Sumário
1 O período moderno
2 Os descobrimentos e a expansão da cristandade
3 A evangelização de populações não cristãs
3.1 Os ameríndios
3.2 Os povos da África
3.3 A escravidão colonial e o catolicismo
4 As Reformas
4.1 As reformas protestantes
4.2 As Igrejas Cristãs
4.3 Reforma Católica
4.4 Novas e velhas ordens e congregações
5 A religiosidade popular latino-americana
6 Referências bibliográficas
1 O período moderno
No alvorecer do que chamamos período moderno (a partir do século XV), uma série de instâncias da vida social, econômica e política mudou drasticamente. Desde o cisma gerado pelo papado em Avinhão, a autoridade dos papas vinha sendo minada pelo desejo de autonomia dos soberanos nacionais em seus Estados em formação. Esta transformação política, que substitui a descentralização característica do sistema feudal por uma centralização, extrapola a esfera da política estatal e se desdobra em outras áreas. Exemplos da ação do Estado em outras esferas são o mercantilismo econômico, que se baseia na prerrogativa real de estruturar a economia por meio da concessão de monopólios e a preservação de estancos reais; e o controle que, progressivamente, os monarcas exerceram sobre o catolicismo ou sobre o processo de Reforma nos seus domínios (liderando, como na Inglaterra, administrando, como na França, ou impedindo, como no caso dos Ibéricos). É possível pensar que até mesmo a geografia e a demografia mudaram abissalmente com a integração das Américas e da África no sistema político, econômico e religioso do Ocidente moderno.
Tal período se finda com o advento do liberalismo republicano, sendo esse filho da Ilustração que tem início ainda no século XVII, com filósofos como John Locke e Thomas Hobbes, na Inglaterra. Esses pensadores acabam por romper com a aura divina que legitimava o poder dos reis absolutistas. Em seus textos, o governo monárquico surge como uma necessidade da vida em sociedade – Hobbes – e as distinções nobiliárquicas não mais são produzidas por diferenças inatas, mas construções sociais – Locke. O trabalho desses filósofos vai preparar e ajudar a fundamentar o pensamento iluminista do século seguinte. Embora pouco se diga sobre isso, os dois grupos, ingleses do século XVII e franceses do XVIII, operam com conceitos que já eram usados por teólogos do século XVI, como o dominicano Francisco de Vitória, considerado o fundador do direito internacional, e o jesuíta Luís de Molina (ZERON, 2011, p.203 et seq.). Ambos, assim como outros teólogos de sua época, operavam largamente com a ideia de direitos naturais, como direitos inerentes a todos os homens. Os jesuítas foram inclusive acusados de propagandear o regicídio, por defenderem o direito de se opor à tirania, o que sem dúvida contribuiu para a sua supressão. (ANDRÉS-GALLEGO, s.d., p.168 et seq.)
2 Os descobrimentos e a expansão da cristandade
O período moderno foi, sem dúvida, marcado pela mudança no escopo de relações da cristandade com o mundo externo a ela. Se nos primórdios do cristianismo e no medievo o palco de tais relações foi o Mediterrâneo, agora os espaços privilegiados para estes encontros serão o Atlântico e o Índico. Será por aí que as trocas mercantis e culturais passarão a acontecer com uma frequência cada vez maior. Novos povos serão conhecidos, uma nova geografia será desenhada e novos desafios ao cristianismo também aparecerão.
Os novos contatos serão, na verdade, fruto de velhos conhecidos. A expansão europeia se inicia com os portugueses a partir da expulsão dos mouros que habitavam seu território na península Ibérica havia cerca de sete séculos. Daí para Ceuta, em 1415, já apresentando o padrão de conjunção da ação militar, com a expansão da fé e os objetivos mercantis que marcaram as conquistas da modernidade ibérica. Ceuta, uma praça comercial de grande importância no extremo norte da África, no estreito de Gibraltar, era a confluência entre o mar conhecido e o novo, uma espécie de esquina entre a península e as novas possibilidades africanas. Foi, por isso mesmo, a ponta de lança para a busca de novas regiões com ganhos potenciais mais ao sul. Passava-se assim dos mouros aos povos animistas, também chamados de pagãos.
Mas foi sem dúvida com o infante D. Henrique, o navegador, que a expansão lusitana teve seu maior impulso. Esse filho do rei D. João I, o fundador da dinastia de Avis (1385-1581), foi o articulador da tomada de Ceuta e da consequente série de conquistas que lhe sucedeu. Na sequência vieram: as ilhas do Atlântico (arquipélago da Madeira, os Açores e outras ilhas menores) e a passagem do cabo Bojador por Gil Eanes em 1434, depois foram a foz do rio Senegal e o arquipélago do Cabo Verde em 1456. Seu nome aparece explicitamente na bula Romanus Pontifex, de Nicolau V, datada de 1455, que, ainda impregnada do espírito das Cruzadas, lhe autoriza a conquista militar como mecanismo para a expansão da fé sobre os sarracenos (muçulmanos) e outros infiéis (povos animistas subsaarianos).
Pelo Mediterrâneo, o comércio dos artigos vindos da Ásia era monopólio de italianos desde a quarta cruzada (1202-1204), quando foi fundado o reino latino de Constantinopla – hoje Istambul. Assim, a Europa era, na primeira metade do século XV, inundada de produtos vindos da África, pela península Ibérica, e da Ásia, pela península Itálica. No entanto, este quadro muda drasticamente depois que os turcos do Império otomano conquistam a praça mercantil de Constantinopla em 1453, data que foi usada por muito tempo como marco fundamental da passagem do medievo para a idade moderna. Deste momento em diante, a incerteza do abastecimento e a elevação dos preços tomaram conta dos principais mercados consumidores de produtos asiáticos (especiarias, louças, sedas e outros produtos finos).
Abre-se, assim, a demanda por novas rotas comerciais para o Oriente, seja pelo Atlântico sul – passando o Cabo das Tormentas –, com os portugueses, seja buscando a circum-navegação da terra com os espanhóis. Esses últimos, por terem concluído o processo de expulsão dos mouros e a unificação das casas de Aragão e Castela somente em 1492, ano em que a mesquita de Córdoba cai em mãos espanholas, estavam em considerável desvantagem frente aos lusitanos. Certamente por isso, a Coroa espanhola apostou uma pequena soma de dinheiro, se comparada aos vultosos gastos da corte madrilena, numa expedição de três embarcações chefiada por Cristóvão Colombo, que partiu rumo ao ocidente naquele mesmo ano.
