Espiritualidade

“Espiritualidade” sempre foi, para mim, uma palavra tão cheia de sentidos que acabou se tornando sem nenhum conteúdo, como uma nuvem carregada que se evaporava antes de poder chover.

É uma palavra parecida com “política”, “filosofia”, “arte”, etc., cuja semelhança é ter muitos sentidos ao mesmo tempo que não tem sentido nenhum.

São palavras que se prestam a preencher discursos que geralmente se prestam a tentar manipular ideias e quem as ouve, exceto, talvez, quando quem faz o discurso deixa claro as premissas do seu pensamento.

Para este tipo de palavras vale o que a introdução do curso de Doutrinas Políticas: Novas Esquerdas diz sobre as grandes correntes de pensamento político, afirmando que estas “não são objetos que possam ser estudados a partir de uma definição clara, unívoca, aceita por todos. Adversários e partidários têm interpretações diferentes de cada corrente, e mesmo no interior de cada uma delas encontramos divisões importantes.”

Ou seja, quero dizer que “espiritualidade” (assim como “arte”, “política”, etc.) não são palavras que tenham “uma definição clara, unívoca, aceita por todos” e, por isto, é necessário partir sempre de uma perspectiva parcial, e é nesta parcialidade que mora o perigo de manipulação: mais precisamente, na omissão desta parcialidade.

Eu apenas estudo teologia e, portanto, sou ainda mais parcial do que a maioria, porque estou partindo da perspectiva da faculdade que estou cursando (quer dizer: eu não posso nem dizer que falo a partir de uma perspectiva católica, mas sim de uma perspectiva que pretende estar compreendida dentro daquilo aceito pela doutrina católica, sem no entanto representar a doutrina e também sem ser a única perspectiva possível dentro das perspectivas possíveis no interior da doutrina).

Filtrando ainda mais um pouco esta parcialidade, isto é o que eu entendi daquilo que li e ouvi nesta disciplina do curso, e que para mim pareceu maravilhoso.

A espiritualidade cristã se compõe de ideias e práticas nascidas do encontro com Cristo, e é a partir de Cristo que esta espiritualidade pode ser vivida. Embora ela tenha, necessariamente, um aspecto interior, a espiritualidade não existe se não manifestar-se em uma prática na qual se inclui a oração mas que não se detém nela.

Esta prática foi muitas vezes omitida, mas hoje se entende que a espiritualidade exige que a relação com Deus interfira também na relação com o outro (ou com o próximo): o encontro com Cristo permite que Cristo nos revele Deus e nesta revelação também se revela a condição de criaturas de Deus que todas as coisas possuem; as outras pessoas, principalmente, foram criadas por Deus, e portanto a mesma dignidade e valor que uma pessoa descobre em si a partir do encontro com Cristo também está nas outras pessoas, igualmente criadas por Deus com o mesmo valor e dignidade.

Assim como as pessoas, todo o resto foi criado por Deus e merece o cuidado necessário com algo criado por Deus, seja o planeta, o meio ambiente, os animais e também aquilo produzido pela humanidade (pois o que uma pessoa, criatura de Deus, produz, ela produz a partir de outras coisas criadas por Deus, incluindo aí sua inteligência, mas também os materiais que usa).

A espiritualidade cristã, portanto, incide também sobre corpos: o próprio corpo e o corpo alheio, e toda a matéria com a qual temos contato. Houveram correntes de pensamento (maniqueísmo, gnosticismo, etc.) que tentaram “criminalizar” a matéria, mas a espiritualidade cristã se estende a ela.

Quando Cristo prioriza a alma em detrimento da carne, ele não está condenando-a: se estivesse, não teria assumido um corpo e nem, ainda por cima, ressuscitado com o próprio corpo. Mesmo corrompida pelo pecado (exceto no caso de Cristo e, por graça de Deus, da Virgem Maria), a carne é uma criação divina a ser restaurada na vinda definitiva de Cristo. Por isto que, se por um lado, não vale a pena ganhar o corpo e com isto perder a alma, por outro lado, este predomínio da alma sobre o corpo é apenas na medida em que o corpo-corrompido não leve a perder a alma cuja fidelidade a Deus permitirá que o próprio corpo seja restaurado na ressurreição. A alma não conduz o corpo como quem carrega um fardo inútil e descartável, mas o ser humano, dualizado pelo pecado, precisa priorizar a alma para que ambos, corpo e alma, tenham a sua unidade restaurada no futuro. Portanto a inferioridade da carne é temporária porque será restaurada (não exatamente como a carne de Cristo mas à semelhança do que se lê nos evangelhos sobre seu corpo glorificado na ressurreição), bem como a unidade entre o corpo e a alma que também será restaurada.

Assim, tão importante como deixar a alma prevalecer sobre o corpo, é importante que a espiritualidade se estenda ao corpo, pois se queremos que Cristo salve o mundo, precisamos preservar este mundo para que Deus tenha o que salvar. O mundo – a carne – não leva à salvação, mas a espiritualidade precisa levá-los à salvação junto com a alma.