“A maior parte das grandes religiões que têm procurado a união com Deus na oração, têm indicado também os caminhos para a obter. Pois que « a Igreja católica nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo »,(18) não se deverão desprezar, por preconceito, tais indicações, só por não serem de origem cristã. Poder-se-á, pelo contrário, colher nelas o que contêm de bom, tendo o cuidado naturalmente de não perder nunca de vista a concepção cristã da oração, a sua lógica e as suas exigências, sendo do ponto de vista desta totalidade que aqueles fragmentos deverão ser formulados de novo e assim assumidos. Dentre tais « fragmentos » deve-se nomear, em primeiro lugar, a aceitação humilde dum mestre experimentado na vida de oração e das suas directrizes; deste aspecto sempre se teve consciência na experiência cristã desde os tempos antigos, em particular desde a época dos Padres do deserto. O mestre, experimentado no « sentire cum Ecclesia », deve não somente guiar e chamar a atenção sobre certos perigos, mas, como « pai espiritual », deve introduzir também, de modo vital, tratando de coração para coração, na vida de oração, que é dom do Espírito Santo.
A tardia era clássica não cristã distinguia, de bom grado, três estádios na vida de perfeição: as vias da purificação, da iluminação e da união. Tal doutrina serviu de modelo para muitas escolas de espiritualidade cristã. O esquema, em si válido, carece todavia de alguns esclarecimentos que permitam uma sua correcta interpretação cristã, evitando perigosos equívocos.
A procura de Deus através da oração deve ser precedida e acompanhada pela ascese e pela purificação dos próprios pecados e erros, porque, segundo a palavra de Jesus, somente « os puros de coração verão a Deus » (Mt. 5, 8). O Evangelho visa sobretudo uma purificação moral de falta de verdade e de amor e, a um nível mais profundo, de todos os instintos egoísticos que impedem o homem de reconhecer e aceitar a vontade de Deus na sua pureza. Não são as paixões enquanto tais que são negativas (como pensavam os estóicos e os neoplatónicos): mas a sua tendência egoísta. É dela que o cristão se deve libertar, para chegar àquele estado de liberdade positiva que a era clássica cristã chamava « apátheia », a Idade Média « impassibilitas », e os Exercícios Espirituais de Santo Inácio « indiferencia ».(19) Tudo isto é impossível sem uma radical abnegação, como se vê também em S. Paulo, que usa abertamente a palavra « mortificação » (das tendências pecaminosas).(20) Só esta abnegação torna o homem livre para realizar a vontade de Deus e de participar na liberdade do Espírito Santo.
Terá, por isso, de ser interpretada correctamente a doutrina daqueles mestres que recomendam « esvaziar » o espírito de todas as representações sensíveis e de todos os conceitos, mantendo, porém, uma amorosa atenção a Deus, de modo que permaneça no orante um vazio que pode ser então « cheio » pela riqueza divina. O vazio de que Deus precisa é o da renúncia ao próprio egoísmo, não necessariamente o da renúncia às coisas criadas que Ele nos deu e no meio das quais nos colocou. Não há dúvida que na oração nos devemos concentrar inteiramente em Deus e afastar o mais possível aquelas coisas deste mundo que nos prendem ao nosso egoísmo. Santo Agostinho é um mestre insigne sobre este ponto: se queres encontrar a Deus — diz —, abandona o mundo exterior e entra em ti mesmo. Todavia — prossegue —, não fiques em ti mesmo, mas vai mais além, porque tu não és Deus: Ele é mais profundo e maior do que tu. « Procuro a sua substância na minha alma e não a encontro; meditei, todavia, sobre a pesquisa de Deus e, inclinado para Ele, procurei conhecer, através das coisas criadas, ‘a realidade invisível de Deus’ (Rm. 1, 20) ».(21) « Fechar-se em si mesmos »: eis o verdadeiro perigo. O grande Doutor da Igreja recomenda o concentrar-se em si mesmos, mas também o ultrapassar o eu que não é Deus, mas só uma criatura. Deus é « interior intimo meo, et superior summo meo ».(22) Com efeito, Deus está em nós e connosco, mas transcende-nos no seu mistério.(23)
Do ponto de vista dogmático, é impossível atingir o amor perfeito de Deus, se se prescinde da sua auto-doação no Filho encarnado, crucificado e ressuscitado. N’Ele, sob a acção do Espírito Santo, tomamos parte, por pura graça, na Vida intra-divina. Quando Jesus diz: « Quem me vê, vê o Pai » (Jo. 14, 9) não se refere simplesmente à visão e ao conhecimento exteriores da sua figura humana (« a carne para nada serve »: Jo. 6, 63). Aquilo a que Ele se refere é, pelo contrário, um « ver » tornado possível pela graça da fé: um « ver » através da manifestação sensível de Jesus, o que Ele, como Verbo do Pai, quer verdadeiramente mostrar-nos de Deus (« O Espírito é que vivifica […]; as palavras que vos disse são espírito e vida », ibidem). Neste « ver » não se trata da abstracção puramente humana (« abs-tractio ») da figura em que Deus se revelou, mas de colher a realidade divina na figura humana de Jesus; de colher a sua dimensão divina e eterna na sua temporalidade. Como diz Santo Inácio nos Exercícios Espirituais, nós deveríamos procurar colher « o perfume infinito e a doçura infinita da Divindade » (n. 124), partindo da verdade revelada finita donde começámos. Ao elevar-nos, Deus é livre de « esvaziar-nos » de tudo o que nos agarra a este mundo, livre de atrair-nos completamente para a Vida trinitária do seu amor eterno. Todavia, este dom pode ser concedido somente « em Cristo, mediante o Espírito Santo » e não através das próprias forças, prescindindo da sua revelação.