O objetivo da expedição de Colombo era chegar ao reino do grande Kan, apresentado por Marco Polo em suas crônicas. O plano era simples, chegar ao paralelo das ilhas Canárias, marco divisório do oceano Atlântico entre portugueses e espanhóis desde o Tratado de Alcáçovas, de 1479, e seguir para oeste até as chamadas Índias. A base dos cálculos de Colombo estava completamente equivocada. Sobre isso, aliás, o advertiram os geógrafos da Universidade de Salamanca. É preciso que se diga que, não obstante sejam estes estudiosos católicos frequentemente apresentados como equivocados e curtos de entendimento frente ao visionário Colombo, a realidade foi bem outra. Longe de acreditarem que a terra era plana, os professores de Salamanca se apoiavam nos cálculos de Eratóstenes, da Grécia antiga, que calculou a linha em torno do equador como equivalente a cerca 40.000 km (a medida exata é 40.072 km). Enquanto Colombo se apoiava em cálculos feitos Ptolomeu de Alexandria, que usou um método que o induziu ao erro e chegou a um valor cerca de 20% menor que o de Eratóstenes. Logo, o debate que antecedeu a partida das embarcações rumo ao oriente pelo ocidente era sobre a viabilidade da viagem em termos da sua duração; do tempo que ficariam à mercê dos ventos e ondas, sem água potável e sem entrepostos de abastecimento. No entanto, foi a partir deste equívoco que os europeus contataram uma nova gama de populações com indivíduos genericamente chamados de “índios”, já que, comprovando o equívoco cometido pelo célebre navegador, esse julgou ter chegado ao arquipélago do Japão (toda a porção do mundo a leste de Jerusalém era designada pelo termo Índias).
De qualquer maneira, um fato merece destaque: a expansão da fé católica, ainda nos moldes das Cruzadas, sempre esteve presente nas viagens da Expansão Ibérica; da autorização papal às dezenas de menções à fé e a Deus no diário de Colombo, há fartas evidências de que a ampliação do mundo cristão, pelo crescimento dos domínios dos Reis católicos, sempre pairou no imaginário e nos corações dos envolvidos neste processo.
3 A evangelização de populações não cristãs
3.1 Os ameríndios
O processo de colonização foi marcado por uma série de ambiguidades, o interesse na colonização foi apenas uma delas. Por um lado muitos europeus que desembarcaram na América vieram imbuídos do ideal de obtenção de ganhos materiais e sociais, como títulos e cargos na governança do Novo Mundo, usando como pano de fundo a expansão da fé católica como autorizava Nicolau V. Por outro, a Bula Sublimis Deus[1], do papa Paulo III, de 1537, o mesmo que referendou o instituto da Companhia de Jesus, apontava para outra diretriz geral para o contato com os habitantes das novas terras. Segundo essa bula, a vida, a liberdade e as propriedades de todos os povos contatados pelos europeus deveriam ser preservadas e o processo de conversão só poderia ser feito pela pregação e bom exemplo. Assim, desembarcam na América conquistadores e missionários com percepções distintas da terra e dos habitantes e com objetivos igualmente distintos para esses.
No caso da América espanhola, ainda que os jesuítas tenham tido um papel importante, os primeiros missionários a chegarem foram os padres das ordens mendicantes, em especial os franciscanos. No entanto, foram os frades dominicanos, especialmente Pedro de Córdoba, Antonio Montesinos, Julián Garcés (bispo de Tlaxcala) e Bartolomé de las Casas, os que mais se notabilizaram na defesa da vida e da liberdade dos indígenas, com que se preocupava o papa Paulo III. Os dois primeiros viajaram a São Domingos, na ilha La Española, em 1510, fundando a primeira casa da ordem nas Américas. Foi exatamente uma pregação duríssima em favor dos índios, proferida pelo frei Antonio de Montesinos em nome de todos os seus companheiros, em 1511, que impactou las Casas.
Este, até então, havia participado de combates contra grupos indígenas que resultaram na morte de dezenas de espanhóis e de milhares de nativos, possuíra índios como escravos (na verdade, em encomienda, uma modalidade de trabalho não remunerado imposta aos indígenas), não obstante já se dedicasse ao trabalho de evangelização e batismo da população local. Segundo Carlos Josaphat, na própria avaliação que las Casas faz dos resultados da prédica de Montesinos, ele os coloca em uma espécie de gradação: “houve quem ficasse ‘atônito’, outros ‘empedernidos’ e uns poucos ‘compungidos’, mas ninguém convertido” (JOSAPHAT, 2000, p.59). Se isto de fato ocorreu, las Casas estava ao menos entre os compungidos, já que não tardou para que se convertesse em grande defensor dos povos nativos da América.
A crença que perdurou desde o século XIX até bem pouco tempo, de que os povos poderiam ser classificados entre avançados e primitivos, foi largamente utilizada para explicar o fenômeno da conquista. Só dos anos 1980 para cá é que os pesquisadores – historiadores, sociólogos e antropólogos – se despiram do velho mito eurocêntrico que aferia o grau de evolução de cada cultura pela semelhança que esta guardava com a cultura ocidental coeva. A grande questão historiográfica a ser respondida era como um grupo tão pequeno de colonizadores pôde dizimar uma população tão grande de nativos (ROMANO, 1972, p.97-106). Na verdade, isso pouco tem a ver com o fato de algumas culturas possuírem Estado com poder coercitivo e outras não. Se deve muito mais à característica americana de sua população não se constituir uma totalidade, portanto se organizam em grupos que possuem interesses específicos e, para alcançá-los, estabelecem estratégias próprias, como alianças com os colonizadores. Isso aconteceu com os povos tributários dos astecas repetindo-se, de modo semelhante por toda a América, inclusive nas alianças entre franceses e tamoios, na baía de Guanabara. Nesse cenário de diversidade e conflitos, potencializado pela presença de europeus interessados em tirar proveito das disputas entre os povos nativos, é que atuaram os missionários; ora de maneira pacífica, ora ampliando um dos lados beligerantes, em nome do que acreditavam ser a implantação da fé numa terra à mercê do demônio. Era uma equação simples: perder corpos (inclusive os seus) e salvar almas (inclusive as suas).
Quando os jesuítas chegaram à América espanhola encontraram toda uma obra de catequese e conversão dos indígenas que já vinha sendo empreendida pelos mendicantes. No caso dos domínios portugueses, os missionários da Companhia de Jesus foram os protagonistas nesse processo de cristianização. No Brasil, os membros das ordens mendicantes atuaram em menor escala. Sabe-se apenas que o celebrante da primeira missa no Brasil, e portanto capelão na esquadra cabralina, era o bispo franciscano Dom frei Henrique de Coimbra, que ia como missionário para Calicute.
