Gente sensível ponto com

No meu mundo ideal a sensibilidade seria um habilidade reconhecida muito mais do que uma simples característica pessoal, e tão celebrado quanto a inteligência, o conhecimento ou o raciocínio (talvez houvesse até um Nobel da sensibilidade). Mas no mundo em que vivemos, a sensibilidade não apenas pode ser, como quase sempre é tratada como uma fraqueza, Não só por uma questão de perspectiva por ser vista como tal.

Insensíveis (não confundir com “fortes”, apesar de eles acharem que isso é ser forte) podem desprezar a sensibilidade por ser uma fraqueza, o que é muito ruim, mas não é pior do que os que exploram a sensibilidade alheia, porque apesar de mais cedo ou mais tarde ferirem a sensibilidade explorada, não a desprezam: afinal, se não houvessem pessoas sensíveis, quem eles explorariam? Pode ser que julguem a sensibilidade uma coisa desprezível, como os insensíveis, mas precisam dela, pelo menos nos outros.

Serpentes

Por isto convém nunca deixar de lado a desconfiança de muitos elogios à sensibilidade, que afinal de contas não é um animalzinho de estimação para ser alimentada com elogios como se fossem a sua ração. Esta desconfiança é um modo de proteger a sensibilidade, especialmente para sua própria preservação. O que é pior é que às vezes se perde a sensibilidade justamente por causa do processo de protegê-la – quer dizer, no fim das contas tornar-se insensível não serve para protegê-la, o que não impede de este ser um recurso largamente utilizado.

Cristo enviou seus discípulos como ovelhas em meio a lobos orientando-os a serem astutos como as serpentes e sensíveis como as pombas por isto. Apesar de serem orientações práticas para a evangelização (e de que naquele tempo as pombas tivessem um pouco mais de dignidade que as atuais, que precisaram se tornar “ratos com asas” para sobreviver em meio ao lixo humano), acrescentar astúcia à sensibilidade serve também como uma orientação extra-religiosa.

Se bem que até esta orientação pode descambar em uma maldade: tanto o golpista precisa combinar astúcia e sensibilidade (estou tomando o do velho golpe do bilhete premiado como modelo de golpista), quanto o religioso que envereda pelos caminhos de usar sua condição religiosa para se satisfazer nos outros (seja sexual ou financeiramente).

Licença poética

Além da percepção de fraqueza, a sensibilidade pode se confundir com uma fonte de dor da qual é melhor se desvencilhar, ou à qual é melhor sucumbir qual um martírio heroico idealista, que pode até apresentar alguma beleza se for possível recortá-la da dor que a causou. Em qualquer caso, já passamos há muito do tempo em que honra e martírio se identificam um com outro. Até nos tempos dos primeiros cristãos o que os mártires faziam de bom era não ceder: a morte deles foi uma imposição alheia injustificável como sempre é a morte de qualquer pessoa (e a maioria das imposições também, mas este é outro assunto).

Como de uma forma ou de outra a sensibilidade acaba se tornando uma cruz, Cristo acaba entrando no assunto por motivos religiosos desta vez, já que há três parágrafos atrás tinha entrado só pela boa ideia. Neste caso, é sobre como tornar possível carregar a cruz da sensibilidade sem morrer por causa dela, afinal Cristo disse “toma a tua cruz e segue-me”, mas não “toma a tua cruz e morra pregado nela”, pois a parte de Deus foi transformar a morte indesejada em causa de salvação, enquanto os que mataram Cristo queriam apenas que ele morresse, já que não podiam calá-lo.

A ideia de que a cruz significa necessariamente uma morte é bem disseminada, mas não é o significado que eu quero dar a ela neste texto – não é porque talvez signfique isto que não possa significar também outra coisa. Eu estou pensando em Mt 11,30 (“o meu jugo é suave e meu peso é leve”): logo mais adiante (12,14-15) Jesus fica sabendo que os fariseus discutiram meios de o matar e sa dali, o que eu espero que sirva de argumento para dizer que nada que leve à morte é bom, a não ser como uma licença literária.

Cristo e Hermione Granger

Quem sou eu para dizer que só em Cristo é que é possível manter a sensibilidade sem matar ou morrer no processo? Talvez hajam outras alternativas, mas eu preciso levar em conta o seguinte:

1) se eu não posso afirmar categoricamente que só Cristo funciona para isto, por outro lado posso ao menos afirmar que funciona (talvez não tanto pela experiência bem-sucedida, mas mais pela fé), apesar de cogitar haverem outras possibilidades;

2) se for viável manter a sensibilidade nestes termos por outros caminhos que não sejam os de Cristo, aí há uma situação parecida com a da Hermione Granger quando estava explicando para o sr. Lovegood que não dá para testar pedra por pedra do mundo para poder dizer que não existe uma Pedra da Ressurreição (o que no livro deu num empate, já que a pedra existia, mas não era exatamente da ressurreição), mas em relação à possibilidade de manter a sensibilidade por outros caminhos que não sejam os de Cristo, eu não tenho porque testar outras possibilidades quando já tenho uma que funciona (e se tivesse um porquê, também não teria tempo e nem disposição para me tornar uma espécie de pesquisador das alternativas a Cristo).

O canivete suíço do cristianismo

Aepsar de o cristianismo poder servir como uma ferramenta de exploração e opressão, a sua finalidade original é o oposto: cooperação e libertação. Ainda que isto esteja aquém do melhor que o cristianismo pode oferecer, que é a salvação de Cristo, na verdade quem salva é Cristo e não o cristianismo que, como sabemos, é uma espécie de canivete suíço que pode servir tanto a um projeto hediondo de poder (como o bolsonarista, por exemplo) e outras vilezas mais ou menos afins, quanto pode servir para fomentar a luta por justiça e liberdade das pessoas – e também da sensibilidade, sem a qual até mesmo os enviados de Cristo seriam apenas serpentes, assim como também a justiça e a liberdade.

Enfim, incluir Cristo no páreo da auto-preservação da sensibilidade é uma medida que funciona para esta auto-preservação, mas excluí-lo a deixa exposta a se tornar ou refém da própria couraça que precisa criar para se proteger, ou uma insustentável leveza que ameaça constantemente partir ao meio quem se aventura a carregá-la.