Maria, Mãe de Deus

Às vezes as pessoas tratam as diversas religiões como se fossem variações diferentes da mesma coisa, o que não é verdade. Apesar disto, existem semelhanças óbvias, e diferenças marcantes, algumas vezes muito práticas, como uma igreja pela qual eu passei no intervalo de algum curso de não sei o que, e me pareceu ter cara de igreja católica, ia ter missa dali alguns minutos, mas como saber se era ou não sem perguntar? Aí vi uma foto do papa e ficou fácil porque, embora a religião católica não seja centralizada do papa, acho que só ela se dá ao trabalho de pendurar alguma foto dele nas paredes.

Outro “diferencial” é Maria, que amanhã é o tema da solenidade do primeiro dia do ano e também fica muito em evidência nesta época do Natal. A disciplina da teologia que estuda Maria se chama “Mariologia”, um nome que deveria ser repensado porque também pode se aplicar ao estudo do doce de mariola, e que eu confesso que passei correndo por cima, por ter sido justamente no final do ano e absolutamente tudo é correria em final de ano, com ou sem pandemia.

No fim a vivência prática da relação com Maria se sobrepõe muito a qualquer estudo, porque em relação a ela se tem muito mais a viver do que a dizer, é a impressão que eu tenho.

E justamente por ser um assunto mais amplo nos seus aspectos práticos do que teóricos, ele implica muito na dimensão social da devoção a Nossa Senhora. Eu acho que faz muita falta a (pelo menos aparente) dissociação entre a devoção a Maria e os aspectos sociais disto.

Os católicos, quando querem, sabem se mobilizar para além da Internet, o que é provado, por um exemplo agradável e positivo, nas romarias para Aparecida, e por um exemplo desagradável e negativo, as reações quase histéricas contra o aborto.

Até quem é favor da legalização do aborto é, na sua maioria, contra abortar, pois o foco deles não é o aborto em si mas a precariedade das estruturas sociais que transformam a gravidez, que de outra forma é uma graça de Deus, em uma maldição terrível para quem sofre mais com a exploração capitalista. Claro que há histeria também do outro lado, apesar de a histeria católica quase sempre gritar mais alto, mas poderia ser de outra forma, e justamente dentro desta espiritualidade mariana (observação irrelevante: “Marianalogia” soaria melhor que “Mariologia”).

O “sim” de Maria não foi um sim parcial, como parece ser a defesa da vida dos grupos pró-vida que se mobilizam só quando uma criança estuprada vai abortar ou quando o aborto é aprovado na Argentina, por exemplo. O “sim” foi um sim integral, em defesa da vida em toda a sua extensão, incluindo, portanto, a vida das crianças que vivem em condições precárias, dos adolescentes que precisam trabalhar e por isto não podem estudar, dos jovens que depois de não terem podido estudar, não conseguem trabalhar, e por aí vai: os adultos em situações precárias, os idosos abandonados, ou que então ainda são obrigados a trabalhar no limite de suas forças… Os direitos humanos, tão atacados e menosprezados nestes tempos bolsonaristas, são a “versão civil” da exaltação dos humildes e dos famintos que Deus saciou no Magnificat cantado por Maria na visita a Isabel, relembrada no mínino em todas as segundas e nos sábados, porque é o segundo mistério gozoso do terço. E o próprio Magnificat é repetido diariamente entre o fim da tarde e o início da noite por quem reza a Liturgia das Horas junto com toda a Igreja.

O combate ao aborto deveria ser um tópico (fundamental, mas localizado) dentro do movimento de defesa da vida, e não sua maior expressão. Mas da maneira como é, parece ser apenas formalmente uma luta católica, ou mesmo religiosa, servindo na prática a outros interesses bem distantes de qualquer coisa que possa ser chamada de “religião”.

Enquanto a defesa da vida não for integral como o sim de Maria, e também como ensina a doutrina da Igreja, não só o aborto vai passar mais cedo ou mais tarde, mas toda a boiada que já passou e os defensores da vida não notaram ou então não dão bola, vai continuar passando por cima de todos nós, sejam conservdores, progressistas, crentes, ateus ou quem quer que seja – especialmente os mais vulneráveis.