Já os padres jesuítas chegaram junto com o primeiro governador-geral Tomé de Souza, em 1549. Era um grupo pequeno liderado pelo padre Manuel da Nóbrega, que imediatamente começou a percorrer as aldeias catequisando e batizando os índios. Atendendo a um pedido de Nóbrega, então já ciente do tamanho da tarefa evangelizadora, alguns anos mais tarde, quando chega o segundo governador-geral Duarte da Costa, aporta um novo grupo com José de Anchieta. Este novo grupo se desloca para o sul, em direção à capitania de São Vicente, fundando ali o colégio São Paulo de Piratininga.
Segundo se percebe nas cartas enviadas pelos missionários, a evangelização destes povos tinha uma curta duração, consistindo em uma efusiva aceitação inicial, seguida do completo abandono tão logo os padres se ausentavam da tribo (CASTELNAU-L’ESTOILE, 2006, p.109). A solução para esse dilema da “vinha estéril” foi a criação do aldeamento. Por meio dos chamados descimentos e de adesões voluntárias ou pressionadas pelo risco da escravização pelos bandeirantes, os índios se integravam em comunidades controladas pelos padres jesuítas, constituindo um espaço de civilização e ordem, que garantia uma maior durabilidade da sua cristianização. Nos aldeamentos, os nativos se organizavam em torno da liderança dos padres da Companhia, passando a adotar os hábitos cristãos, aprendendo ofícios e se sedentarizando. Este conjunto de elementos representava, na ótica dos padres, o suporte para uma conversão mais duradoura.
As missões jesuíticas ficaram famosas como lugares de abrigo para a população indígena no Brasil, mas eram frequentemente fornecedoras de força militar e de trabalho alugada pelos padres às Câmaras municipais, aos particulares que solicitassem ou às outras ordens que necessitassem. Na expulsão dos franceses que resultou na fundação da cidade do Rio de Janeiro, em 1555, os índios aldeados foram de suma importância do ponto de vista militar. Do mesmo modo, os índios aldeados pelos jesuítas na região amazônica, desde a primeira metade do século XVII, compuseram a mão de obra predominante na coleta das chamadas drogas do sertão. Nos séculos XVII e XVIII, a produção artística dos índios aldeados em várias partes da América – escultura, pintura, música e confecção de instrumentos musicais –, que inicialmente era apenas um dos mecanismos da catequese, foi adquirindo características próprias, passando a ser conhecida como arte missioneira ou barroco missioneiro. Uma das características desta arte é a influência de elementos estéticos indígenas nas produções. Com a expulsão dos jesuítas do Império português em 1759 e no Império espanhol em 1767, as missões foram entregues a outras ordens – em geral mendicantes – ou a administradores civis.
3.2 Os povos da África
Tanto os missionários mendicantes quanto os padres da Companhia de Jesus atuaram nas repetidas tentativas de cristianização da África. Os resultados deste processo variaram muito, de região para região, sempre com avanços e retrocessos. Para que se possa abordar minimamente esta história é preciso compreender que a África é um continente extremamente vasto e que seus habitantes são diferentes de região a região e de povo a povo. Há pelo menos duas grandes matrizes religiosas na África, mas uma imensidão de possibilidades de combinações e interações entre elas: a islâmica e a animista. A islâmica se instalou com a expansão do islã pelo norte do continente e posteriormente com as vagas de expansão intracontinental através do Saara. Já a animista, mais característica dos povos subsaarianos, é profundamente ligada à natureza e aos seus fenômenos, atribuindo-lhes espíritos. Além disso, incorpora elementos sociais divinizados, como líderes, guerreiros ou personalidades muito marcantes, que, junto com os mitos de criação e construção do mundo, vão compor o panteão dos orixás. Com isso pode-se compreender a imensa tarefa de cristianizar uma área que é quase quatro vezes maior que o Brasil de hoje. Vamos apresentar, apenas a título de exemplo, os casos de Angola, Congo e Guiné, regiões que mais sofreram os efeitos dos contatos com os europeus, dentre os quais se destaca deploravelmente o tráfico de escravos.
As facilidades ou dificuldades para a evangelização da costa sul-ocidental do continente que hoje é a da Angola, derivou das alianças entre portugueses e os chefes locais sobas, subordinados ao grande soberano Ngola, que governava o reino Ndongo. Essas alianças tinham como fundamento tanto os ganhos políticos e comerciais, quanto os interesses religiosos. Segundo a conveniência do momento, os sobas se convertiam ao catolicismo ou voltavam ao animismo, ou ainda se aproximavam dos reformados. Um dos maiores interesses na proximidade com os sobas é que, devido à grande autonomia com que governavam seus territórios, eram eles que controlavam grande parte do tráfico de escravos de Angola para a América. Sua conversão sempre foi vista com certa desconfiança pelos jesuítas, posto que, com grande frequência, não era duradoura.
Os portugueses chegaram à costa do Congo nos primeiros anos do século XVI, dando início ao processo de evangelização da região. Na Cronica d’el Rei D. João II, de aproximadamente 1502, seu autor Rui de Pina relata que tanto o chefe local mani Soyo, com alguns dos seus ministros, como chefe da região, o mani Congo, com muitos seguidores, aceitaram o batismo e a fé católica prontamente, dando origem a todo um processo sincrético que envolve não apenas religião, mas também política e alianças comerciais. Para começar, muitos autores, como Marina Melo de Souza, acreditam que a cruz já era para a cultura do congo um símbolo místico e divinatório, o que facilitaria a absorção do crucifixo católico como símbolo religioso, bem como a associação das imagens de santos e terços aos minkisi, denominação genérica de objetos mágicos ou de culto religioso naquela região (SOUZA, 2005). Outra mostra desta simbiose é que, a partir de 1509, os soberanos congoleses passaram a ostentar nomes portugueses associados aos seus.
