Lendo Rm 13,1 (“Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus.”) além do sentido óbvio de acatar as determinações das autoridades, também é possível entender que ser “submisso às autoridades constiuídas” significa não minar o sentido de autoridade em si.
Além de não legitimar a obediência a determinações más ou injustas, afinal a autoridade é “ministra de Deus” (v. 4) e não é possível fazer o mal nem cometer injustiças em nome de Deus (e dizer que a ação é em nome de Deus não quer dizer que seja mesmo); Rm 13,1 também serve para impedir que quem exerce a autoridade desgaste-a a ponto de não valer nada.
Mas é precisamente desgastar a autoridade oque o bolsonarismo mais faz, tanto no executivo, é óbvio, que em vez de governar se dedica a explorar ambiguidades e brechas legais para proteger as práticas mais nocivas e destrutivas que puder (o negacionismo científico, os preconceitos misóginos, racistas, homofóbicos, etc, o armamento da população, a devastação da natureza, etc); quanto nos outros poderes, como por exemplo o Lira mudando o regimento em cima da hora para aprovar uma PEC, um juiz qualquer mandando para a cadeia alguém que roubou para matar a fome, e também o fomento generalizado de coisas como a brutalidade gratuita dos PMs que dominaram aquela mulher com as duas crianças em MG, ou o MP gaúcho recorrendo da absolvição de quem rouba comida vencida para não passar fome.
Não que este método, a exploração de brechas legais para proteger injustiças e coisas destrutivas afins, seja uma inovação bolsonarista, afinal é um método muito antigo, geralmente aplicado contra pessoas comuns e que foi “normalizado” de 2016 em diante, primeiro no golpe contra a Dilma e depois na prisão do Lula. Mas é o método que o bolsonarismo aprendeu a aplicar com muito sucesso para impor sua maldade em (aparentemente) todos os âmbitos da sociedade brasileira.
Se o desgaste da autoridade não for o objetivo, pelo menos é um efeito colateral muito desejável para quem deseje (momento teoria da conspiração) descartar a autoridade (que é exercida por alguém, mas não pode ser apropriada para si) e substituí-la pela força bruta (fim do momento teoria da conspiração, obrigado). Uma pessoa que eventualmente não se dê o respeito, ainda assim precisa ser respeitada, pelo menos de um ponto de vista religioso cristão. Mas uma autoridade que desmereça a própria autoridade que exerce já perdeu a própria legitimidade pelo mesmo motivo que o versículo 1 de Rm 13 justifica a aceitação da autoridade: porque ela vem de Deus.
Esta interpretação de Rm 13,1 não é nem canônica, obviamente, e nem deve ser muito ortodoxa (a verdade é que eu não sei se é hetero ou ortodoxa porque entendo pouco do assunto), portanto não estou querendo dizer aqui, nem indiretamente, que Deus também é oposição ao governo bolsonarista e a prova disto seria Rm 13,1.
Mas mesmo sem igualar esta interpretação aos pensamentos de Deus (que estão tão acima dos nossos pensamentos quanto o céu está acima da terra, cf. Is 55,9), acredito que ela segue caminhos pelo menos um pouco mais próximos dos caminhos de Deus (igualmente distantes dos nossos caminhos como no caso dos pensamentos, ainda em Is 55,9) do que as interpretações bolsonaristas da Bíblia.