«Para que uma Teologia do Coração de Jesus responda aos sinais dos tempos não bastam “hábitos de piedade” ou uma linguagem místico-contemplativa, litúrgica ou devocional por mais expressivos que possam ser. É a partir de uma autêntica misericórdia que surge um novo modo de perceber e de deixar-se tocar pelos mais graves problemas e desafios do mundo contemporâneo. Daí deriva uma atenção profética daquelas realidades onde o amor e a dignidade humana são negados.
Para compreender a Teologia do Coração é preciso olhá-la na perspectiva da libertação e a partir do Coração de Cristo como expressar a sensibilidade ao povo sofredor e ao mesmo tempo ser solidário com este povo oprimido que continuamente sofre e morre na busca por mais dignidade. A compaixão de Jesus não permaneceu somente no nível do afeto, desceu à prática, tornou-se carne na história, vestiu-se de acontecimento.
Luiz Carlos Susin utilizando o pensamento de Lévinas traduziu do hebraico a palavra “rakhamim” (misericórdia), que provém de “rekhem”, (útero), designando o gemido do ventre materno, a relação do útero e do corpo ao outro. Deus tem em si este gemido materno, a misericórdia, e é a partir de dentro que se dá a conhecer como libertador de um povo que se torna seu povo, gerando e libertando no mesmo gesto de misericórdia. “É maternalmente que se pode sofrer para além do sofrimento próprio, para além da doença e da dor que me reduzem ao meu próprio corpo”.
Em nossos dias, Deus continua com seu Filho se revelando na cruz das vítimas, na dor dos crucificados de todos os tempos e no sofrimento dos excluídos da religião e da sociedade. A morte de Jesus foi o selo final, coerente com sua vida. Quem, durante a vida se colocar ao lado dos oprimidos e contra os opressores, pagará com a própria vida o preço dessa opção, assim como foi com Jesus.
Jesus crucificado será sempre Jesus com o coração transpassado. Por isso que, ao mencionar os transpassados de hoje, o texto fará referência aos “povos crucificados” que Jon Sobrino faz referência em seus escritos, referindo-se a uma América Latina sofrida. Hoje em nosso mundo milhões de pessoas estão “crucificadas” – “transpassadas” pela fome e que sobrevivem nas mais diversas formas de desumanidade. Abordarei a situação da fome, da saúde e a realidade dos migrantes a nível mundial e por vezes com acenos para a América Latina. Essas realidades clamam por Misericórdia, por isso, a razão de estarem mencionadas no texto.
Jon Sobrino, em seus escritos, ao falar de Terceiro Mundo estará se referindo ao sul do Mundo (esta linguagem adotarei no texto) e para ele, não resta dúvida de que não há somente cruzes individuais, mas coletivas, e povos inteiros, por isso, “povo crucificado” e na ótica do
transpassado há povos inteiros “transpassados”.
A “cruz” para Sobrino não significa somente a pobreza, mas também a morte e morte é o que experimentam os povos do sul do Mundo sofrendo de mil maneiras. É a morte lenta, por causa da pobreza, é morte rápida e violenta por causa das repressões e guerras, é morte indireta, quando os pobres são privados até de suas culturas para serem subjugados, enfraquecidos em sua identidade, tornando-os indefesos. E continua Sobrino, “morrer crucificado não significa simplesmente morrer, mas ser morto pelos poderes que se apossam de continentes em conivência com os poderes locais”.»
Neusa Falcade. Coração de Jesus : história, cultura e teologia em torno de uma devoção religiosa.