No caso da Guiné, ainda mais ao norte, o jesuíta Baltazar Barreira, responsável pela missão de Angola e fundador do colégio de Cabo Verde, assume no princípio do século XVII a missão de evangelizar o povo daquelas terras. Barreira e seus companheiros enfrentaram a concorrência dos bexerins, como eram chamados os sacerdotes islâmicos, e dos jambacouse, como eram designados os sacerdotes locais, incumbidos de identificar os feiticeiros e comedores de almas que, segundo a crença local, produziam doenças e mortes. Como não poderia deixar de ser, com tantas matrizes religiosas disputando espaço nos corações e mentes dos habitantes, o sincretismo foi tal que, em pouco tempo, os jesuítas passaram a ser chamados de bexerins dos cristãos (SANTOS, 2011, p.187-213). Ali também, relatou Barreira, a gente cristã, pela pouca doutrina e pelo muito contato com os animistas, facilmente voltava aos seus antigos cultos. Além desta concorrência, havia os problemas com o tráfico de escravos. Os sacerdotes animistas e os bexerins também funcionavam como agenciadores e atravessadores no comércio de escravos transaariano, que levava escravos – principalmente mulheres como futuras esposas – para as regiões islâmicas (LOVEJOY, 2011, p.32). Tudo isso se soma ainda ao tráfico de escravos para a América, que gerava muitas críticas dos jesuítas aos demais religiosos católicos, acusando-os de não pregarem, nem catequizarem, apenas traficarem. No entanto, os padres jesuítas também possuíam escravos. Embora pouco se saiba quantitativamente da participação desses no comércio de africanos, é certo que esta houve. De modo geral, a alta mortalidade de sacerdotes, a concorrência com outros grupos religiosos mais bem estruturados e respaldados pela sociedade local, além do parco investimento da Coroa portuguesa, pode explicar o relativo fracasso da missão de converter os africanos no litoral atlântico.
De modo geral, a presença europeia na África foi, como no início da colonização na América, costeira. O cristianismo, enlaçado no mesmo processo, também. A diferença é que, na América, progressivamente a colonização foi se interiorizando. Ocupando, ainda que parcamente, áreas cada vez mais ao interior, levava consigo a catequese e a Cruz, fenômeno que não se deu na África, onde o principal interesse era a administração de áreas litorâneas para controlar o comércio, principalmente o de escravos.
3.3 A escravidão colonial e o Catolicismo
É preciso que se esclareça, antes de abordar tão delicado assunto, que durante boa parte de sua vigência a escravidão não apenas era legal, bem como moralmente lícita. Isso não implica dizer que, vista dos dias de hoje, se possa considerá-la, ou a qualquer condição de trabalho análoga a ela, minimamente aceitável. O que se constata aqui é restrito ao período que se encerra na metade do século XIX, senão antes. Esta constatação se faz necessária para compreendermos como era possível que escravos alforriados também comprassem escravos para trabalharem em seu lugar, e como um grupo pequeno de feitores poderia controlar uma quantidade de escravos, não raras vezes, dez vezes maior.
Antes que se pense em passividade, é preciso considerar a autonomia que estas pessoas escravizadas tinham de estipular suas próprias estratégias cotidianas, que não eram necessariamente a clara revolta e o recurso à violência, embora as inúmeras rebeliões de escravos atestem ser este recurso viável não apenas para os senhores, mas também para os escravos. Porém, o número de vezes em que os escravos recorreram à violência da rebeldia foi muito menor do que o número de vezes em que o cálculo de perdas e ganhos levou-os a tomarem outro caminho, por certo menos arriscado. Deve-se considerar que, frequentemente, historiadores e outros autores colocam nas cabeças e bocas de personagens históricos discursos que só chegaram a eles muito depois. No caso da escravidão, o conceito iluminista de liberdade só aportou na América para os letrados entre o final do século XVIII e o início do século XIX, e significava a autonomia econômica e o direito à participação política. O significado da liberdade muda com o passar do tempo. Assim, quando falamos de escravidão colonial estamos tratando de um costume ou regra tácita da sociedade que a perpassava de alto a baixo. Muitas rebeliões foram apaziguadas quando certas condições de trabalho foram estabelecidas (REIS e SILVA, 1989, p.103).
É a essa escravidão que os textos do clero colonial católico se referem. De fato, não são textos libertários, e nem teriam como sê-lo. Estariam mais bem classificados como utópicos, que lidam com uma escravidão em que o senhor desempenha funções paternas: ensinar, tutelar, alimentar e corrigir. Veja-se o que diz o jesuíta Jorge Benci, em seu livro intitulado Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos, escrito pelos idos de 1700: “Deve o senhor ao servo o pão para que não desfaleça” (BENCI, 1977, p.53). No primeiro dos quatro discursos do livro, o autor coloca sob a rubrica pão uma série de obrigações do senhor para com o seu escravo: comida, vestimenta e cuidados na enfermidade. No segundo discurso, a argumentação começa com a seguinte afirmação: “como os servos são criaturas racionais, que constam de corpo e alma, não só deve o senhor dar-lhes o sustento corporal para que não pereça o seu corpo, mas o espiritual para que não desfaleçam suas almas” (BENCI, 1977, p.83). Isso nos permite perceber que o mito afirmando que o clero católico defendia a teoria de que os escravos não tinham alma é completamente infundado. O esforço do clero católico em catequisar, coerentemente às suas crenças, batizar, casar sacramentalmente e sepultar segundo o rito cristão os escravos, é evidência mais que bastante para mostrar que a postura geral entre o clero católico era bem oposta a essa. Ademais, Benci também chama veementemente a atenção dos senhores a respeito da sua obrigação religiosa para com os seus escravos.
O pensamento colonial católico acerca da escravidão parece ter tido início com Alonso de Sandoval, reitor do colégio jesuítico de Cartagena de las Índias (1605-1617). Em seu livro Um tratado sobre a escravidão, apresenta um longo estudo voltado para a compreensão e o ensino dos povos recém-chegados da África ao porto de Cartagena. Na verdade, mais que um programa catequético, Sandoval desenvolve uma verdadeira “soteriologia” dos escravizados. O primeiro passo desta “soteriologia” foi classificar todos os negros africanos e das ilhas do Índico como etíopes, que já eram associados à descendência de Cam, amaldiçoada pelo pecado deste contra seu pai, Noé. Daí se desenvolve o pensamento de Sandoval, apontando que, segundo Isidoro de Sevilha, na divisão do mundo a África correspondia aos descendentes de Cam. Portanto, a escravidão nos moldes cristãos, onde os senhores assumem funções paternais para com seus escravos, representaria a redenção da maldição de Cam. Isso por representar a inserção dos “etíopes” no novo povo eleito: a Igreja.
