Houve um tempo em que cada tribo tinha os seus deuses, e as lutas entre os povos correspondiam a lutas entre estas divindades. Depois disto, os romanos começaram “acumular” divindades e redistribuí-las entre os seus povos conquistados, desde que incluíssem no seu panteão as divindades romanas junto às próprias divindades originárias.
Agora, no Evangelho, Cristo repete este aspecto tribal da sua missão: tendo sido enviado ao seleto povo de Deus, não seria adequado desperdiçar seu amor e seu poder com os pagãos. Mas a mulher cananéia insiste que, pelo menos, “as migalhas” deste amor e deste poder possam beneficiá-la. Aí Jesus elogia a fé dela e cura sua filha.
Hoje sabemos que, embora o povo judeu seja ainda uma espécie de irmão primogênito na fé, Deus oferece o seu amor a todos os povos ou, talvez mais especificamente, a todas as pessoas independente de qual seja o seu povo.
Desatrelar a salvação da ancestralidade de alguém ou da sua filiação a alguma bandeira nacional é muito conveniente nestes tempos em que nem mesmo um indivíduo é apenas ele, e mesmo o seu povo, quaisquer que sejam os critérios que determinem este povo, não se limita a apenas um e, mesmo assim, ninguém mais é obrigado a assumir compromissos com povo algum.
Isto não significa que possamos dissociar o amor a Deus do amor aos outros, nem a própria salvação da salvação coletiva, que são associações imprescindíveis porque Deus não salva ninguém com exclusividade.
Mas significa que estamos tão fragmentados que, se apenas uma pessoa já é uma comunidade inteira que ainda por cima possui inúmeros conflitos internos, a(s) coletividade(s) na(s) qual(is) o indivíduo se insere ou (é inserido) não pode ter limites claros nem observáveis.
Esta fragmentação sempre corre o risco de ser tomada por um golpe e ser sujeitada a algum tipo de totalitarismo – tanto capitalista, que nunca deixa de aprofundar um pouco mais a sua opressão, quanto comunista, este espectro que ronda não só mais a Europa mas o mundo todo apesar de ter virado moda vê-lo já concretizado para instigar o combate ao que não existe. Além destes (não únicos) totalitarismos coletivos, algum fragmento do indivíduo também pode dar um golpe e assumir o poder como um déspota interno, criando as ilusões de “eu sou”, que só Deus pode dizer de verdade e sem se tornar um tirano com isto.
Apesar destes perigos, é com estas fragmentações que temos que lidar, as migalhas fragmentadas de si que nos compõem, que só Deus pode reunir sem fazê-lo à base da opressão.