Domingo da segunda semana do Advento (solenidade da Imaculada Conceição de Maria)

A Igreja transmite fielmente a verdade e quem lhe dá esta fé (no sentido mais comum do termo, neste caso) pode dizer, com segurança, que Maria foi concebida sem pecado – não por suas virtudes, que de qualquer modo seriam maiores do que as nossas até se tivesse sido concebida com o pecado original, mas pela gratuita bondade da decisão de Deus.

Porque Deus fez assim com ela e não com todo mundo ou, ao menos, com alguns? A Igreja explica que, como ela iria conceber o Filho de Deus, convinha que Maria fosse Imaculada, dada a singular intimidade que só ela teve com Cristo – concebê-lo e levá-lo nas entranhas do seu corpo durante mais ou menos nove meses e depois alimentá-lo com o leite fluído do seu corpo.
Se Maria não concebeu – obviamente – a divindade de Cristo, ainda assim ela concebeu o corpo humano de Deus; dizendo o mesmo em outras palavras: ela forneceu a matéria humana que formou cada célula do corpo do Filho Único de Deus.
É claro que Deus poderia ter encontrado outras alternativas, como “isolar” o pecado de cada um dos componentes fornecidos pelo corpo de Maria, neste exemplo, contaminado pelo pecado original; poderia ter implantado já um feto santo protegido do pecado da mãe; poderia ter feito surgir o bebê já formado no quarto ao lado; etc.; mas levar as suposições sobre o poder divino por estes caminhos seria o mesmo que ficar se perguntando porque Deus não fez os besouros com um membro extra no seu casco para poderem se desvirar quando caem de mau jeito, ou uma atmosfera mais amigável (pro ser humano) à Lua e à Marte para facilitar a exploração espacial e, em última instância, poderíamos questionar porque Deus permitiu o pecado original, quando poderia ter dado à árvore uma proteção mais eficiente do que a frágil confiança no bom uso da liberdade de Adão e Eva.
Só que levar o pensamento por estas águas hipotéticas é tão interessante e útil quanto discutir, como escreveu Luís Fernando Veríssimo, quantos anjos podem se equilibrar ao mesmo tempo na ponta de uma agulha.

Dando fé à Igreja, pode-se comparar Maria com Adão e Eva no que diz respeito à obediência a Deus: concebidos qual Maria sem pecado original, Adão e Eva disseram não a Deus; Maria, nas mesmas condições disse “sim”. E, guardadas as diferenças entre as personagens, comprometer-se com uma gravidez é mais complicado do que comprometer-se com a abstinência de uma coisa que nunca havia sido provada.

Então o significado deste dogma – a Imaculada Conceição – tem mais a ver com conceber uma nova perspectiva, agora positiva, sobre a humanidade, do que conceber um roubo à redenção de Cristo. Até porque uma redenção prévia ao ato redentor é uma ideia mais elegante do que uma confusa ideia de Deus agindo como um manipulador genético no ventre de Maria.

A navalha que Ockham sugeriu à ciência parece já ter sido largamente utilizada por Deus nos milagres narrados ao longo dos quatro evangelhos: quando poderia ter dividido as águas, Cristo preferiu caminhar sobre elas; quando podia ter feito chover mais Maná no deserto, ele preferiu multiplicar os pães que já tinha; até mesmo o imposto, cujo milagre da eliminação muita gente sonha hoje em dia, Cristo preferiu pagar com a ajuda de Pedro, de um peixe e de um discreto milagre do que não pagá-lo milagrosamente – e mesmo deixando claro que era injusto, sujeitou-se à injustiça.

A Imaculada Conceição de Maria que a Igreja celebra hoje não tem a intenção de ser uma festa da idolatria, mas sim de celebrar, por um dogma, a restituição da confiança de Deus na humanidade. Não que Deus dependesse de Maria para confiar, mas nós dependemos deste tipo de sinal para descobrir a renovada confiança de Deus no ser humano – restituída, portanto, pelas ações de uma mulher tão gente como a gente quanto Maria.