Não tenhas medo

 

Photo by Miguel Bruna on Unsplash

Quando Deus pede a Jeremias que não  tenha medo, ele pede, antes disto, que ele tenha coragem (“põe a roupa e o cinto, levanta-te e comunica-lhes tudo o que eu te mandar dizer”). Os teólogos costumam identificar determinadas palavras ou expressões que possuem um significado que não está explícito naquela palavra ou expressão – como no caso de “conhecer”, que pode significar aquilo que entendemos por conhecer, mas também pode  significar “sexo”. Esta identificação entre “põe a roupa e o cinto…” e “coragem” que eu estou fazendo é resultado exclusivamente da minha especulação e, mais  precisamente, uma interpretação direcionada ao que eu quero dizer – ou seja, eu não estou interpretando a Bíblia, mas tentando explicar uma ideia. 

Muito ardiloso.

Mas a questão é que o pedido para que o profeta tenha coragem está separado do pedido para que não tenha medo. Afinal, ter coragem e não ter medo são duas coisas bem diferentes.

É necessário ter coragem para anunciar a Palavra de Deus, em primeiro lugar, porque é a Palavra de Deus, e no Antigo Testamento temer a Deus era um argumento muito mas funcional do que qualquer outro (não que hoje não seja, mas somos uma geração mais ousada em relação a Deus, tanto para bem quanto para mal). Ainda hoje é necessário coragem para anunciar a Palavra de Deus e pelo mesmo motivo do temor, mas hoje sabemos que este temor precisa ser consequência do amor a Deus e não da falsa impressão de que estamos lidando com um psicopata divino que às vezes o AT pode passar. Além disto, não é muito confortável confrontar o mundo com a Palavra de Deus. Existem outros motivos mas eu não tenho tempo agora.

Mas não ter medo, neste caso, está separado da frase de encorajamento porque Deus está se colocando como a defesa do profeta. O medo é um mecanismo de defesa que faz alguém sair correndo ou sair na porrada diante de uma ameaça, por exemplo, e é muito recomendável – especialmente sair correndo – de modo geral. Mas o enfrentamento da ameaça, que pode parecer  coragem, no fundo é medo. E Deus não está pedindo para o profeta enfrentar as ameaças, nem sair correndo delas.

Nos tempos paranóicos em que vivemos, onde uma pessoa não precisa ser clinicamente paranóica para embarcar nas paranóias coletivas como a invasão extraterrestre ou o fantasma comunista, entre muitas outras, é necessário não ter medo neste sentido. Ainda mais no que diz respeito à religião, em que facilmente o medo pode levar alguém a sair correndo (como o jovem nu que sai correndo no Evangelho de Marcos) ou, então, a enfrentar na porrada as ameaças anti-cristãs que alguém identifique por aí.

Isto não é sobre as desgraças, sejam as maiores (a morte, a fome, etc.) ou as menores (perder o ônibus, o celular ou a hora, etc.), que Deus eventualmente impede ou permite na vida das pessoas. É sobre não se colocar nem como a muralha de Deus nem como a espada de Deus. Se Deus se compromete a defender o profeta, ele não está sugerindo que ele não leve um guarda-chuva num dia nublado ou vá para o centro sem nenhum trocado no bolso para garantir, quer dizer, não está sugerindo que o profeta seja imprudente, e nem o assunto é sobre prudência; mas seu compromisso em defender o profeta é para que ele não saia correndo diante das ameaças (reais ou imaginárias) que houverem por estar comunicando o que Deus está mandando, bem como não saia atacando seus antagonistas “reis de Judá e seus príncipes, os sacerdotes e o povo da terra”.

Não adianta os cristãos tentarem atacar nem se defender dos seus inimigos, sejam eles  reais ou imaginários, sejam eles pessoas ou conceitos. Para isto que serve o “não tenhas medo” de Deus ao profeta: para que o cristianismo não seja reduzido a um instrumento de guerra, seja como arma ou como escudo, como tão facilmente se transforma ao longo de toda a história.