Eu não compreendo bem esta história da questão do autêntico filosofar latino-americano. Não fiz ainda esta cadeira, portanto o problema pode ser este.
Claro que há a noção de que a filosofia é pautada, dirigida e legitimada a partir da Europa, principalmente, e dos EUA, secundariamente. Assim, caberia à AL estudar o que eles estudam, falar na linguagem deles, compreender o pensamento deles e partir sempre disto para produzir filosofia.
Ocorre que há uma certa redundância nesta questão.
A filosofia latino-americana busca legitimar-se como autêntica filosofia. Tem então duas opções: ou bem afirma-se e pronto, foda-se o que pensam os outros; ou bem procura meios de ser “aprovada” pela Europa e EUA. Se escolher a primeira alternativa, o problema está resolvido. Se escolher a segunda, permanece ainda submissa à orientação, à “primazia” européia e norte-americana – pois, mesmo que seja reconhecida por eles, depende ainda do aval deles.
A primeira opção, afirmar-se e deixar para lá o que os outros pensam, supõe e resulta em questões específicas.
Em primeiro lugar, esta é uma questão política: se a filosofia possui um governo, cabe a ele decidir o que é ou não legítimo em filosofia. Mesmo que esse governo seja apenas uma questão de autoridade, o resultado é o mesmo. Seria necessário delinear qual a posição política da filosofia latino-americana: uma posição contratualista? Uma posição revolucionária? Uma posição submissa? Reacionária? Colaboracionista? Anarquista?
Trata-se de descobrir que pensamento político está implícito na filosofia latino-americana, qual pensamento político move-a. A pergunta pelo autêntico filosofar latino-americano pressupõe, desde já, algumas coisas: há um autêntico filosofar europeu; há um autêntico filosofar regional; a filosofia latino-americana quer/precisa/deseja diferenciar-se da filosofia européia; não é possível uma filosofia a-territorial, ou, pelo menos, não é possível pensar que o movimento do pensamento flua daqui para lá e de lá para cá – o mesmo que dizer que apenas flui de lá para cá, e não faz o movimento contrário; o pensamento é diferente lá e cá: idéias diferentes, maneiras de pensar diferentes.
A segunda alternativa insere-se dentro de uma questão social mais variada: a das minorias. Pois os negros, as mulheres, os homossexuais também tem esta questão colocada diante de si: somos seres humanos tão legítimos quanto o homem-branco-heterossexual-europeu-rico; dado que vivemos em uma mesma sociedade, controlada por eles, precisamos ser aceitos, seja à força, seja pacificamente.
Margarita Pisano, no que diz respeito ao feminismo, propõe uma suspensão temporária da participação das mulheres na sociedade, na cultura. Para ela, os efeitos do machismo (incluindo a sua manutenção) ainda não desapareceram e ainda estão longe de desaparecerem. Não há o que comemorar. “Sociedade mais feminina”, “inserção feminina”, “igualdade” e “políticas de igualdade”, “direitos iguais entre mulheres e homens”, nada disso ocorreu; no máximo, têm-se uma renovação do mesmo velho patriarcalismo, oculto sob novas roupagens, ou realmente original, dificilmente identificável como patriarcalismo. O desejo de inserção feminina dentro da sociedade implica em uma “masculinização feminina”. Esta masculinização não diz respeito a uma masculinização física, pelo menos não exclusivamente: a mais doce e cálida feminilidade também é masculina, na medida em que é produzida pelos homens. A tomada de pode por parte das mulheres também é uma vitória masculina: a identificação da “vitória” feminina com uma sociedade controlada por mulheres significa uma vitória dentro dos códigos e regras masculinos, significa ser mais homem do que os homens. Ela propõe, diante disto, não uma tomada de poder, nem tampouco uma sujeição, mas um afastamento, uma suspensão: longe da sociedade, intrinsecamente masculina, as mulheres precisam definir-se quem são, o que querem, e como o farão. Definidas estas questões, então, sim, pode-se fazer algo propriamente feminino, o que quer que seja.
Desta estratégia, surge, porém, uma questão: haverá algo de novo a ser inventado ou trata-se de apenas definir-se, diante da multiplicidade de opções geradas ou criadas pelo mundo masculino? Ou, ainda, permitir-se talvez mesclar coisas absolutamente novas com coisas masculinas, agora apropriadas pelas mulheres? Tais respostas – e mesmo a legitimidade destas questões dentro do pensamento pisaniano – cabem somente a ela, ou às mulheres que aceitem tal tarefa.
Mas estas questões transpõem-se com facilidade para a questão do autêntico filosofar latino-americano que queira inserir-se, legitimar-se dentro de um pensamento dominado pela Europa. A filosofia latino-americana poderia – deveria? – criar algo absolutamente novo, completamente inédito, que carregasse sua marca, sua “latinoamericanidade”? Ou precisa produzir seu autêntico filosofar a partir do que já está dado, para daí construir algo novo? Ou, ainda, poderia misturar elementos absolutamente novos, exclusivamente latino-americanos, com elementos “estrangeiros”, apropriados como, na esfera da saúde, quebra-se patentes de remédios caros demais mas cuja produção é perfeitamente possível?
Neste ponto as duas opções, afirmar-se e impor-se, ou legitimar-se dentro do já estabelecido, aproximam-se a ponto de quase fundirem-se: talvez a condição para qualquer resultado seja esta suspensão pisaniana no pensamento latino-americano. Não que a mesma estratégia aplicada nas duas áreas – filosofia e feminismo – implique em equivalência das duas. Ocorre que uma solução criada dentro do feminismo encaixa-se perfeitamente dentro da filosofia, mas são dois problemas diferentes, sem nenhum paralelismo necessário. Pressupor tal coisa seria forçar todo o “pensamento menor” a comportar-se de maneira uniforme, ignorando que o problema das mulheres, o dos negros, o da filosofia latino-americana e o dos homossexuais é diferentes, e apenas assemelha-se no que diz respeito ao fato de referirem-se a pessoas marginalizadas, discriminadas, e violentadas frequentemente.
A unificação das duas opções em uma mesma estratégia não é de caráter dialético: esta suspensão pisaniana não é uma síntese entre impor-se e legitimar-se, mas sim uma suspensão. “Afirmar-se ou impor-se?” pergunta-se a filosofia latino-americana. “Agir!” responde Margarita Pisano para o feminismo que faz a mesma pergunta – cuja resposta pode ser ouvida, também, pela filosofia norte-americana.