O site 247 noticiou o despejo de uma invasão a uma propriedade da Arquidiocese de São Paulo. Aparentemente o local era um depósito e o pessoal, sem ter condições de ter alguma casa, o ocupou para morar.
Acho que é inquestionável o direito da Arquidiocese de reaver o seu imóvel, que afinal de contas serve à missão da Igreja e manter sua ocupação não vai resolver o déficit habitacional da cidade. Mas o modo como a Arquidiocese exerceu o seu direito é indefensável, já que não parece impossível primeiro procurar garantir algum alojamento para os invasores antes de despejá-los. É lamentável que ela não tenha respondido à reportagem, pois é necessário saber se ninguém na instituição pensou em ponderar se os direitos da Arquidiocese realmente valem mais do que a dignidade dos invasores, nem se, sendo uma instituição religiosa, é cabível agir como se fosse um simples CNPJ indiferente ao elemento humano, tal e qual uma empresa disposta a tudo, ou pelo menos disposta a ser completamente indiferente ao sofrimento alheio, para não ter prejuízo.
Não é nem o caso de pensar “será que Cristo teria agido assim?”, pois a missão de Cristo não implicava na posse de propriedades, diferente da Igreja, que no cumprimento de sua missão, delegada por Cristo, precisa ter propriedades no seu nome; mas é o caso de se perguntar quais são os pressupostos arquidiocesanos da licença que ela se deu para suspender os próprios ensinamentos quando se trata de defender seus próprios direitos, já que seus ensinamentos são os da própria Igreja, e os seus direitos se fundamentam no mesmo Deus que criou, por amor, os invasores despejados.
É cada vez mais forte por todo o mundo a inversão de valores que sobrepõe o cumprimento de um direito, muitas vezes legítimo, às consequências nefastas que este cumprimento vai causar nos outros: é o que vemos quando os produtores de carne exercem o seu direito de vender seus produtos pelo preço que bem entenderem, indiferentes à incapacidade da maioria das pessoas de pagá-lo; quando a Petrobrás vende a gasolina dentro do país pelo preço de exportação; quando as empresas precarizam o trabalho e reduzem os salários, no exercício dos direitos recém-adquiridos de explorar ainda mais os trabalhadores, indiferentes ao impacto que o exercício destes direitos terá sobre eles; quando um juiz condena à prisão alguém que roubou para matar a fome; quando a liberdade de expressão passa a servir à expressão de preconceitos, violências e mentiras; etc.
A tarefa da Igreja é, grosso modo, conduzir a humanidade a Deus, e os imóveis da Igreja servem de suporte a esta tarefa. Mas se uma porção da Igreja se permite pisar na própria humanidade que deve conduzir, representada naquele momento pelos invasores do imóvel, para garantir os direitos que poderia ter garantido sem pisar em ninguém, o que está em jogo ainda é a missão que recebeu de Cristo ou a substituição do poder que recebeu de Cristo pelos poderes humanos que todos os envolvidos sabem que um dia vão passar?
Se for assim mesmo, então esta exigência imperiosa dos próprios direitos, que são divinos, se transformam em uma profanação destes próprios direitos, ao usar recursos divinos para promover uma desumanização que dispensa qualquer ajuda para se disseminar no mundo.