Jesus Cristo veio ao mundo com uma missão espiritual, redimindo espiritualmente a cada ser humano quando sacrificou-se (e enquanto ainda sacrifica-se) na sua Paixão e ressuscitou no Domingo, tanto é que, surpreendentemente, repreendeu até mesmo o materialismo excessivo do povo quando percebeu que este povo o seguia somente para encher a barriga (Jo 6,26), apesar de, pelo contrário, usualmente repreender e condenar, a favor do povo oprimido, os poderosos opressores. Um povo oprimido é quase sempre um povo faminto, já que uma das primeiras providências dos opressores é, de um jeito ou de outro, fomentar a fome, seja para enfraquecer fisicamente as possibilidades de resistência daqueles que oprime, seja para forçar aqueles que oprime a dependerem do próprio opressor para comerem – e Jesus passa por cima de tudo isto para criticar quem o seguia por comida.
Mas se a fé em Deus não se sustenta no materialismo de quem pretende que esta fé ponha comida no prato (ou dinheiro na conta, o que é muito mais comum), a desconexão com a realidade material que pretende “ganhar um fuscão no Juízo Final” (Comportamento Geral – Gonzaguinha) purificando-se de qualquer materialidade revela um déficit de fé que é nocivo, não pelo déficit em si (quem é que não precisa repetir o “eu creio, ajude a minha falta de fé” de Mc 9,24?), mas por esconder este déficit sob aquela pureza.
E realmente esta isenção de mundo purifica muito os isentos, sempre rezando e ligados em Deus, mas (exceto por um retiro espiritual temporário para fortalecimento da fé) isto os deixa semelhantes aos piores materialistas gananciosos que acumulam riqueza para si sem reparti-la com o resto.
Neste tipo de acumulador, egoísta e ganancioso, é até fácil identificar o seu materialismo nocivo; já o materialismo de quem não é egoísta nem ganancioso, mas (sendo rico ou não) procura promover materialmente o bem alheio, é mais difícil detectar a chaga materialista, e mais difícil ainda apontá-la, por causa da nobreza que há na promoção alheia – e de qualquer forma, é muito menos pior um materialismo solidário do que um egoísmo materialista. Mas este materialismo altruísta é uma versão não-religiosa daquela espiritualidade isenta do mundo, e no fim das contas ambos separam a alma e o corpo no melhor estilo “golpe do Dr. Estrange”, cada um guardando para si uma porção da realidade enquanto renega a outra.
E é esta espiritualidade isenta do mundo que condena coisas como o Concílio Vaticano II, o método histórico-crítico de interpretar a Bíblia, o uso de conceitos sociológicos e antropológicos na teologia e, também, um certo tipo de espiritualidade socialmente engajada. Este tipo de espiritualidade tem os seus riscos óbvios (dos quais a Teologia da Libertação poderia ser um ótimo estudo de caso), mas são os mesmos riscos que correram os servos da Parábola dos Talentos (Mt 25, 14-30) que não esconderam os talentos que receberam em um buraco para devolvê-los intactos ao seu dono – a parábola fala dos que multiplicaram os talentos e do que escondeu o que recebeu, mas não da possibilidade de perder os talentos na tentativa de fazê-los render, se bem que talvez isto esteja implícito tanto no elogio dos que os fizeram render, quanto na condenação do que escondeu o talento.
A esta santidade com pés de barro, o papa Francisco contrapõe “sujar os pés na lama”, que é o resultado de encarnar a espiritualidade (como Maria encarnou o Evangelho, nas palavras do Documento de Puebla, 301) em vez de esconder-se nela para deixá-la intacta às custas de negá-la aos outros. (continua)