No caminho da vida cristã, à purificação segue a iluminação mediante o amor que o Pai nos dá no Filho e a unção que d’Ele recebemos no Espírito Santo (cfr. 1 Jo. 2, 20). Desde a antiguidade cristã, fala-se da « iluminação », recebida no Baptismo. É ela que introduz os fiéis, iniciados nos divinos mistérios, no conhecimento de Cristo, mediante a fé que age por meio da caridade. Alguns escritores eclesiásticos até falam explicitamente da iluminação recebida no Baptismo como fundamento daquele sublime conhecimento de Cristo Jesus (cfr. Fil. 3, 8) que é definido como « theoria » ou contemplação.(24)
Mediante a graça do Baptismo, os fiéis são chamados a progredir no conhecimento e no testemunho dos mistérios da fé « mercê da íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais ».25 Nenhuma luz de Deus torna « superadas » as verdades da fé. As eventuais graças de iluminação que Deus pode conceder ajudam a esclarecer melhor a dimensão mais profunda dos mistérios professados e celebrados pela Igreja, na esperança que o cristão possa contemplar a Deus como Ele é na glória (cfr. 1 Jo. 3, 2).
O cristão orante pode finalmente chegar, se Deus o quer, a uma experiência particular de união. Os sacramentos, sobretudo o Baptismo e a Eucaristia, (26) constituem o início objectivo da união do cristão com Deus. Por intermédio duma especial graça do Espírito, o orante pode ser chamado, sobre este fundamento, àquele tipo peculiar de união com Deus que, no ambiente cristão, é qualificado como mística.
O cristão precisa certamente de determinados tempos de retiro na solidão, para se recolher e reencontrar o seu caminho junto de Deus. Mas, dado o seu carácter de criatura, e de criatura que sabe que toda a sua segurança está na graça, o seu modo de aproximar-se de Deus não se funda numa técnica, no sentido estrito da palavra. Tal facto contradiria o espírito de infância exigido pelo Evangelho. A mística cristã autêntica não tem nada a ver com a técnica: é sempre um dom de Deus, do qual se sente indigno quem dele beneficia.(27)
Há determinadas graças místicas, conferidas, por exemplo, aos fundadores de instituições eclesiais em favor de toda a fundação, e também a outros santos, as quais graças caracterizam a sua peculiar experiência de oração e não podem, como tais, ser objecto de imitação e da aspiração por parte doutros fiéis, mesmo pertencentes àquela instituição, e desejosos duma oração sempre mais perfeita.(28) Podem existir diversos níveis e diversas modalidades de participação da experiência de oração dum fundador, sem que a todos deva ser conferida a mesma forma. Aliás a experiência de oração que ocupa um lugar privilegiado em todas as instituições autenticamente eclesiais antigas e modernas, é sempre, em última análise, algo de pessoal. E é à pessoa que Deus dá as suas graças em vista da oração.
A propósito da mística, deve-se distinguir entre os dons do Espírito Santo e os carismas concedidos, de modo totalmente livre, por parte de Deus. Os primeiros são uma realidade que cada cristão pode reavivar em si, mediante uma vida zelante de fé, de esperança e de caridade, para poder assim, através duma séria ascese, chegar a uma certa experiência de Deus e dos conteúdos da fé. Quanto aos carismas, S. Paulo afirma que são outorgados sobretudo em favor da Igreja, dos outros membros do Corpo místico de Cristo (cfr. 1 Cor. 12, 7). A tal propósito, deve-se recordar, seja que os carismas não podem ser identificados com dons extraordinários (« místicos ») (cfr. Rm. 12, 3-21), seja que a distinção entre os « dons do Espírito Santo » e os « carismas » pode ser bastante fluida. É certo que um carisma fecundo para a Igreja, não pode ser exercitado, no âmbito do Novo Testamento, sem um determinado grau de perfeição pessoal. Doutro lado, é certo que todo o cristão « vivo » possui uma tarefa peculiar (e neste sentido um « carisma ») « para a edificação do Corpo de Cristo » (cfr. Ef. 4, 15-16),(29) em comunhão com a Hierarquia, à qual « compete de modo especial não extinguir o Espírito mas julgar tudo e conservar o que é bom » (Lumen gentium, n. 12).”
Alguns aspectos da meditação cristã
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