Aparentemente, os concílios que esclareceram tantos marcos fundamentais da fé católica não foram muito diferentes de uma assembleia sindical ou partidária. Ao menos o primeiro concílio de Éfeso, que compreendeu a maternidade de Maria a Deus, foi uma disputa entre duas perspectivas que não invocavam um beneplácito divino para se sustentarem, mas sim as habilidades políticas dos seus defensores.
Enquanto Nestório conciliava a divindade e a humanidade de Cristo em uma espécie de dualidade habitando o mesmo corpo, fazendo de Maria mãe do “fator humano” da dualidade, Cirilo via em Cristo uma unidade humano-divina, fazendo de todo e qualquer aspecto de Cristo um aspecto tanto humano quanto divino, incluindo a maternidade de Maria, mãe do ser humano, e também mãe de Deus indistintamente.
É claro que tanto Nestório quanto Cirilo representavam escolas de pensamento teológico ancoradas respectivamente em Constantinopla e Alexandria, que no fim das contas eram as verdadeiras protagonistas do enfrentamento. Enquanto hoje em dia há cristãos que se opõem a “sociologizar” a religião, tornando-a praticamente intangível em uma redoma de isenção (e neste ponto dão as mãos aos que querem eliminar quaisquer sinais de presença religiosa na esfera civil), a maternidade divina de Maria foi reconhecida em meio a um processo teológico-político, sujeito ao envio de delegações simbólicas, recuos estratégicos e artimanhas políticas (incluindo a manobra de Cirilo para abrir o concílio antes da chegada dos partidários antioquenos de Nestório, o que levou alguns bispos a participarem sob protesto, por condenarem a manobra).
O caos em que estas decisões foram tomadas pode até dar margem para que se diga que foram meras decisões humanas que nada tinham dos desígnios de Deus, mas seria uma postura semelhante a quem renega o mesmo caos, acrescido de crueldade, que mancha de sangue várias páginas do Antigo Testamento: assim como a crueldade sanguinária humana não impediu Deus de agir em meio ao banho de sangue em certas passagens do AT, não seria a malandragem política que o impediria (não que Deus endossasse a crueldade, isto está muito claro no NT, mas só Deus sabe o que ele pensa das ardilosas manobras políticas). Quero dizer que, se nem mesmo a inexistência prévia da criação não impediu que Deus criasse o que não existia, como é que o caos humano, sanguinário ou não, poderia amarrar as mãos de Deus a ponto de impedi-lo de agir? Acredito que não é por apreciar a ordem que Deus vá se negar a agir no meio da bagunça: se não fosse assim, teria criado robôs e não seres humanos confusos e caóticos.
Fé e política são suficientemente independentes entre si para não determinarem uma à outra, mas nenhuma das duas dá conta de lidar com as questões humanas isentando-se, seja a fé da política, seja a política da fé, ou qualquer uma delas das outras áreas humanas, como a ciência, a arte, etc. A Idade Média conseguiu funcionar muito bem enquanto a fé e a política mantiveram a independência e a complementariedade, e só acabou quando elas começaram a medir forças uma com a outra.
Esta dissociação serve apenas para aprofundar a exploração sobre nós, pois enquanto levamos a fé e a política a agirem como o poeta municipal e o poeta estadual, debatendo qual é capaz de bater o poeta federal, “o poeta federal tira ouro do nariz“.