Também em Cartagena de las Índias, atuou São Pedro Claver que ali viveu e evangelizou durante quase toda a primeira metade do século XVII. Na região portuária da cidade, acolhia, alimentava e confortava os africanos escravizados que desembarcavam, sem medir gastos (SPLENDIANI e ARISTIZABAL, 2002, p.86). Aferia os conhecimentos doutrinários, para checar se haviam sido batizados na África e se tal batismo era válido[2], catequizava a todos e batizava, ocasionalmente “sob condição”, os escravizados, colocando em seus pescoços uma medalhinha de chumbo, que de um lado tinha a face de Jesus e no outro a de Maria, para poder reconhecer os seus batizados na cidade. Em seu processo de beatificação consta que tinha constantes desentendimentos com as senhoras da cidade, por recolher pelas ruas e praças os negros para a celebração da missa, apesar do mau cheiro que esses exalavam, por suas feridas e precárias condições de higiene que lhes eram impostas (SPLENDIANI e ARISTIZABAL, 2002, p.90 et seq.).
4 As Reformas
O termo reforma, embora de conteúdo semântico pouco delimitado, foi utilizado durante toda a Idade Média como o chamado à mudança e à correção tanto dos fiéis, no sentido da conversão e santidade, quanto da correção dos problemas de disciplina e ética dentro do clero católico. Em vários contextos medievais o uso do termo reforma esteve vinculado à busca da purificação e da santificação dentro da Igreja. Somente após o surgimento e a afirmação política do movimento luterano é que o termo ganha aspecto de ruptura.
Tradicionalmente, o fenômeno da emergência da Reforma Protestante vem sendo explicado a partir de suas causas internas. As mais antigas vias historiográficas situam em Lutero e nas 95 teses publicadas na catedral de Wittenberg o foco explicativo da Reforma. Posteriormente, a historiografia marxista incorporou a venda das indulgências do clero alemão, extrapolando o fenômeno como prática generalizada do catolicismo, e transformou Lutero numa espécie de revolucionário lançando-se contra as estruturas opressivas do poder financeiro eclesiástico. Tanto em uma quanto em outra vertente, o peso da ruptura recaía totalmente nos desvios e “abusos” comportamentais do clero católico.
No entanto, para uma melhor compreensão do fenômeno, as razões do surgimento e da afirmação da Reforma devem ser pensadas de modo mais amplo. Em primeiro lugar, os “abusos” do clero não são causa suficientes para a Reforma, afinal o movimento reformador já existia dentro da própria Igreja desde a Idade Média e nunca se tinha visto grupos que propusessem rupturas na proporção que começa a se ter a partir de vozes como Lutero e os anabatistas. Além disso, as principais referências a abusos nos textos dos reformadores são relativas a práticas litúrgicas e costumes católicos, como a comunhão em apenas uma espécie, e não sobre as eventuais práticas privadas do clero. Muitos críticos não eram separatistas, como Erasmo de Roterdã, por exemplo. Por último, pode-se pensar que, alguns anos mais tarde quando a Reforma Católica corrigiu grande parte dos desvios de conduta generalizados entre clérigos, os reformadores não propuseram o retorno (DELUMEAU, 1989, p.59 et seq.).
Certamente as causas mais profundas da Reforma estão ligadas às angustias coletivas do final do medievo. A principal delas era a morte e a consequente ida para o inferno. Não por acaso, os concílios na baixa Idade Média – Lyon (1274) e Florença (1438-1445) – e no início da era moderna – Trento (1545-1563) – se ocupam deste ponto doutrinário. Fenômenos como a peste negra, a guerra dos Cem Anos, o Grande Cisma no Ocidente, que gerou três homens alegando serem o verdadeiro papa, a ameaça dos turcos otomanos, foram, enfim, uma série de problemas que abalaram e desorientaram as consciências do europeu em geral. O horror ao pecado e o medo da morte foram algumas das consequências deste processo, para o qual a solução apresentada pelas correntes reformadoras era mais acessível se comparada ao purgatório católico.
De fato, pela teologia reformada, o pessimismo dominante gerava uma solução simplificada para o binômio pecado/inferno: a Graça advinda da fé, que era bastante e suficiente para tornar justo o homem, por si só inerentemente pecador. A novidade dos reformadores era propor uma fé individual que resgatasse individualmente do pecado. Consequência deste postulado era que cada indivíduo era seu próprio sacerdote, reduzindo ao mínimo a eclesiologia e praticamente extinguindo os ministérios ordenados. Como muitos sacerdotes possuíam vida condenável, e desde a propagação da Devotio Moderna muitos leigos buscavam uma vida santificada, a ideia reformada de um sacerdócio universal não foi difícil de ser propagada. De igual modo, a leitura do texto bíblico, que neste período já não era rara fora do ambiente litúrgico, também passa a ser de individual direção. Como aponta Jean Delumeau (1989, p.78), “os reformadores não ‘deram’ aos Cristãos os livros santos traduzidos em língua vulgar que a Igreja teria anteriormente lhes recusado”. O que aconteceu é que a profusão de cópias em línguas diferentes do latim gerou a familiaridade e o desejo de ler e interpretar as Sacras Letras.
4.1 As reformas protestantes
O fenômeno das reformas posteriormente chamadas de protestantes não teve início com Lutero, mas sem dúvida alguma teve nele seu primeiro grande protagonista. O frei agostiniano Martinho Lutero, que ingressou na ordem como cumprimento de uma promessa quando em perigo de morte, tornou-se um monge diligente e escrupuloso. Provavelmente já lhe atormentava a consciência a grande questão que o levaria à ruptura com o catolicismo: a justificação do homem. Ademais de uma miríade de críticas comportamentais, como a cobrança pelas indulgências praticada por parte do clero de sua própria terra, a grande questão de Lutero sempre foi a da salvação ou danação das almas, o que era uma questão comum à época. No fundo, as normalmente supervalorizadas noventa e cinco teses publicadas na catedral de Wittenberg e a viagem a Roma não estão no centro da Reforma Luterana. Ao contrário do que muitos autores afirmam, Jean Delumeau, baseado em textos do próprio Lutero, diz que “esta viagem a Roma não parece ter sido determinante na evolução interior” do futuro reformador (DELUMEAU, 1989, p.86). Já sobre as teses que foram copiadas e impressas por toda a Europa é preciso notar que, quando inquirido sobre essas no capítulo dos Agostinianos reunido em Heidelberg (abril de 1518), Lutero deu menos importância à questão das indulgências do que à sua doutrina sobre a justificação (DELUMEAU, 1989, p.90). A visão do agostiniano alemão era fortemente marcada por uma leitura pessimista da obra de Santo Agostinho, decalcando no ser humano uma total inoperância contra o pecado, ficando esse, então, à mercê da Graça divina e nada mais. Assim, irremediavelmente pecador, o homem, enquanto indivíduo, só teria uma solução: a fé individual. Nas palavras do próprio Lutero: “O livre-arbítrio depois da queda não é mais que uma palavra vã; fazendo-lhe o que é possível o homem peca mortalmente” (DELUMEAU, 1989, p.106).
