No final do capítulo 3 (Cristãos: admirável mundo novo) do seu livro Em nome de Deus, Karen Armstrong descreve o início do combate, nos EUA, entre a interpretação literal e a interpretação crítica da Bíblia, um combate que ainda se faz presente hoje em dia quando passagens do Antigo Testamento são utilizadas como fundamento para coisas desumanas como, por exemplo, a homofobia; quando críticos da religião em geral e ou do cristianismo em particular utilizam as contradições, incoerências e erros científicos (biológicos, históricos, físicos, etc.) na Bíblia para tentar invalidá-la e, por conseguinte, invalidar a religião que a adota; e quando cristãos com posições políticas divergentes entre si (grosso modo, esquerda e direita) utilizam passagens bíblicas discordantes tanto para fundamentar sua própria posição quanto para atacar a posição alheia:
“Observando a discrepância entre a hipótese de Darwin e o primeiro capítulo do Gênesis, alguns cristãos, como Asa Gray (1810-88), amigo e colega do naturalista inglês, tentaram conciliar a seleção natural com uma leitura literal do livro bíblico. Posteriormente o projeto conhecido como Ciência da Criação se esforçaria ainda mais para conferir ao Gênesis respeitabilidade científica. Tanto empenho era inútil: como mito, a história bíblica não constitui um relato histórico das origens da vida, e sim uma reflexão mais espiritual acerca do significado profundo da existência, e sobre isso o logos científico nada tem a declarar.
Embora Darwin não tivesse tal intenção, a publicação da Origem [das Espécies] provocou uma escaramuça entre religião e ciência, porém os primeiros tiros foram disparados não pelos religiosos, e sim pelos secularistas mais agressivos. Thomas H. Huxley (1825-95) na Inglaterra e Karl Vogt (1817-95), Ludwig Buchner (1824-99) Jakob Moleschott (1822-93) e Ernst Haeckel (1834-1919) no continente europeu popularizaram a teoria darwiniana, dirigindo-se a vastas plateias para provar a incompatibilidade entre ciência e religião. Na realidade pregaram uma cruzada contra a religião.” (Não posso dar a referência de quais são as páginas onde se encontra o texto, porque li ele em uma versão eletrônica pirateada, só sei que está no final do capítulo referido acima)
Neste livro, Karen Armstrong traça as origens mais ou menos paralelas do fundamentalismo nas três grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo), demonstrando (conforme o que eu entendi) que o fundamentalismo é uma reação de defesa diante do medo causado pelas incertezas postas pela modernidade. É uma síntese muito suspeita pelo fato de que eu li apenas os capítulos referentes ao cristianismo, embora em outra oportunidade eu tenha lido o livro todo (emprestado de uma biblioteca) e ele seja bem mais abrangente do que as minhas observações sobre ele.
Segundo ela (ou pelo menos segundo o que eu entendi do livro dela), as religiões fundamentam-se em mitos, não no sentido de lendas ou folclore, mas sim (os mitos) como forma de expressar aquilo que se quer dizer acerca de questões existenciais, enquanto que a ciência fundamenta-se no logos, que é a maneira racional de investigar e compreender a realidade.
Eu não sei se mito e logos signficam estritamente isto (eu não fui consultar o dicionário), mas de maneira geral o que eu entendi foi que a religião expressa verdades usando mitos, enquanto que a ciência o faz usando logos; além disto, o objeto da ciência é diferente do objeto da religião, razão pela qual o conflito surge quando se tenta “cientificizar” a religião ou então quando se tenta o contrário, fazer das explicações científicas, explicações religiosas.
Ética, moral e religião não são propostas científicas e seus pressupostos não são cientificamente comprováveis (não existem impedimentos científicos para alguém andar nu por aí, por exemplo), bem como as descobertas científicas não são menos científicas por seu uso imoral (a imoralidade que há em qualquer chacina não impediu a bomba atômica de funcionar em Hiroshima e Nagasaki, e nem mesmo uma bomba atômica, em si, é da alçada religiosa, mas apenas o seu uso contra seres humanos).
Como alguns fundamentalistas de hoje utilizam trechos da bíblia para justificar seu conservadorismo, e seus oponentes eventualmente também utilizam outros trechos para justificar o seu próprio progressismo (como Jacques Ellul fez no seu maravilhoso livro Anarquia e Cristianismo), sem contar os argumentos antirreligiosos fundamentados nas inconsistências da Bíblia, eu resolvi copiar quatro listas que encontrei no livro A Bíblia sem Mitos, de Eduardo Arens, com diversas incoerências, contradições e erros bíblicos, que eu achei melhor copiar do que tentar resumir e explicar eu mesmo (desprovido de aptidão literária como eu sou, isto iria virar algo parecido com videocassetadas bíblicas, que não chegariam a parecer falta de respeito religioso porque não seriam nem engraçadas, já que eu também não sou humorista, mas resultaria em um texto apenas deprimente e sofrível) e vão ser publicadas ao longo dos próximos quatro dias.