A propriedade privada deve ser respeitada e protegida na medida razoável do seu uso em prol do bem comum. Quando ela se torna um instrumento de opressão, porém, por isto mesmo ela perde seus “direitos”.
Uma pessoa vale mais do que uma propriedade, mas esta é uma relação em que os termos não poderiam se antagonizar, pois a propriedade privada é posse de alguém cujo valor é igual ao de quem é oprimido por esta propriedade. Em si mesma a propriedade não oprime ninguém, mas o uso opressor, por parte do proprietário, torna-a opressora.
As vidraças do Carrefour nunca fizeram nada para ninguém, mas seu valor é infinitamente menor do que o homem que foi morto pelos seguranças do Carrefour. Se é verdade que erros acontecem e é necessário relevar que ninguém é perfeito, também é verdade que o mesmo erro repetido deixa de ser uma falha pontual e se torna um indício de que é um procedimento habitual, reconhecido ou não. Mesmo que o Carrefour não tenha a intenção de violentar os negros, as repetidas violações demonstram que mesmo assim elas acontecem – se não era a intenção violentar os negros, o Carrefour também não se importa que elas aconteçam em suas lojas.
Se a intenção do Carrefour não é violentar ninguém nem impedir a violência, ele é sim responsável pelas repetidas violências que ocorrem nas suas dependências, tanto as que sabemos quanto as que ainda não descobrimos. Como o poder público se omite, a exemplo do presidente que ignora a morte de um homem negro e nega o racismo para preservá-lo, cabe à sociedade reagir. E se não é possível elogiar a violência da reação, é menos possível ainda se opor a ela quando recai somente sobre a propriedade que o Carrefour usa para violentar os negros.
A violência dos protestos do dia 20 não foi contra outras pessoas, mas contra as coisas (a propriedade) do Carrefour. Se fosse pelo prazer de quebrar as coisas gratuitamente seriam vandalismos, como a mídia os chamou. Mas foram uma reação cuja nocividade quase desaparece diante do mal que, para não atrapalhar os negócios, o Carrefour promove com a sua omissão.