Imanência e transcendência

     Quando o Papa Fransciso escreveu, antes do pontificado, que “… na base de toda atitude corrupta há um cansaço de transcendência … Esse seria um primeiro traço característico de toda corrupção: a imanência.” (Bergoglio, 2013, p. 18) fui pego de surpresa.

     Uma surpresa menor do que teria sido há cinco ou dez anos atrás, é verdade; porque faz algum tempo que venho desconfiando da imanência – se bem que, há cinco ou dez anos atrás, esta surpresa se manifestaria como revolta contra o impedimento à “chafurda na imanência” (Beauvoir, 1967, p. 363) que, de qualquer modo, é tão nefasta quanto a chafurdagem na transcendência (como a dos Essênios, conforme o já mencionado texto do então cardeal Bergoglio: “Para eles, os pecadores e o povo estão longe desse plano [a salvação e a pertença ao grupo escolhido], são ineptos para engrossar esse grupo”, p. 37).
     Eu, que já fui um “essênio” e corro o risco constante de voltar a sê-lo, aprendi a desconfiar da transcendência ao me ver, ainda que inconscientemente, refletido em personagens sectários ou segregadores de qualquer natureza.
Como bem descreve o Papa, embora ele se refira ao deslocamento da corrupção a um plano diferente (do plano) do pudor e não ao fechar-se na transcendência, esta “segregação essenista”, ao “ situar-se aquém da transcendência, necessariamente vai além em sua pretensão e em sua complacência” (Bergoglio, 2013, p. 30).
     A desconfiança da transcendência me levou à investigação da imanência, mesmo sem saber seu nome e também sem um método constante ou definido, até porque a imanência não carece de método para ser investigada, basta observar o mundo ao redor. Ao se acrescentar a auto-observação, temos todas as ferramentas necessárias para investigar bem a imanência.
Se o encarceramento na transcendência me levou a um perigoso dogmatismo inquisitorial (sim, eu já cacei bruxas e só não as queimei por uma invisível intervenção divina), o (imperceptível) encarceramento na imanência me levou à beira da autodestruição – e aqui se repete o enredo da citação do parágrafo anterior, agora no mesmo sentido que o então cardeal Bergoglio escreveu.
Foi em Deleuze e, por ele, em Espinosa, que eu aprendi a manter constantemente bem fechada a imanência, embora um dia eu não tenha conseguido “retornar do horizonte” (cf. Deleuze e Guatarri, 2000, p. 58), não que eu estivesse preso a ele, mas sim no traçado do plano de imanência e, mais especificamente, nos “meios pouco confessáveis, pouco racionais e razoáveis … da ordem do sonho, dos processos patológicos, das experiências esotéricas, da embriaguez ou do excesso.” (idem).
 
     Uma amiga um dia defendeu Foucault dos estruturalistas resumindo que, neste campo, ele queria dizer que é impossível fugir da estrutura, explicando que, segundo o filósofo, ao libertar-se de uma estrutura necessariamente vai-se para outra (que, em comparação à anterior, pode não parecer uma estrutura, porém de fato o é). Os santos talvez – talvez! – digam que, perigo por perigo, é melhor prender-se e perder-se na transcendência (como um Santo Agostinho alienando seu filho da mãe pagã) do que na imanência (como um Deleuze se suicidando, ao meu ver, qual uma eutanásia). Mas além de Santo Agostinho e Deleuze, acho que há quem consiga manter a sanidade dentro de um ou de outro sistema.
     Eu, porém, corro riscos em ambos os casos: seja caindo em buracos de imanência (como Tales de Mileto, mesmo sem a sua genialidade) ao me fixar na transcendência, seja me acomodando à imanência, uma vez dentro do buraco.
Acredito que Cristo, que afinal criou a imanência, quer elevá-la, devidamente purificada, ao transcendental (muito além de Kant e independente de qualquer gnosticismo, pois esta elevação acontece na Cruz). É isso que eu posso entender de passagens como as descrições da Jerusalém Celeste no Apocalipse ou da criação gemendo como que em dores de parto em Rm 8, 22.
     O alerta do Papa aos perigos da imanência já havia sido dado por Deleuze (na página 58 de O que é a Filosofia), só que sem o resultado (a corrupção) e sem o anúncio da libertação de Cristo, mas o Papa, melhor que Deleuze, alerta também para os perigos de imanentizar a transcendência (que foi o que Espinosa fez, não alertar o perigo, mas fazer da imanência uma Ética) e talvez seja neste devir que eu me situe agora.

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– Bergoglio, 2013: Bergoglio, J.M. Corrupção e Pecado. Editora Ave-Maria, 2013
– Beauvoir, 1967: Beuavoir, S. de. O Segundo Sexo (A Experiência Vivida). Gallimard, 1967.
– Deleuze e Guatarri, 2000: Deleuze, G. e Guatarri, F. O que é a Filosofia. Editora 34, 2000.

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