“As religiões arcaicas se situam num tempo anterior à “era axial”. Algo de novo acontece entre os anos 900 e 200 antes de Cristo (700 anos que, nas eras da humanidade, são um período de tempo relativamente
curto. Da Europa à China opera-se uma grande transformação religiosa e cultural que tem vigência até nossos dias. Por isso se chamaram de “era axial”, os anos que estabeleceram o eixo de nossa era. Na China, o taoísmo e o confucionismo reorganizam a religião e a vida do povo desde uma visão sapiencial e ético-política. Na Índia, o budismo reforma profundamente o hinduísmo, introduzindo o caminho óctuplo da espiritualidade, no qual o desapego e a renúncia ao desejo, e, consequentemente, a renúncia de qualquer sacrifício, são enorme salto de qualidade. Na Grécia, o nascimento e o exercício da racionalidade criam um espaço autônomo, com medidas, proporção e equilíbrio formal, teoria filosófica, lógica e jurídica, acuando os deuses para o Olimpo e criando a polis e a democracia, a ética política. Já os romanos saltam do direito de sangue para o direito da pessoa jurídica, uma invenção que permite operacionalizar a universalidade que os gregos alcançavam pela razão e os orientais pelas reformas religiosas. Este é o tempo em que se deixa para trás a vida e a religião tribal em torno de sacrifícios, para se abrir à universalidade através da ética da justiça objetiva, como também da ética da bondade, enfim, da compaixão.
Israel participa desta grande transformação da “era axial”. Em Israel, os profetas relativizam e contestam os cultos e o templo para insistir na centralidade religiosa da justiça e da misericórdia: “misericórdia e não sacrifício!” (Os 6,6). Essa profunda mudança foi aprendida com enorme crise, no caso de Elias; e foi exigida com consequências conflituosas e dolorosas em Isaías e Jeremias; tornou-se apocalíptica e missionária em Ezequiel, em Daniel e nos profetas do exílio. Mas tornou-se um “fio dourado” em meio às regressões sacrificais de Israel. A figura de Abraão é recordada como fundamento deste salto de qualidade: Abraão é a memória de um sacrifício que não foi cumprido, uma ordem religiosa de oferecer o primogênito em holocausto ao “grande patriarca celeste”, para reforçar o poder do patriarca terrestre; mas essa ordem foi transgredida em vista de uma nova obediência e de um novo interdito: a de “não fazer mal ao menino”. Abraão deixa assim a religião de seus pais, de sua pátria e de sua cultura, e se torna um errante, fugitivo e nômade; abre-se para um caminho de futuro, cortando os laços com o passado. É pai de um povo que vive de promessa e pai de muitos povos como modelo de fé que supera o sacrifício. De Abraão a Jesus, pode-se ler a Escritura com o fio dourado da busca de superação do sacrifício, desmascarando ou ao menos diminuindo, tornando assimétrica a violência que está sacralizada na justiça da vingança, na guerra aos outros, nas punições de todo tipo.
O próprio Girard, em O bode expiatório, comenta os Evangelhos para constatar como as atitudes de Jesus, as suas curas e libertações, seus ensinamentos, tudo leva para a liberdade abraâmica de não obedecer à
Lei quando esta mesma Lei exige morte ou adoece e entristece, ainda que a Lei seja sagrada e constitua o coração da religião. O “Reino de Deus” é um critério de liberdade em relação a qualquer tipo de sacrifício. Mas Jesus acaba sendo sacrificado por causa disso, por relativizar e ameaçar o templo e a lei, a religião estabelecida sobre o retorno do sacrifício. Jesus repete: “Misericórdia e não sacrifício!” (Mt 12,7; 9,13; Lc 19,10).
Em João 8, 33ss, depois de Jesus salvar a pecadora da lei e do sacrifício e de se proclamar como palavra libertadora com autoridade, desencadeia-se com seus interlocutores uma discussão sobre quem é filho de Abraão. Jesus nega-lhes esse título: “Vós procurais matar-me, a mim que vos falei a verdade – isso Abraão não fez!” E em seguida desmascara-os como filhos de Caim, o homicida e pai da cidade e da cultura que escondem inimizade e violência nas muralhas e no manto das boas aparências – filhos do homicida e do pai da mentira desde as origens. Esta cena dramática desmonta a violência mascarada em justiça, em heroísmo e religião.
Finalmente, a Páscoa de Jesus, em todos os seus passos, é uma expulsão do “príncipe deste mundo”, o “acusador”, cujo poder é a violência mascarada e potencializada na religião, na ordem sagrada que sacrifica. Mas Jesus “amou até o fim” e atravessou a violência, rompendo seu círculo na liberdade do perdão, liberdade em relação ao círculo fechado do ódio e da vingança. O túmulo “vazio” testemunha que a morte de Jesus não é a do herói sacrificado cujo corpo, em grande mausoléu, se torna centro sagrado das instituições de poder e de ordem. A morte de Jesus termina num túmulo vazio. Não é a morte sagrada, o sacrifício arcaico, que salva. A ressurreição de Jesus não é resultado de um sacrifício, mas de um amor fiel e de um protesto com poder criador de Deus. De fato, a ressurreição, como coroamento do fio dourado da Escritura, é a definitiva vitória da misericórdia sem sacrifício, porque é uma vitória sem produzir vencidos; vitória sem vingança, sem novas vítimas; é força suave que chega por testemunhas femininas, trazendo outra lógica, a da religião do dom de vida sem precisar de morte; do reconhecimento e da ação de graças, sem precisar do preço da vida. Doravante, a palavra “sacrifício”, o da “Nova e Eterna Aliança”, profetizada por Jeremias e começada por Jesus, está livre para se referir à celebração do dom de Jesus numa refeição que inclui a todos e a todas como irmãos e irmãs.
A universalidade cristã, onde não há mais grego ou judeu, homem ou mulher, livre ou escravo, mas onde todos se juntam à mesa de ação da graças – a Eucaristia – é uma universalidade concreta, de corpos e de relações sociais, e não teórica ou jurídica como a universalidade grega e romana. O Cristianismo se tornou a religião da misericórdia e da Eucaristia, e, por isso, da igualdade e da liberdade. Mas os cristãos foram perseguidos por isso.”
Luiz Carlos Susin. Da religião do sacrifício à religião da fraternidade.