres, que não comprovam a legitimidade de ninguém. Mas também servem para que a nossa participação na ação de Deus no mundo possa acontecer na vida em que nós vivemos, sem que necessariamente tenhamos que sair por aí com um cajado gritando “só Jesus salva” no meio das aglomerações para cumprir nossa missão religiosa. Ou seja, esta discrição da ação de Deus serve para que Deus possa impregnar nossas ações simples e comuns com a força da ação dele, mas sem efeitos especiais nem resultados verificáveis (pois ninguém vê o sinal dos passos de Deus, conforme o salmo 76/77, inclusive nas ações de Deus casadas às nossas).
A virgindade de Maria é um dogma justamente por isto: o Verbo se fez carne sem deixar indícios do que fez, sem provas nem vestígios do milagre, porque a função do milagre é a salvação e não virar um show barato. A intervenção de Deus é simples, discreta e cotidiana, e a única prova de que alguma coisa tem a ver com Deus é… bom, eu também não sei, porque a ação de Deus não acontece segundo um algoritmo.
A fé em Deus consiste justamente em ter fé sem depender de provas, evidências e demonstrações. Se às vezes aparece uma ou outra prova (como aquela freira subindo um morro enquanto chovia, e ela pensava “eu saí da minha casa, do meu país, pra vir pra cá cumprir a missão de Deus para ficar andando a pé morro acima abaixo de chuva depois de um dia inteiro trabalhando, meu Deus do céu você não vê que…” e não se sabe o resto do pensamento porque ele foi interrompida pela buzina do carro de um padre do outro lado da avenida, oferecendo para ela uma carona), somos nós que vemos ali uma prova, porque Deus já estava agindo antes dela surgir aos nossos olhos, e vai continuar agindo depois independente da nossa percepção.
Ou seja, o dogma da virgindade de Maria é sobre a simplicidade desconcertante da ação de Deus, que age sem deixar vestígios que comprovem o que ele fez, e da qual a nossa participação depende apenas de um sim a Deus, que muda tudo profundamente enquanto, ao mesmo tempo, mantém tudo no lugar.