Os planos de Deus são insondáveis, incompreensíveis e santos. Eles às vezes nos alegram, noutras vezes nos decepcionam; às vezes nos confortam, mas também podem nos rasgar por dentro.
O mal não é parte dos planos de Deus, e segundo o magistério da Igreja, é um mistério. Além disto, confiar em Deus, uma obrigação nossa, inclui confiar que Deus transforma o mal em bem mesmo que não se perceba isto, etc.
E isto é muito difícil.
Com frequência eu me irrito com os planos de Deus. Ao mesmo tempo em que eu agradeço ter sido poupado dos piores males (pelo menos até agora), passo os dias passando raiva pelos pequenos revezes cotidianos que vêm com uma certeza quase matemática e com uma frequência ininterrupta. E, claro, cabe a mim aceitar os males com a mesma gratidão com que aceito os bens (os quais, ainda por cima, são quase sempre aquém do que eu esperava…).
Mas tenho uma teoria (pois eu tenho teorias mais ou menos como MacGyver tinha um clips e um esparadrapo para montar uma bomba só com isto, ou então como o Batman sempre tem alguma utilidade no seu cinturão). Eu sempre tenho uma teoria.
A minha teoria é que Deus tem apreço pela liberdade, um apreço que vai a níveis (para nós) assombrosos. O maior exemplo: quando quiseram matar Jesus, Deus não impediu ninguém. Ele deu oportunidades para todos voltarem atrás: Pilatos estava decidido a soltá-lo, o povo poderia ter matado Barrabás, poderiam nem ter começado todo o processo. Deus deu várias oportunidades de voltarem atrás, mas ninguém quis aproveitá-las. E Deus não impediu ninguém. Alguém duvida que Cristo poderia ter impedido tudo com um estalar de dedos?
Mas as pessoas são livres. Se Sartre errou ao afirmar que Deus não existe, acertou em afirmar a liberdade aterradora que nos condiciona. Deus existe sim, mas nossa liberdade de decisão também. O porquê de Deus impedir certas ações e outras não (porque de qualquer modo só vemos a maldade que Deus permitiu passar, certamente contrariado, mas não fazemos ideia do que Deus impede, também, o que deve ser em número muito maior do que o que passa).
Eu li um livro, de um padre chamado Fortes, que é um romanceamento da guerra espiritual que culminou na queda dos anjos liderados por Lúcifer (um texto sem pretensões de veracidade). No fim, o diabo levou às piores consequências a estupefação diante do plano divino de deixar-se matar pelos seres humanos que criaria (quase como se tivesse rompido com Deus por excesso de zelo para com Deus). Mesmo que não tenha sido assim a história, eu sempre lembro dela quando me questiono se tamanha liberdade é uma boa ideia de Deus. Logo eu, um intransigente defensor da liberdade, me pego às vezes neste questionamento diabólico da liberdade (o mundo dá voltas, Marcelo).
O que estou querendo dizer, enfim, é que talvez o plano divino seja a liberdade e não o mal, mas o mal (sem pretender ter “resolvido” o Mistério do mesmo) é resultado de ações contra-libertárias humanas – de maldades humanas.
A liberdade inclui a possibilidade de impedir a liberdade, e aí entra a ética e a moral: Deus permite, contrariado, ações contra a liberdade, mas não as quer e por isto não devemos fazê-las. O mal que Deus permite, devemos (mesmo com o coração destruído, e como isto é indizivelmente dilacerados) aceitar – mas sem esquecer o seguinte: aceitar o desígnio de Deus.
Porque não é porque Deus permite, contrariado, a violência (por exemplo) que ela deve ser aceita. Aceitar a vontade de Deus é não se revoltar contra ele, mas não deixar o mal passar, e não estou me referindo aqui aos meus pequenos contratempos irritantes diários (seria muito melhor não tê-los, mas, enfim).
Aceitar a vontade de Deus é lutar contra o mal nos termos de Deus. Isto implica em se abster de combater o mal com o mal. A homossexualidade, por exemplo, é um pecado, mas a homofobia também é e o é muito mais claramente do que a homossexualidade. O aborto é um pecado mas a falta de assistência às grávidas, às mães, às crianças que nasceram e às mulheres em geral também é – e não adianta fazer um super-trunfo dos pecados e ficar calculando qual é o pecado mais pesado (pois não deveria ser mais fácil defender os fetos que ninguém vê do que as pessoas que nasceram e vivem em condições deploráveis, o que só não vê quem não quer). Aceitar a vontade de Deus não é fazer uma apologia à permissividade. Cristo censurou Pedro quando ele quis usar a espada e curou a orelha de um dos seus captores.
Então, por fim, espero que eu me lembre de não me revoltar com Deus, e de trabalhar em prol da liberdade.