É possível dizer alguma coisa desta passagem do Evangelho além do que Cristo já disse, que é necessário o desapego a tudo aquilo que não seja o próprio Cristo para poder segui-lo?
Talvez menos importante seja uma reflexão sobre os dois exemplos de renúncia, do operário da torre e do rei ante uma ameaça de guerra.
Ambos estão a um passo do desconhecido: a torre não existe ainda, é só um projeto, e a guerra ainda não começou, embora o exército adversário já se aproxime. Diante dos dois há duas possibilidades: o sucesso e o fracasso. E eles têm a expectativa de sucesso, seja ver a torre construída, seja ver o exército inimigo derrotado.
Esta expectativa é posta em dúvida e ela que poderia ser ignorada por uma visão estreita ou pelo desejo imoderado de sucesso. Tal ignorância é um apego cego às próprias metas e objetivos no caso do operário e à vitória no caso rei.
Cristo aponta a necessidade de que os.dois verifiquem as condições de suas iniciativas para se certificarem de que não serão frustrados, pelo menos, por algo que poderia ter sido previsto se tivessem parado para refletir por um momento antes de se jogar à ação.
O operário da torre precisa considerar a possibilidade de não vê-la construída, talvez não agora, talvez nunca. O rei precisa considerar a possibilidade de não vencer e garantir a paz pela negociação diplomática. Os dois casos implicam renunciar aos projetos e objetivos muito importantes em prol de algo ainda mais.importante: a paz que vale mais.do que a vitória, e a aceitação dos próprios limites diante da falsa autosuficiencia.
O grande impasse em que este trecho do Evangelho nos coloca é: “mas como renunciar à família e à vida se ambas são importantes???” – lembrando que a própria Igreja ensina que a família e a vida são um projeto de Deus.
Estaríamos dentro de uma armadilha se não fosse Cristo. Pois estes – e todos os outros – projetos são pautados por Deus, e nós que tocamos estes projetos precisamos fazer isto seguindo Jesus e não os nossos narizes.
Aquilo de que nos desapegamos para seguir Jesus pode ser bom ou mau (e é bom no caso da família e da vida), e se nos apegamos em primeiro lugar a Cristo (“buscai primeiro o Reino de Deus”) isso não significa jogar todo o resto no lixo. Significa, sim, relacionar-se com tudo (inclusive com a família e a própria vida) conforme as condições desejadas por Deus, e não conforme nossos próprios juízos e convicções.
Ressignificar tudo partindo de Deus implica em abandonar os próprios.valores e isto dói, mas valorizar as coisas a partir desta ressignificação fará delas o que sem Deus não poderíamos fazer: torná-las coisas divinas sem que deixem de ser, ao mesmo tempo, humanas.