Desse modo, persistindo na sua doutrina da justificação possível apenas pela fé, Lutero abre as portas para outros pensadores proporem doutrinas autônomas e estabelecerem confissões próprias. E foi exatamente o que fez o humanista francês João Calvino. Por insistência do pai formou-se, inicialmente, em direito. Com a morte desse, torna-se teólogo em Paris, todavia não sendo ordenado sacerdote. Aderiu à Reforma e por isso foi expulso de Paris junto com outros huguenotes. Seguiu para Basiléia e depois para Genebra, onde se estabeleceu. O marco inicial da doutrina calvinista foi a publicação, em 1536, ainda em Basileia, da sua obra Institutio Religionis Christianae, onde começa a se apresentar efetivamente como reformador. Nela Calvino segue a eclesiologia luterana, ensinando que a Igreja é o conjunto dos eleitos, cujos nomes só Deus conhece, sendo portanto essencialmente invisível. Mas em uma edição posterior (1541), apresentará a Igreja visível como alvo de grande estima e obrigatória comunhão. Dada a sua percepção de uma distância incomensurável entre Deus e o homem, fomenta a iconoclastia, reafirmando que apenas as Escrituras podem oferecer um caminho para conhecer Deus. Partilhando do pessimismo do reformador de Wittemberg, Calvino amplia a sua reflexão quando publica, em 1552, um tratado sobre a predestinação, explorando a premissa de que Deus concede a sua graça a quem assim o desejar. Os grupos que aderem ao calvinismo abraçam a predestinação, porque Deus escolhe a quem dá a sua Graça e que, consequentemente, será salvo. Aos que não foram eleitos para a salvação só restaria o inferno. Como nesta doutrina uma das maneiras de tornar perceptível ao mundo o grupo dos eleitos era frutificar o trabalho diligente e o comportamento austero em riquezas, esta crença se figurava muito atraente aos burgueses – principalmente aos financistas –, que eram tidos como pecadores pelo catolicismo.
A última das três grandes vertentes de reformadores é a anglicana. O rei Henrique VIII era um católico fervoroso, tendo até mesmo chegado a escrever um manifesto contra os erros de Lutero. Ao que parece, esta devoção só se sustentou enquanto o rei acreditava que o papa lhe seria sempre favorável. Quando o papa Clemente VII negou o pedido de anulação do casamento para o qual Henrique havia pedido licença a Júlio II, o rei percebeu que não tinha em Clemente o aliado incondicional de que necessitava. Para ele, era necessário um segundo matrimônio na busca por um herdeiro masculino, que evitaria o retorno das guerras e conflitos pelo trono inglês. Daí surge a ruptura da Inglaterra, por uma lei – o Ato de Supremacia (1534) – sem nenhuma questão teológica ou disciplinar a propor ao catolicismo. Esta reforma era meramente uma questão de obediência e jurisdição. Ao rei cabia, a partir de então, a dupla jurisdição que tantos conflitos causara na Idade Média: a temporal e a religiosa, a mitra e a coroa repousando na mesma cabeça.
4.2 As Igrejas Cristãs
Como consequência do movimento reformista iniciado no século XVI, o que se observa no cenário religioso é o aprofundamento das rupturas entre as várias vertentes do cristianismo. À antiga divisão entre Oriente e Ocidente, que, a bem das tentativas feitas no ocaso do medievo, pouco se avançou concretamente rumo ao reencontro, soma-se a fratura da reforma e as múltiplas divisões colaterais à doutrina da livre interpretação das escrituras. Este ponto específico, comum à grande maioria das vertentes doutrinárias, associado à emergência do indivíduo como referência e agente relevante, ensejou a proliferação e a fragmentação das correntes reformadoras em uma miríade de credos. Assim, ao longo dos cem anos seguintes aos processos fundadores reformistas, as comunidades confessionais se multiplicaram pela Europa (JEDIN, 1972, p. 577).
Além disso, as identidades nacionais nascentes se associaram às identidades religiosas, o que conduziu às disputas e guerras de cunho religioso, em especial na França, com a Noite de São Bartolomeu, quando os católicos massacraram os protestantes em Paris, e a Guerra dos Trinta Anos, que tinha, entre as causas dos conflitos, disputas entre católicos e protestantes.
A multiplicação de denominações foi inevitável e, até certo ponto, previsível. A livre interpretação das Escrituras e a eclesiologia que atribui um papel quase nulo à igreja visível dariam, inevitavelmente, em dissenções e dissenções das dissenções. Ademais do protestantismo clássico de Lutero, Calvino e Zuínglio, acrescenta-se o anglicanismo. E nesse, os fiéis de influência calvinista, críticos das reminiscências católicas do anglicanismo, iniciam o movimento puritano, que se desdobrará entre os colonizadores da América do Norte e os que, na França, formariam os huguenotes. Igualmente derivados do grupo calvinista, surgiram os presbiterianos, que se distinguem pelo governo dos anciãos (presbíteros). Ainda derivados dos anglicanos, os batistas surgem dos ingleses que viviam na Holanda, em 1608, caracterizando-se pela defesa do imersionismo para o ritual do batismo. Nos séculos seguintes surgirão pietistas, metodistas, adventistas, pentecostais, além de novas separações do catolicismo no século XIX: as igrejas veterocatólicas.
4.3 Reforma Católica
Da parte católica, já havia um movimento reformista iniciado ainda na Idade Média, conhecido como Reforma Gregoriana, em alusão ao papa Gregório VII (1073-1085), e que teve avanços e retrocessos ao longo dos séculos. Entretanto, fazia-se urgente que os reformadores tivessem uma resposta. Esta era uma demanda do clero católico e uma exigência do imperador Carlos V. Esse, preocupado por ter seu Império dividido entre católicos e reformados, buscava impor uma solução conciliatória, que preservasse a unidade de seus domínios. Nessa tensão, celebra-se o Concílio de Trento, cerne da Reforma Católica moderna.
