Se há alguma grande diferença entre a declaração de Pedro (Mt 16,16), “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” e a do espírito impuro no Evangelho de ontem (Lc 4,34), “eu sei quem és: o Santo de Deus” (exceto pelo alinhamento de ambos para com Deus), talvez quem estude teologia a fundo saiba, porque os dois não me parecem estar dizendo coisas muito diferentes além das palavras que usaram.
A fé em Deus vale por si só, e só Deus sabe o quanto às vezes a sua manifestação pode sair truncada, por isto que só cabe a ele julgar, por sinal, especialmente quando é para condenar a falta de fé de alguém, mas mesmo quando se julga que alguém tem uma grande fé, quem sabe mesmo o tamanho dela é Deus.
E é isto o que, na mistura entre fé e política, degrada tanto a fé quanto a política. Não que esta degradação mútua sirva como argumento para fingir que as duas coisas não se relacionam, quando na verdade talvez se relacionem mais profundamente do que possa parecer, mas a fé em Deus como bandeira política pode ser erguida tanto pelo bolsonarismo quanto pelo demônio (que inclusive tem mais fé em Deus do que qualquer um, bolsonarista ou não), o que não desbota a bandeira, mas também não faz dela um certificado de idoneidade.
O melhor que se pode oferecer a qualquer pessoa é a fé em Deus, mas quando um político só tem a oferecer como plataforma esta mesma fé em Deus, ou sua fé ou sua política é apenas uma fachada para sabe-se lá o que. A fé em Deus não leva à política (a menos que o monge copista tenha se enganado e em vez de “batizai” devesse ter escrito “elegei-vos em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” em alguma passagem do NT que eu não vou procurar agora).
A fé em Deus pode determinar o modo como a pessoa faz política, mas muitas coisas também podem determinar, e a despeito da gigantesca importância que há em ter fé em Deus, ela por si só não é, ou não deveria ser, requisito nem muito menos plataforma política. Mas, repetindo, isso não significa que fé e política estariam melhor longe uma da outra. Na própria Bíblia há ótimas plataformas políticas (alimentar o órfão, proteger a viúva, alimentar quem tem fome, agasalhar quem tem frio, etc.) e até mesmo preferências políticas (como em 1Sm 8,9 – embora isso não se aplique ao reinado do próprio Deus, como se vê no versículo 7). Jesus Cristo não aprovava nem a ocupação romana, nem a violência contra esta ocupação; Abraão intercedeu por Sodoma, equilibrando-se em uma linha fina entre a humildade e a ousadia (pedindo desculpas pela insistência sem deixar, porém, de insistir), Ciro, conquistou a Babilônia de Nabucodonosor e encerrou o exílio babilônico certamente movido por Deus, mas o fez agindo politicamente (e não como um profeta que gritasse “ouvi, Israel”), e os pŕoprios profetas agiam politicamente também, entre tantos outros exemplos.
Mas até mesmo a fé mais gigantesca em Deus não é motivo para votar nem deixar de votar em ninguém, embora a fé não seja irrelevante: defender o porte geral de armas em detrimento de uma política de segurança pública, o crescimento da economia em detrimento da saúde, a devastação da natureza em favor de maiores lucros, são posicionamentos (entre outros) que não demonstram nenhuma falta de fé em Deus, mas sim que os fiéis que foram eleitos não tem a menor dificuldade em por a fé de lado para ignorar a maldade das suas decisões.
Nada justifica que alguém esconda a sua fé, mas quando ela precisa ser ostentada em troca de votos, é um sinal seguro de que ali a fé não vai conversar com a política, a não ser como uma pretensa justificativa para a maldade, e para angariar apoio aos projetos diabólicos escondidos sob o véu da ostentação da fé.