Desde a Dieta de Worms, reunida em 1521, na qual Lutero refirmou a sua doutrina sobre a justificação pela fé na presença do imperador Carlos V, na cristandade já se demandava um concílio (ALBERIGO, 1995, p.325). Não apenas pela gravidade da ruptura que ameaçava se alastrar, mas certamente também por influência da doutrina conciliarista, ainda em voga. Um dos maiores defensores de um novo concílio geral era o próprio Lutero, ainda que provavelmente para ganhar tempo em seu processo de excomunhão (JEDIN, 1960, p.99). A escolha da cidade onde teria lugar a assembleia foi difícil e complexa. Para os luteranos, grandes fomentadores da ideia de um concílio reformador, a sede do concílio deveria ser na Alemanha, onde nasceu o conflito. No entanto, o tempo passava, os papas se sucediam, e a oposição de Roma à sua convocação era evidente. Não apenas pela aversão à doutrina conciliarista da qual a proposta estava impregnada, mas também pelo fato de que, ao menos em parte, uma tentativa semelhante fracassara em Augsburgo. O concílio só começou a se configurar de forma efetiva depois de um encontro de Carlos V com o Papa Paulo III, ocorrido em Roma, na primavera de 1536.
Houve então uma primeira convocação, no ano seguinte, para a cidade de Mântua, que não foi possível pela guerra entre Carlos V e Francisco I e pelas exigências feitas pelo duque de Mântua para abrigar o concílio. Em outubro de 1537, o concílio foi transferido para Vicenza, igualmente sem sucesso. Quando a expansão das doutrinas reformadas já havia avançado muito e ameaçava penetrar na península Itálica, revestiu-se de urgência uma ação por parte da Cúria romana. Esta ação foi a efetiva convocação do Concílio para a cidade de Trento, estrategicamente localizada no Tirol, ainda pertencente ao Império, mas de fácil acesso aos prelados italianos. Ainda assim, o Concílio foi realizado num período turbulento, entremeado de guerras que fizeram com que os trabalhos fossem suspensos e recomeçassem.
Logo de início, a divergência entre a Cúria e o imperador ficou clara: enquanto à Cúria interessava a imediata condenação do luteranismo, o imperador desejava a reforma da Cúria para então entabular um diálogo com a vertente reformada e preservar a unidade confessional do Império (ALBERIGO, 1995, p.334). A primeira das três etapas do Concílio (1545-1548) foi a mais importante. Nela foram celebradas 10 sessões, nas quais foram reafirmadas as fontes de autoridade no catolicismo – Escrituras e Tradição –, a doutrina do pecado original, a justificação pela fé e pelas obras e a validade dos sacramentos. Na segunda etapa (1551-1552), quando tiveram lugar 6 sessões, foram acertados cânones sobre a eucaristia, penitência e extrema-unção. Após longa interrupção, o Papa Pio IV convoca um terceiro período (1562-1563), no qual ainda foram celebradas 9 sessões. Este último período foi marcado por decretos disciplinares que objetivavam uma reforma na Cúria, ainda alvo de duras críticas.
Um dos pontos centrais do Concílio, principalmente na primeira etapa, foi a questão da justificação do homem, tema central na reforma luterana. Para Carlos V e seus aliados dentro do Concílio, a definição católica deveria admitir duas formas de justificação alternativas: a fé e as obras, que poderiam vir juntas ou preferencialmente a fé. Desse modo, às novas vertentes do cristianismo ficaria resguardada a crença na fé como forma de justificação, e aos católicos reservado o direito de acrescentar as obras como necessárias à salvação. A ação dos padres jesuítas Diego Laynez, que sucederia Inácio de Loyola no controle da Companhia de Jesus, e Alfonso Salméron, grande erudito e exegeta, contribuiu decisivamente para a distinção doutrinária marcada no texto final do concílio.
Além desta questão central, os conciliares em Trento procuraram estabelecer com máxima clareza os saberes e as práticas envolvidas em cada um dos sacramentos. Não apenas por estarem estes sendo postos em questão pelo movimento reformador, mas por considerar que é deles que nasce a verdadeira santidade, e se esta for perdida é por onde se a recobra ou ainda se a aumenta.
4.4 Novas e velhas ordens e congregações
O movimento de caráter espiritual que surgiu no final da Idade Média, conhecido em sua totalidade como Devotio Moderna, assenta-se na emergência da referência ao individual em diversas esferas da vida cotidiana, inclusive na religiosa. Erwin Iserloh, se referindo ao ocaso do medievo, afirma que
(…) se había puesto en marcha un proceso de individualización, que descubría lo particular en lo universal, y se liberaron enormes fuerzas espirituales, artísticas y religiosas. En conexión con ese movimiento está el despertar de un laicismo consciente de su responsabilidad, la evolución de las ciudades y la formación de los estados nacionales ( HUBERT, 1973, p.573)
indicando que o mesmo fator está na raiz de distintos fenômenos. Trata-se da progressiva emergência do indivíduo como referência, que tanto redunda no laicismo crescente no cenário religioso europeu dos séculos seguintes, quanto fundamenta as novas formas de relacionamento com o divino que se instauram dentro da própria Igreja. Se não em função deste novo modelo de piedade, ao menos a partir dele, a reforma católica vai pôr em marcha uma reforma das ordens religiosas.
Ao se tratar das reformas nas ordens religiosas, é preciso que se distinga a que foi empreendida na Espanha pelo cardeal Cisneros, a pedido do papa Alexandre VI e com apoio da monarquia católica. Essa distinção deve ser feita não apenas pela sua importância interna, mas pelos desdobramentos que esta reforma vai ter na América, com a vinda de missionários de ordens já reformadas para o trabalho catequético e missionário. Por influência de Cisneros, os franciscanos e beneditinos espanhóis foram reformados, retornando ao rigor na observância de suas regras, então perdido. De modo semelhante, sob a liderança de Santa Tereza d’Ávila, o foram as carmelitas. Aos frades carmelitas é São João da Cruz que estende o mesmo espírito reformista. Acresce-se a esses místicos São João de Ávila, o apóstolo da Andaluzia, que pregava a reforma do clero e o aprofundamento espiritual, e Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, autor dos Exercícios Espirituais. Curiosamente, o espírito antirreformista também se fazia notar; basta dizer que todos os quatro santos de espírito místico e reformador tiveram que se haver, de uma maneira ou de outra, com a inquisição espanhola.
A Companhia de Jesus assumiu características singulares frente às ordens mendicantes e às demais. Destas, a mais distintiva foi a instauração do quarto voto: o de obediência especial ao papa em relação às missões. Além disso, não habitavam em mosteiros e não se fixavam em um só lugar, sendo fundamentalmente missionários de inspiração paulina. Basta considerar que muitos dos colégios e missões fundados nos primeiros anos eram dedicados à memória de São Paulo: Piratininga, Luanda, Goa etc. Logo após a fundação, foram enviadas as primeiras missões para dentro da própria Europa, buscando recobrar os católicos que haviam migrado para as doutrinas reformadas. Logo em seguida foram enviados missionários jesuítas para cristianizar os rincões mais distantes no planeta: da América ao Japão. Um grande exemplo de missionário jesuíta foi São Francisco Xavier, um dos companheiros de Inácio de Loyola na fundação da Companhia, enviado à Índia e ao Japão, após um acordo entre os jesuítas e a Coroa portuguesa.
Outras ordens foram fundadas neste espírito de reforma do clero regular: Santo Antônio Maria Zaccaria (1502-1537) fundou os Clérigos regulares de São Paulo, chamados de barnabitas, por seu monastério de São Barnabé; a Ordem dos Clérigos Regulares de Somasca, os somascos, foi fundada por São Jerónimo Emiliano, um leigo consagrado que se dedicou ao cuidado dos órfãos. São Jerônimo era muito próximo de São Caetano de Thiene, que fundou a ordem dos teatinos. O santo da alegria, São Felipe Neri, fundou uma comunidade de clérigos seculares conhecida como Congregação do Oratório, ou oratorianos. Algumas mulheres também criaram ordens regulares neste movimento, como Santa Angela de Merici (1474-1540), que foi fundadora da Compagnia delle dimesse di Santa Orsola (as chamadas ursulinas), destinada ao abrigo e educação de meninas abandonadas. É importante notar que o Estado não cumpria as funções de cura, sustento e educação dos súditos. Cabia a instituições caritativas, em geral ligadas às iniciativas do clero católico, desempenhar este papel.
5 A religiosidade popular latino-americana
O termo religiosidade popular refere-se, por si só, às leituras e interpretações do povo e da relação que esse estabelece com o sagrado (NASCIMENTO, 2009, p.119-30). Frequentemente, constitui-se do amálgama entre tradições e crenças de origens diversas com a doutrina e a liturgia católica, resultando em formas de culto, crenças e devoções semelhantes às católicas, mas com significados deslocados pelos saberes populares. Sem sombra de dúvidas, as práticas religiosas populares de Portugal e Espanha, passadas quase sempre pela via materna, deram origem, no encontro com os ritos locais ameríndios e os importados da África, ao catolicismo popular latino-americano (DUSSEL, 1983, p.200).
Para uma melhor compreensão desta simbiose de formas e conteúdos religiosos, é preciso considerar que, do ponto de vista da antropologia cultural, a religiosidade é a forma com a qual as sociedades lidam com o inesperado e com o que lhes escapa ao controle – como o resultado das colheitas, o regime das chuvas, os problemas de saúde e a morte. O cristianismo, como religião revelada, transcende este aspecto primeiro, mas acaba dialogando com ele, na medida em que se propaga por meio da pregação de suas verdades. Na medida em que foi alcançando grupos cada vez mais distantes em termos de padrões culturais, o conteúdo da pregação passou por filtros cada vez mais variados e foi associado a formas de crer e ver o mundo cada vez mais distintas da judaico-europeia, da qual saiu o modelo católico que chega à idade moderna.
Por outro lado, os missionários católicos, preocupados em garantir a salvação dos menos letrados, empreenderam enormes esforços catequéticos. No entanto, neste contexto de confronto religioso com os reformadores, o povo católico iletrado e os povos ágrafos foram, no mais das vezes, subavaliados na sua capacidade de aprendizado e de compreensão doutrinária. Nos séculos XVI e XVII, abundavam na cristandade os catecismos resumidos para as crianças, os rudes, os brutos e todos considerados curtos de inteligência (MUÑOZ, 2006, p.417). Em cada espaço do globo havia rudes e brutos específicos, mas de modo geral eram os camponeses, os pobres, os índios e os africanos, neste último caso tantos os que viviam lá quanto os que foram trazidos para a América e seus descendentes. É em meio a este povo de rudes e brutos que um modelo muito particular de catolicismo vai se desenvolver na América Latina. É possível considerar que neste processo de evangelização sob condições muito específicas, ou seja, em um contexto de colonização e conquista, construiu-se um catolicismo mestiço.
O fato é que a cultura popular e a sua religiosidade encontraram, nas formas católicas de culto ou de expressão de seus valores, mecanismos para viabilizar suas crenças ancestrais, assim como suas necessidades imediatas. Por isso, antes das últimas décadas do século XX, havia uma grande distância entre a devoção católica aos santos e o pedido de sua intercessão, e a crença popularesca no poder atribuído aos santos de fazer milagres, com poderes que lhes seriam próprios – apenas para citar um exemplo. Do mesmo modo, a doutrina católica como expressa em Trento sobre os sacramentos dista em muito da interpretação que deles se fazia nas camadas mais populares – dos rudes e brutos – menos afeitas a complexos conceitos teológicos. Até as irmandades de leigos, lugar do catolicismo não clerical por excelência, eram não raras vezes usadas muito mais como lugares para visibilidade e status sociais que efetivamente de culto e adoração (BOSCHI, 1986, p.14).
A popularização da doutrina e os movimentos de leigos incrementados pelo Concílio Vaticano II tenderam a diminuir a distância entre o que a Igreja ensina e o que o povo mais engajado no catolicismo crê. No entanto, fora dos círculos estritamente católicos, as crenças perpassadas de figurações católicas ainda se mantém.
Carlos Engemann, Brasil.
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[1] Essa bula foi escrita pelo papa Paulo III após ter recebido uma carta do dominicano Julián Garcés. Nessa carta, o bispo de Tlaxcala (hoje um dos estados que compõem o México), denuncia a extrema crueldade com que os conquistadores tratavam os habitantes da América, sob o pretexto de que esses não conheciam a fé.
[2] Era frequente que se considerasse inválido um batismo que não fora precedido de catequese, aceitação da fé e desejo pelo batismo. O arcebispo de Sevilha D. Pedro de Castro y Quiñones proferiu, no início do século XVII, uma instrução que se tornou modelar para a catequese de africanos e nela recomendava que se questionasse se o indivíduo havia ouvido catequese, se a tinha compreendido, se a tinha aceitado e se havia desejado ser batizado. Claver utilizava essa instrução no seu trabalho.
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